Migalhas de Peso

Incongruências na responsabilidade tributária II

A responsabilidade tributária do sócio-gerente deve ser mensurada em cada caso concreto, por meio de produção de provas; nos termos da lei, com a ampla defesa e contraditório, nunca podendo presumi-la, ante a mera não-localização da empresa no domicílio fiscal.

7/5/2019

Em artigo publicado no Migalhas [4.1.19, 4.590], referimos à necessidade de prévio processo administrativo-tributário para a caracterização da responsabilidade pessoal dos sócios, nas hipóteses do artigo 135, do CTN, porquanto assim exige a Constituição Federal, ao albergar princípios e valores constitucionais. Nessa linha, a instrução normativa 1862/18, da Receita Federal do Brasil, dispôs sobre o procedimento administrativo prévio à imputação da responsabilidade tributária, no qual, dentre outros aspectos, trazidos pelo ato administrativo, permite-se, ao interessado, a impugnação do auto de infração. Cumpre-se, portanto, o devido processo legal formal.

 

Assim: A partir da declaração de inconstitucionalidade do artigo 13 da Lei nº 8.620/93, conforme o RE n.º 562.276/RS, apreciado sob o regime da repercussão geral (art. 543-B do [antigo] Código de Processo Civil), para a responsabilização do sócio pelo inadimplemento de débitos contraídos pela empresa executada, não basta que seu nome conste do título executivo, cabendo ao Fisco demonstrar a presença de um dos requisitos do artigo 135 do Código Tributário Nacional.” (Tribunal:TRF3; Processo:Ap - Apelação Cível - 1625756 / Sp 0010751-90.2009.4.03.6182; Relator: Des. Marcelo Saraiva; Órgão Julgador:4ª Turma; Data do Julgamento:19/10/2016;Data de Publicação:22/11/16.

Neste momento, o assunto é similar: pretende-se rechaçar o entendimento consagrado pela jurisprudência, no sentido da súmula 435, do STJ: Súmula 435 - Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente. (Súmula 435, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 14/4/10, DJe 13/5/10). 

De acordo com esse preceito, seguido pelas cortes regionais, se a ‘empresa’ não tiver sido localizada [por oficial de justiça] no local do domicílio fiscal, presume-se a dissolução irregular dela, proporcionando o redirecionamento da execução fiscal contra o sócio-gerente, por ofensa à lei. (art.135, do CTN).

Ora, o princípio do contraditório e ampla defesa integram o devido processo legal, garantia constitucional, incrustada no regime democrático de direito. A ausência de defesa, ou impugnação, pode levar a decisões administrativas, ou jurisdicionais, precipitadas, sem a análise de todos os aspectos práticos e jurídicos do caso concreto, atingindo o princípio da segurança jurídica, norte, vetor da república brasileira.  Decisões essas que conteriam, na verdade, vício de motivação, ante a singela falta de (re) conhecimento de todos os fatos e situações jurídicas necessários ao deslinde justo, coerente e seguro do problema. Essa exigência constitucional tem especial relevo no caso da presunção da dissolução irregular da ‘empresa’, na forma da súmula 435, porque a certidão da dívida ativa, documento público que fundamenta a ação executiva, não contém a indicação dos responsáveis tributários; pois, a rigor, a dissolução irregular é constatada [equivocadamente] mediante certidão de oficial de justiça, nos autos da ação de execução fiscal, por meio da qual declara-se a não-localização da sociedade empresarial no endereço fiscal. Dessa maneira, habitualmente, é no bojo da ação executiva que se constata a situação supostamente irregular da empresa.

Mesmo nessa hipótese, se, eventualmente, constar os nomes dos responsáveis tributários nas CDAs, deve-se perquirir se houve devida apuração da responsabilidade, no âmbito [prévio] do processo administrativo-tributário, sob pena de nulidade da CDA e da ação executiva proposta; incluir responsáveis tributários nas CDAs, sem motivação em processo administrativo, leva à invalidade da própria CDA e dos atos subsequentes, inclusive os praticados na ação de execução fiscal.

Portanto, antes da retomada da ação de execução fiscal contra responsáveis tributários, imprescindível a oportunidade de produção de provas, com contraditório e defesa, nos moldes do Código de Processo Civil, ou seja, no bojo do incidente descrito no artigo 133 e seguintes dessa legislação. 

Outro aspecto muito importante, igualmente abordado de forma sucinta no artigo anterior, concerne à ausência de nexo causal entre o fato de o estabelecimento comercial não estar funcionando no domicílio fiscal e a responsabilidade tributária do sócio-gerente.

A responsabilidade deste, no caso, decorre da ofensa à lei (art135, CTN). Ora, as condutas ilegais dos sócios-gerentes consideradas relevantes só podem ser aquelas vinculadas à hipótese de incidência tributária, por exemplo, nos casos de fraudes fiscais.  

Além disso, o erário costuma considerar, para cobrar tributos dos responsáveis tributários, o período da hipótese de incidência, especificamente aquele no qual o sócio exerceu a gerência. Ora, a verificação da ‘paralisação irregular’ das atividades da empresa é momentânea, episódica; e posterior ao fato imponível; não pode ser o marco para a responsabilização; não serve para atribuir responsabilidades por fatos pretéritos...!!! Se fato imponível é aquele efetivamente ocorrido, num tempo e lugar [Geraldo Ataliba, Hipótese de Incidência Tributária, p.54, Malheiros, 2004), a paralisação das atividades da empresa, quando muito, poderia servir para atribuir responsabilidades tributárias a situações futuras, ou seja, após a paralisação irregular, se presentes os pressupostos para a ‘tributação’.

Qual o vínculo entre a suposta paralisação de atividade empresarial e o resultado (não-pagamento de tributos), quando nem se sabe, ao certo, o momento da paralisação, e se é que houve, ao se considerar o período pretérito do fato imponível? 

As normas jurídicas são interpretadas a partir do conjunto do sistema, bem como da realidade social que o cerca. Assim, há dois aspectos importantes, o primeiro dos quais, já abordado, concerne à ausência de nexo causal entre os pontos extremos da relação jurídica. Quanto ao segundo, atém-se à necessidade de o intérprete ter de verificar o que comumente acontece, nos padrões da razoabilidade, à medida dos comportamentos sociais, a fim de extrair da norma a máxima eficácia.

No ponto, as sociedades comerciais, em vista dos inúmeros compromissos que assumem, têm tido dificuldades imensas para a continuidade de suas atividades; assomam a elevada carga tributária, ações trabalhistas, burocracias na administração pública etc., sem falar na pífia atividade econômica brasileira, nos últimos anos.

Nessas condições, se o empresário pretender encerrar suas atividades, por meio de pedido de arquivamento do distrato social, na Junta Comercial, poderá encontrar óbices intransponíveis, tais a quitação, ou a assunção, de tributos, de FGTS etc, além de requisitos para a baixa do CNPJ, na Receita Federal; e nos órgãos estaduais e municipais; INSS, CEF (FGTS), exigências necessárias para que se possa obter o beneplácito desses órgãos.

Assim, as empresas, no limite de sua capacidade financeira, acabam por desistir, pura e simplesmente, de operar; assolado por dívidas fiscais, de fornecedores, trabalhistas, num emaranhado de problemas insolúveis, não resta ao empresário senão desligar-se da atividade, ante a impossibilidade jurídica e material de continuá-la.

Trata-se de estado de fato intransponível, ante as incertezas e dubiedades do sistema jurídico-normativo e a arcaica e risível atividade econômica brasileira, comprometendo toda sorte de investimentos no país!

Portanto, a responsabilidade tributária do sócio-gerente deve ser mensurada em cada caso concreto, por meio de produção de provas; nos termos da lei, com a ampla defesa e contraditório, nunca podendo presumi-la, ante a mera não-localização da empresa no domicílio fiscal.

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*Heraldo Garcia Vitta é advogado, consultor jurídico. Juiz Federal aposentado. Professor, mestre doutor em direito.

 

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