Nessa semana, o Governo Federal editou a Medida Provisória 881/19 – A MP da “Liberdade Econômica”. Em sua conta do Twitter¸ o Ministério da Economia declarou se tratar do “processo com maior escopo de desburocratização, desregulação e liberalização da história da economia no Brasil”1. No simbólico 1.º de maio, o economista Ricardo Amorim afirmou que a vida das pequenas empresas e startups passará a ser menos difícil, prevendo incremento do empreendedorismo e de vagas de trabalho2.
Parece-me positivo que nossa secular cultura intervencionista tenha que passar a considerar a densidade do direito fundamental à livre iniciativa, agora explicitada com mecanismos de favorecimento à inovação, controle de arbitrariedades e respeito aos contratos. No entanto, embora o conjunto da MP traga perspectivas otimistas, ele embute um detalhe paquidérmico: o fim da autonomia patrimonial pela mudança da regra-base de desconsideração da personalidade jurídica contida no art. 50 do Código Civil.
Apesar das flexibilizações direcionadas a relações específicas – consumeristas, ambientais, tributárias e trabalhistas –, a regra-base de desconsideração da personalidade jurídica se manteve incólume por quase duas décadas: o rompimento da autonomia patrimonial, permitindo-se adentrar no patrimônio particular de sócios de pessoas jurídicas com responsabilidade limitada, só se daria em caso de desvio de finalidade ou confusão patrimonial3.
O que fez, então, o presidente da República? Mudou o conceito de desvio de finalidade. Geralmente associado a práticas que envolvessem a simulação do objeto social, dando aparência de licitude à finalidade da atividade empresária4, ele passa a ser considerado da seguinte forma: “utilização dolosa da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza”5. Pasmem.
Ora, é claro que a desconsideração da personalidade jurídica só tem lugar quando há ilicitude. No entanto, enquanto a regra-base original restringe os limites desta, a MP simplesmente permite que patrimônios pessoais sejam atingidos quando haja a prática de atos ilícitos “de qualquer natureza”. Sendo mais claro, qualquer ilícito, seja contratual ou extracontratual, poderá servir como pretexto ao rompimento da autonomia patrimonial sob o argumento de que houve dolo eventual. Os insumos não chegaram a tempo? O protesto foi feito indevidamente? O cliente escorregou na sala de reunião? Tudo bem. Ninguém queria que isso acontecesse, mas foi assumido o risco de atrasos, falhas e acidentes. Na falta de patrimônio próprio para compensar o dano, rompam a barreira da personalidade! – Dirão.
Quanto menos seguro o investidor se sentir quanto à abrangência de sua responsabilidade ao aportar capital em uma sociedade empresária, mais atrativo será emprestar seu capital ao Tesouro Nacional ou a instituições financeiras6. Se é certo que “o valor maior de toda ciência consiste em dizer-nos quais seriam as consequências caso as condições se tornassem diferentes do que são”7, o parlamento e a presidência da República precisam estar atentos à autossabotagem constante da MP. Não há desburocratização, inovação e liberalização que resistam ao indisfarçável risco jurídico da alteração da regra-base de desconsideração da personalidade jurídica.
1 Disponível aqui
2 Disponível aqui
3 Art. 50 do Código Civil.
4 Por todos, cf. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. v. 1. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 395.
5 Art. 7º da MP, inserindo um § 1º no art. 50 do Código Civil.
6 LEITE, Marcelo Lauar. Limitação da responsabilidade patrimonial como fator de proteção ao investimento: razões e propostas para uma missão de resgate. Revista Semestral de Direito Empresarial, Rio de Janeiro, n. 18, jan-jul. 2016, p. 135-183.
7 HAYEK, F. A. Direito, legislação e liberdade: uma nova formulação dos princípios liberais de justiça e economia política. v. 1. Tradução de Anna Maria Capovilla et al. São Paulo: Visão, 1985, p. 12.
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*Marcelo Lauar Leite é advogado. Professor Adjunto da UFERSA. Doutor em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.