Introdução
Nos últimos anos, tribunais por todo o país têm sido chamados a pronunciar-se sobre a constitucionalidade de novos temas educacionais, tendentes a forçar a abstenção do Estado em relação às liberdades na educação, compreendidas entre os direitos na educação.
O direito à educação é direito social de promoção e proteção (Constituição Federal (CF), art. 6º), de segunda geração, realizado mediante ações positivas do Estado, da família e da sociedade (CF,art. 205). Os direitos na educação, a seu turno, são desdobramentos do primeiro e têm a função primária de defesa das liberdades na educação, fundamentais à democracia: a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino (CF, art. 206, incisos II e III); o ensino religioso facultativo (CF, art. 210, § 1º); a autonomia universitária (CF, art. 207). São direitos de natureza instrumental, que se realizam por intermédio de abstenções estatais, submetidos ao regime das liberdades e garantias, de eficácia plena e aplicabilidade imediata. Sua natureza aproxima-se da dos direitos individuais de primeira geração.
No STF, a ADIn 4.439 – caso do ensino religioso em escolas públicas –, o RE 888815 – caso do ensino domiciliar –, a ADC 17 – caso da idade mínima para ingresso no ensino fundamental – e a ADIn 5.580 – caso da escola livre, no estado de Alagoas – representam aquela tendência. No estado de São Paulo, são exemplificativas as ações diretas de inconstitucionalidade 2085589-96.2018 e 2113734-65.2018. Julgadas pelo TJ/SP, ilustram, de forma paradigmática, esse fenômeno.
O objetivo deste artigo é analisar a jurisprudência selecionada do TJ/SP e sua repercussão, em matéria de liberdade de ensinar e aprender e direito à privacidade nas escolas.
2 ADIn 2085589-96.2018. Liberdade de ensinar e aprender e liberdade de expressão. O Programa Escola sem Partido (Pesp)
2.1. A Câmara Municipal de São José do Rio Preto aprovou a lei 12.928/18, que instituiu, no sistema de ensino local, o Pesp.1
Em síntese, a lei determina que “o Poder Público não intervirá no processo de amadurecimento sexual dos alunos nem permitirá qualquer forma de dogmatismo ou proselitismo na abordagem das questões de gênero” (art. 2º), e que o professor, entre outras proibições, não se aproveitará da audiência cativa dos alunos para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias e respeitará o direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções (art. 3º). O conteúdo da lei deverá constar de cartazes afixados em salas de aula (art. 4º).
O prefeito ajuizou ADIn contra a referida lei, com decisão favorável e unânime do órgão especial do TJ/SP, em 31/10/18. O acórdão analisou a incompetência do município para regulamentar a matéria e o desatendimento dos arts. 206 da CF e 237 da Constituição Estadual (CE).
O primeiro ponto registra ofensa ao princípio federativo, por invasão da competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional – LDB – (CF, art. 22, inciso XXIV), dado que ao município está reservada, exclusivamente, competência para legislar sobre assuntos de interesse local, expressa em normas complementares para os seus sistemas de ensino (art. 11, inciso III, da LDB). Não há, tampouco, possibilidade de suplementação da legislação federal, à luz do caput do art. 24 da CF, como expresso no acórdão. O segundo ponto assinala a inconstitucionalidade da regra geral inovadora, sem previsão na LDB, introduzida pelo Pesp, que, ao limitar a atuação do professor, o Pesp ultrapassa, em muito, os limites constitucionais da liberdade de ensinar ou liberdade de cátedra (CF, art. 206, inciso II).
O programa incorre, ainda, em outras inconstitucionalidade e ilegalidades:
a) Invoca o art. 12 do Pacto de São José da Costa Rica2 como fundamento suficiente às suas pretensões (art. 1º). Referido art. 12, corolário da liberdade de consciência e religião, visa garantir a plena autonomia dos pais na escolha da religião dos filhos e, de forma correlata, proteger todos os indivíduos e as diversas confissões religiosas de intervenções estatais. Não se destina a garantir censura prévia na escola, o que estaria em frontal desacordo com o espírito democrático que orienta o pacto. Além disso, o STF já fixou que o aluno tem direito subjetivo ao ensino religioso, como disciplina eletiva nos horários normais, ministrada de acordo com os princípios de sua confissão religiosa.3
b) Confunde liberdade de cátedra com liberdade de expressão (CF, art. 5º, inciso IV). Ora, o ato de ensinar exige critérios epistêmicos e não ideológicos. Liberdade de ensinar não é cheque em branco para proselitismo ou doutrinação política, para a apologia da violência ou do racismo – o que é crime –, nem anistia para a defesa do geocentrismo ou da teoria criacionista. Esses exemplos, óbvios, demonstram que a liberdade acadêmica tem limites mais restritos que a liberdade de expressão. Tanto assim que o professor está obrigado, pela LDB (art. 13),4 a elaborar e cumprir plano de trabalho conforme a proposta pedagógica da escola.
c) Ignora que a educação sexual é obrigatória, a partir do 8º ano do ensino fundamental (Base Nacional Comum Curricular (BNCC)).5 Pior, desconhece que cerca de 83% das crianças e adolescentes brasileiros, entre 9 e 17 anos, apresentam alto grau de exposição aos riscos da internet, particularmente nas classes D e E;6 e que cerca de 30% dos escolares do 9º ano do Fundamental já tiveram relação sexual, sendo maior este percentual para meninos de escolas públicas. No total, apenas 60% declaram ter usado preservativo.7
d) Desrespeita a prevalência do princípio da primazia da criança sobre o poder parental, garantido pelo art. 227 da CF e pela Convenção dos Direitos das Crianças.8
Liberdade de ensinar não é cheque em branco para proselitismo ou doutrinação política.
Por todas essas razões, o Pesp, instituído por leis idênticas em vários Estados e municípios, não tem resistido ao questionamento judicial de sua constitucionalidade. As decisões são unânimes quanto à restrição de direitos e aos efeitos deletérios do programa na educação de crianças e jovens, seja em razão da censura prévia que institui e do consequente estímulo ao denuncismo, seja porque impede o acesso a conhecimentos científicos, desestimula a tolerância e limita a diversidade na escola. Os casos mais conhecidos são os da lei 7.800/16 do Estado de Alagoas, sob julgamento no STF (ADIn 5.537) e o da lei do município de Paranaguá (ADPF 461-PR), ambos com vigência integralmente suspensa por liminares. No âmbito do TJ/SP, registrem-se, ainda, as ADINs 2216281- 23.2017.8.26.0000; 2137274-79.2017.8.26.0000 e 2072130-27.2018. 8.26.0000.
3 ADIn 2113734-65.2018. A utilização de sistema de vigilância por câmeras nas escolas e o direito à privacidade
3.1. Nesse caso, o TJ/SP, em 2018, declarou, por maioria, a validade de uma lei municipal que dispõe sobre a instalação de câmeras de monitoramento de segurança em escolas públicas, inclusive dentro de salas de aula.
De acordo com o tribunal, o monitoramento e armazenamento das imagens para consulta eventual, em razão de um caso específico, não ofende a intimidade dos alunos e professores, nem se consubstancia em fator inibidor do aprendizado, sendo possível a restrição de direitos fundamentais face à necessidade de garantia da segurança. O voto vencedor se fundou em quatro premissas: a) em sendo a escola um espaço público, não se poderia falar em prática de atos privados e particulares; b) a coleta das imagens, por si só, não ofende o direito à imagem dos indivíduos, sem que haja indícios de uso indevido; c) o monitoramento por câmeras não interfere na liberdade de ensinar e aprender, já que a conduta de alunos e professores deve obrigatoriamente se pautar pelo princípio da legalidade; e d) é possível a relativização de direitos fundamentais em razão da necessidade de fiscalização e garantia de segurança na escola. O voto vencido, por sua vez, se baseou em dois principais argumentos: a) a instalação de câmeras de vigilância no interior das salas de aula viola as normas do ECA, da CF, gerando efeitos negativos ao aprendizado e convivência entre professores e alunos; e b) o monitoramento viola a liberdade de ensinar, impactando na autonomia do professor. O caso ainda aguarda apreciação do STF.
Tema semelhante foi objeto de discussão no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-4), quando do julgamento do RO 0020494-38.2014.5.04.0007. O recurso foi interposto por certa escola em face da sentença que a condenou a retirar câmeras de vídeo das suas salas de aula, bem como a pagar indenização por dano moral coletivo, porquanto o monitoramento de alunos e professores transmite desconfiança e ofende a privacidade. O citado tribunal, por maioria, acolheu o pedido da reclamada, reformando integralmente o julgado. E o voto vencedor funda-se basicamente em dois argumentos: a) ausência de violação à liberdade de ensinar e aprender; e b) garantia da segurança de alunos e professores, diante da realidade fática. O caso já transitou em julgado. Em litígios semelhantes, os TRTs das 1ª e 6ª Regiões decidiram que a colocação de câmeras em salas de aula não gera violação da privacidade ou assédio moral contra professores (ROs 00222007120055010034, j.20/4/2006 e 0000069-74.2012.5.06.0016, j. 29/1/2014, respectivamente).
No plano legislativo, tramitou no Senado Federal o PL 88/14, que visava a alterar a lei 9.394/96 (LDB) para prever a obrigação de as escolas públicas ou privadas instalarem sistema de segurança baseado em monitoramento por câmeras de vídeo. O projeto, todavia, foi arquivado, após receber voto contrário da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, sob o argumento de que seria inconstitucional, pois, muito embora tratasse de matéria atinente à segurança pública, a proposição interferiria em assunto de interesse local e, além disso, o projeto poderia implicar controle excessivo sobre as atividades dos docentes, em especial se instaladas câmeras nas salas de aula, bem como inibir mobilizações estudantis. No estado de São Paulo, o projeto de lei 1.135/11, que dispunha sobre a instalação de câmeras de monitoramento em asilos, creches e pré-escolas, também teve voto contrário da Comissão de Constituição, o que gerou seu arquivamento.
Por sua vez, o estado de Mato Grosso do Sul promulgou a lei 3.946/10, autorizando a instalação de câmeras de vídeo nas escolas públicas e privadas daquele ente da Federação, com o objetivo de prevenir e apurar a autoria de atos nocivos à segurança da comunidade escolar. A lei permite a instalação de câmeras em locais de circulação interna ou externa das escolas, excepcionando, todavia, vestiários, banheiros, salas de professores e salas de aula.
Veja-se que a discussão acerca do monitoramento em salas de aula não é nova, mas invariavelmente retorna ao debate público, justamente por não encontrar unanimidade, nem na jurisprudência, nem no plano legislativo.
Mas não é somente no âmbito do judiciário e do legislativo que o assunto encontra resistência. Entre os profissionais da educação, a uniformidade de entendimentos também está longe de ser alcançada. Em 28 de setembro de 2012, a revista IstoÉ publicou uma reportagem (“Câmera na sala de aula: isso é bom?”) a respeito da instalação de câmeras em colégio da capital paulista. Na matéria foram ouvidas educadoras com posições contrapostas: a) a vigilância eletrônica garantiria a segurança e auxiliaria no aprimoramento profissional; e b) tal vigilância prejudicaria a formação dos alunos, coibindo o debate espontâneo, e diminuiria a autoridade do professor.
3.2. Trazendo o debate para a esfera jurídica, cabe refletirmos a respeito dos principais pontos citados, que se centram basicamente em três pilares: privacidade, segurança e liberdade.
A CF prefere utilizar a expressão direito à privacidade, “num sentido genérico e amplo, de modo a abarcar todas essas manifestações da esfera íntima, privada e da personalidade, que o texto constitucionalem exame consagrou” (SILVA, 2017, p. 208). Destarte, o termo privacidade abarca o direito à vida privada, à intimidade, à honra e à imagem, nesta ordem de exclusividade. Pensando na escola como um espaço público, jamais se poderia falar que a colocação de câmeras em salas de aula violaria a vida privada e intimidade, pois estes são direitos que abarcam os mais exclusivos fatos da vida do ser humano, normalmente decorrentes de reserva mental ou compartilhados com um pequeno número de pessoas confiáveis, em ambientes privados. E não se poderia incluir a sala de aula neste conceito, pois necessariamente pressupõe o compartilhamento de experiências pedagógicas, destinando-se ainda ao convívio entre alunos. De outro lado, é imprescindível a preservação da intimidade nos espaços privativos, como é o caso, e.g., dos vestiários ou banheiros das escolas, como citado nos julgados e atos legislativos estudados.
Também não se cogitaria de ofensa à honra ou imagem em decorrência da mera instalação de câmeras de vigilância em sala de aula. Todavia, como salientado no caso julgado pelo TJ/SP, deve-se assegurar o tratamento adequado das imagens captadas de modo a coibir eventual abuso na sua utilização, o que poderia se dar, e.g., por meio da aplicação da lei de acesso à informação (somente em relação às escolas públicas) ou ainda da lei de proteção de dados pessoais (ainda não inteiramente em vigor).
Isto denota, inclusive, a ressignificação do conceito de privacidade, antes centrado no trinômio pessoa-informação-sigilo, mas que hoje se funda no quadrinômio pessoa-informação-circulação- -controle. Cabe, assim, ao titular do direito à privacidade exigir formas de circulação controlada, mas não interromper o fluxo de informações que lhe digam respeito (RODOTÁ, 2008, p. 93). A sociedade da vigilância parece se desenvolver num caminho sem volta. Logo, a preocupação deveria se centrar em temas envolvendo circulação e controle desta informação captada pelas câmeras de segurança e não na alegação de violação da intimidade, do que não se poderia cogitar em se tratando de sala de aula, um espaço público.
Por seu turno, não se pode ignorar que a violência em sala de aula é uma realidade sem solução adequada. De acordo com a Pesquisa Internacional sobre Ensino e Aprendizagem (Talis), divulgada pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), em 2014, o Brasil, dentre os países participantes, é aquele que apresenta os maiores índices de violência contra professores, por meio de ofensas e intimidação. Corroborando estas informações, o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), em 2013, divulgou o estudo Violência nas escolas: o olhar dos professores, apontando que 44% dos professores entrevistados já sofreram algum tipo de violência em suas escolas. De acordo a pesquisa, a violência nas escolas implica um problema de segurança tanto para professores quanto para os alunos, impactando severamente no processo de aprendizagem.
No mais, conforme decidiu o STJ, no REsp 1.142.245, a garantia da segurança dentro do estabelecimento de ensino é dever do Estado. No caso, que envolveu ato de violência praticado por aluno contra professora no ambiente escolar, o Distrito Federal foi condenado a pagar indenização por danos morais à docente, em razão da omissão na garantia da segurança. No estado de São Paulo, o “Sistema de Proteção Escolar ”, que visa à prevenção de conflitos na escola, disponibilizou câmeras de vigilância a diversas escolas públicas, conforme as necessidades do local. Ademais, cumpre anotar que não são raras as escolas privadas que fazem uso deste mecanismo de segurança, inclusive ofertando o monitoramento por câmeras como um diferencial de seus serviços.
Tratar do direito fundamental à segurança (art. 144, CF) sob o prisma da prevenção de riscos é, pois, fundamental para que se avalie a possibilidade de colocação de sistema de monitoramento por câmeras nas escolas, inclusive nas salas de aula, como forma de garantir o direito à educação e o princípio da proteção integral.
Finalmente, quanto à liberdade de ensinar e aprender (CF, art. 206, inciso II), forma de manifestação do pensamento específica do magistério, o enunciado constitucional engloba uma dimensão objetiva e outra subjetiva. Esta diz respeito aos sujeitos do conhecimento; aquela se relaciona à liberdade do professor de escolher o objeto do ensino a transmitir, liberdade condicionada aos currículos escolares e aos programas oficiais de ensino (SILVA, 2014, p. 802). Conforme Pontes de Miranda (1947, p. 113) já alertava, não se pode confundir a liberdade de ensinar, que resulta da objetividade, da investigação da verdade, com o direito fundamental do indivíduo quanto à opinião. Para o autor o estado contemporâneo tem de ser educativo e a liberdade de ensinar assume a característica de verdadeira garantia institucional.
A sociedade da vigilância parece se desenvolver num caminho sem volta.
E por esta razão, tendo em conta a objetividade desta garantia que é a liberdade de ensinar e aprender, não se deve encará-la como um direito absoluto, até porque está necessariamente vinculada às finalidades e programas da educação nacional. Perquire-se, todavia – e isto foi motivo de intensos debates jurisprudenciais e legislativos –, se a colocação de câmeras de segurança em sala de aula poderia gerar lesão a tal direito fundamental.
Não restam dúvidas de que vigilância constante é fator inibidor da espontaneidade, podendo gerar artificialidade nas relações sociais. Trata-se de uma espécie de liberdade monitorada, que, de certo modo, se assemelha àquela abordada por Foucault (2010, p. 191-194) ao tratar do Panóptico de Bentham, que se destinava a induzir à sensação de vigilância constante e à modificação de comportamentos, com vistas a assegurar o funcionamento do poder. Mas falar-se em restrição da citada garantia constitucional em razão da implementação deste mecanismo de segurança parece exagero. Não há evidências de lesão à liberdade de ensinar e aprender e, como salientado pelo TJ/SP no julgamento do caso supracitado, não se poderia falar em constrangimento ou censura à liberdade do professor ou aluno se estes praticam suas atividades de acordo com a legalidade.
Por sua vez, hoje, o cidadão está exposto ao monitoramento por câmeras em diversos ambientes, e.g., nas ruas, no trabalho, em elevadores, restaurantes, etc. Segundo a Associação Brasileira das Empresas de Sistemas Eletrônicos de Segurança (Abese), em 2011, a cidade de São Paulo chegou a registrar mais de um milhão de câmeras, numa média de um aparelho para cada dez habitantes. E, este tipo de vigilância quase que onipresente, fundado na ideia de insegurança pública, por si só, não implica restrição à espontaneidade ou liberdade do indivíduo.
Porém, na análise da garantia da liberdade de ensinar e aprender deve-se ter sempre em mente que se está a tratar de um princípio fecundador do processo de aprendizagem, que supõe processos contínuos de interação e formas flexíveis de construção do dinamismo do cotidiano escolar (CARNEIRO, 2015, p. 62-63). Também não se pode ignorar sua direta relação com o direito à privacidade, que é de suma importância para o desenvolvimento pessoal dos alunos, em vista ser a escola um local privilegiado para a formação do cidadão. A violação reiterada do direito à privacidade poderia gerar a banalização da confiança e do respeito das relações individuais (COSTA JR., 1970, p. 23).
Nas palavras de Passos (1989, p. 63), “a privacidade é hoje o reduto último da resistência do indivíduo às forças que operam no sentido de seu aniquilamento [...]. Protegê-la é a forma mais segura de preservar a liberdade. E a liberdade é o essencial do homem, porque sem ela a humanização do animal homem se frustra [...]”.
Feitas estas considerações, nota-se que o problema posto não comporta resposta cômoda, por envolver a colisão de direitos fundamentais, cuja solução necessariamente esbarra na restrição do exercício de direito(s) relevantíssimo(s), tarefa esta que é sempre complexa, o que denota a dificuldade em se encontrar unanimidade a respeito do assunto.
4 Conclusões
Os casos examinados demonstram que a interpretação constitucional aponta novos meios de se assegurar direitos fundamentais, além de propiciar o seu fortalecimento. Liberdade de ensinar e aprender, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas são garantias a serem preservadas na formação do indivíduo e do cidadão pela educação. O caso do Pesp é significativo nesse sentido, patente a sua inconstitucionalidade em detrimento de valores democráticos.
Tema conexo é o do direito à privacidade nas escolas, fundamental para o desenvolvimento pessoal, pois possibilita a reflexão crítica sobre as relações sociais. Nesse caso, revelou-se, ademais, a imprescindibilidade de se adotarem práticas em conformidade com as leis e que garantam a adequada proteção às imagens coletadas no ambiente escolar, como exigência do direito à privacidade na era informacional.
De tudo resulta a evolução dos conflitos envolvendo o direito à educação, assinalando um ponto de inflexão na jurisprudência educacional e elevando-a a níveis mais complexos de proteção do direito à educação, não mais centrada na garantia de prestações estatais positivas, mas na de liberdades individuais. Seu efeito, portanto, é a fixação dos limites da autonomia privada frente ao Estado, particularmente no campo da educação pública.
O problema é que essa tendência não significa a superação de questões recorrentes da educação brasileira, como financiamento, formação adequada de professores, garantia de qualidade em todos os níveis de ensino – matérias não levadas ao Judiciário pelos jurisdicionados. Em outras palavras, longe de haver positiva alteração qualitativa das demandas, assinalando a melhoria da educação pública, dá-se apenas a expansão daquelas.
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1 lei 12.928 DE 13 DE ABRIL DE 2018. Acesso em: 8 fev. 2019.
2 Decreto 678, de 1º/11/92. Acesso em: 8 fev. 2019.
3 ADIn 4.439-DF ,j.27/9/17. Acesso em: 8 fev. 2019.
4 Lei 9.394/96. Acesso em: 8 fev. 2019.
5 Base Nacional Comum Curricular em: Acesso em: 8 fev. 2019.
6 Cf. Cetic.br e Nic.br – TIC Kids online Brasil 2017 – pesquisa sobre o uso da internet por crianças e adolescentes no Brasil. Comitê Gestor da Internet no Brasil – cgi.br, São Paulo, 2018.
7 Pesquisa nacional de saúde do escolar: 2015/IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais. Rio de Janeiro: IBGE, 2016. Acesso em: 8 fev. 2019.
8 Decreto 99.710/90. Acesso em: 8 fev. 2019.
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CARNEIRO, Moacir Alves. LDB Fácil – leitura crítico-compreensiva artigo a artigo. 23. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2015.
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PASSOS, J. J. Calmon de. A imprensa, a proteção da intimidade e o processo penal. Revista Forense, v. 324, p. 61-67, out./dez. 1989.
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______. Comentário Contextual à Constituição. 9. ed. São Paulo:
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O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, ano XXXIX, nº 141, de maio de 2019.
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*Nina Ranieri é professora associada da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
*Letícia Antunes Tavares é juíza de Direito do Estado de São Paulo. Doutoranda pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.