1. Introdução
Em 2009, a AASP prestou uma homenagem aos 20 anos do Superior Tribunal de Justiça com a edição da Revista do Advogado 103. Agora passados 30 anos da instalação do Tribunal da Cidadania, como o STJ se notabilizou entre os jurisdicionados, a nova edição da revista vem a público para tratar do auspicioso fato.
Na ocasião do lançamento da revista comemorativa dos 20 anos, os coordenadores Marcio Kayat e Roberto Rosas ressaltaram a grandiosidade dos números de feitos julgados e comentaram que, em breve, a Corte Superior se tornaria o tribunal mais avançado do país em termos de tecnologia, que estava para ser implantada à época pela mão do então ministro presidente, Cesar Asfor Rocha.
Por sua vez, na apresentação da revista, Asfor Rocha destacou o protagonismo dos advogados na evolução do Direito e de suas instituições.
Feitas essas rápidas considerações, da minha parte, tenho uma ligação pessoal e histórica com o STJ, que se iniciou com o antigo Tribunal Federal de Recursos, corte judicial que se transformou, por determinação da Constituição Federal (CF) de 1988, no atual STJ.
Com efeito, a Assembleia Nacional Constituinte decidiu transformar o Supremo Tribunal Federal (STF) em corte constitucional e atribuir as competências que lhe foram retiradas ao STJ. Já as competências do TFR, de segunda instância da Justiça Federal, foram atribuídas aos cinco tribunais regionais federais criados pela nova Carta e que foram sediados, respectivamente, no Distrito Federal, no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Porto Alegre e no Recife. Cortes que deveriam ser instaladas em seis meses contados da promulgação da Carta.
Foi então que se movimentaram advogados e antigos ministros do TFR, os primeiros para indicar ou se apresentar como possíveis candidatos a preencher os cargos para juízes do quinto constitucional destinados à classe dos advogados. E os ministros, para proceder a uma avaliação prévia das indicações e candidaturas.
À época, procurador do Estado de São Paulo,1 advogado militante e membro do Conselho da AASP, com o incentivo de amigos, resolvi me candidatar ao cargo de juiz do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3). Ciente da minha candidatura e do apoiamento de Mário Sérgio Duarte Garcia, o ministro Cid Flaquer Scartezzini passou a me apresentar aos demais ministros da corte que iriam votar nos candidatos que integrariam a lista respectiva, cuja elaboração obedeceu ao disposto no art. 27, § 7º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).
Dos então 22 ministros do TFR, conhecia, além, é claro, do ministro Cid, os ministros Carlos Mário Velloso e o saudoso Miguel Ferrante, que fora juiz federal em São Paulo.
Pois bem, aprovada a lista, para preencher as duas vagas existentes no TRF com sede em São Paulo, fui um dos seus quatro integrantes. Não é necessário muito esforço de raciocínio para se intuir que, não fosse o forte apoio do ministro Cid Flaquer Scartezzini, eu não teria integrado a lista nem viria a ser nomeado pelo então presidente da república, José Sarney.
Voltando ao STJ, é importante registrar o nome dos ministros que o integraram em sua composição inicial. Foram eles: Edson Vidigal, José de Jesus Filho, Ilmar Galvão, Nilson Naves, Carlos Thibau, Jesus Costa Lima, Cid Flaquer Scartezzini, Geraldo Sobral, Costa Leite, Eduardo Ribeiro, Dias Trindade, Assis Toledo, Garcia Vieira, Antônio de Pádua Ribeiro, Pedro Acioli, Romildo Bueno de Souza, Carlos Velloso, José Dantas, Armando Rollemberg, Gueiros Leite, Washington Bolívar, Torreão Braz, William Patterson, Miguel Ferrante, José Cândido e Américo Luz, todos oriundos, ou como disse o art. 27, § 2º, do ADCT, aproveitados do TFR. Os demais foram nomeados depois de terem composto a lista tríplice definida pelo antigo TFR, respeitados os requisitos do art. 104, parágrafo único, da CF. Foram eles: Athos Gusmão Carneiro, Luiz Vicente Cernicchiaro, Waldemar Zveiter, Luiz Carlos Fontes de Alencar Francisco Cláudio de Almeida Santos, Sálvio de Figueiredo Teixeira, Raphael de Barros Monteiro Filho, os quais foram empossados em 18 de maio de 1989.
A presidência da corte ficou com o ministro Evandro Gueiros Leite.
Dali em diante, por força do exercício do cargo e de ter sido presidente da Associação dos Juízes Federais (Ajufe),2 meu contato com os integrantes do STJ se amiudou e foi muito útil para a minha formação, bem como para o exercício da magistratura federal.
2. A corte e a influência de sua arquitetura. Acesso físico
Feita essa introdução é hora de falar sobre o tema. Inicie-se por uma questão arquitetônica.
Iniciando a leitura de Os Nove por dentro do mundo secreto da Suprema Corte (TOOBIN, 2018, p. 13), chamou-me a atenção no prefácio uma observação sobre a escadaria que existe na entrada do prédio da Suprema Corte americana. Observou o autor que o arquiteto Cass Gilbert tinha a preocupação de projetar uma casa nova para “um dos três maiores elementos do nosso governo” com a imponência dedicada ao Capitólio, o Monumento a Washington e o Memorial a Lincoln. Isto porque, anota Toobin, o terreno atribuído, sobre ser assimétrico, era apertado entre os edifícios imponentes do Capitólio e da Biblioteca Nacional.
Diante disso, o arquiteto Gilbert pensou em um expediente para, dentro das limitações físicas, “transmitir aos visitantes a magnitude e a importância do processo judicial”. Sem espaço no terreno para impor aos usuários e visitantes uma longa caminhada para alcançar o prédio, projetou uma enorme e imponente escadaria, como um obstáculo a ser transposto, de tal sorte que
“A subida até o topo seria a experiência simbólica essencial da Suprema Corte, uma manifestação física da marcha americana para a justiça”.
Bem, deve estar pensando o paciencioso leitor, mas qual a relação dessa observação do autor americano com as características do prédio que abriga o STJ?
É que o STJ, fazendo jus ao título que ostenta, Tribunal da Cidadania, não encomendou ao festejado arquiteto que o projetou, Oscar Niemayer, um prédio com barreiras físicas aos jurisdicionados e seus defensores. No caso, o acesso ao STJ depende, apenas, de se suplantarem as barreiras estabelecidas nos arts. 105 da CF e 1.029 e ss. do Código de Processo Civil (CPC).
Outro aspecto arquitetônico interessante que os jurisdicionados e visitantes logo notam quando se dirigem às salas de sessões de julgamento é que o público fica instalado num plano superior e os ministros, num plano inferior. Provavelmente, o arquiteto aqui teve uma preocupação diversa daquela do arquiteto da Suprema Corte americana e quis deixar claro que os magistrados, como agentes do Estado, são servidores públicos. Não estão no cargo para outra coisa senão, observando a Constituição e as leis do país, prestar serviços jurídicos para atender os cidadãos, os únicos e verdadeiros titulares do poder. Aliás, tal como adverte o parágrafo único do art. 1º da Carta Federal:
“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
Deveras, tirando o fato de que a locomoção dos cidadãos no Distrito Federal é difícil e muito dependente de transporte individual – mas essa dificuldade não é exclusiva de quem procura o STJ –, o acesso aos edifícios que compõem a Corte Superior é muito fácil: quase todos se situam no mesmo plano e quando estão num plano diferente, além das escadas de degraus espaçados, há as rampas de inclinação suave, ambas bem confortáveis para os usuários.
O arquiteto quis deixar claro que os magistrados, como agentes do Estado, são servidores públicos.
É bem verdade que as distâncias internas a serem percorridas não favorecem os que têm dificuldades de locomoção, mas o obstáculo das escadarias mencionadas anteriormente não existe.
3. Facilidades de acesso aos feitos
Além de inexistirem as barreiras físicas, o acesso dos advogados aos ministros, com raríssimas exceções, não é difícil.
Por outro lado, em razão do seu pioneirismo em matéria de informática, é inquestionável que o uso da tecnologia, como vaticinaram Rosas e Kayat (ASSOCIAÇÃO, 2009, Nota dos Coordenadores), eliminou a barreira da distância geográfica, que, dado o nosso imenso território, separa o jurisdicionado da corte.
Hoje qualquer um pode, acessando o sítio eletrônico do tribunal, acompanhar o andamento processual. Além disso, receber informações sobre o andamento processual via push, remeter memoriais via e-mail para os ministros ou participar de audiências por meio de videoconferência com o uso das mais diversas ferramentas, inclusive gratuitas, como o Skype.
4. Atividades da corte
No que se refere às atividades da corte, é bom recordar que, dentre as competências constitucionais do STJ, a mais relevante, de dizer o direito (KELSEN, 1979) federal aplicável (art. 105, inciso III, alíneas a a c, da CF), foi herdada do STF, que, como já foi dito, se transformou em corte, primordialmente constitucional, quando da promulgação da atual Carta Magna.
Essa tarefa, todos reconhecem, vem sendo bem desenvolvida pelo STJ nesses 30 anos de existência e teve reflexos importantíssimos na vida dos jurisdicionados.
A propósito da importância das decisões do STJ há um artigo publicado, em 2 de janeiro último, intitulado: “Os 30 anos do STJ – Principais precedentes que marcaram sua evolução”, de autoria do ministro Luís Eduardo Salomão. Nele, vale a pena ler, são listados os 30 precedentes, com rápidos, mas importantes comentários, considerados mais relevantes sobre temas, como: a distinção entre companheira e concubina para fins de considerar válida disposição de última vontade e sua capacidade de receber o legado; responsabilidade objetiva do poluidor na reparação do dano ambiental; adimplemento substancial da obrigação por parte do segurado para descaracterizar a resolução do contrato por inadimplência; descabimento da prisão civil do depositário infiel; extensão da capacidade postulatória das associações, com menos de um ano de vida, para a propositura de ação coletiva; responsabilização penal da pessoa jurídica pela prática de delito ambiental, quando o ato haja sido praticado por pessoa física, em nome e proveito da empresa, dentre outros.
5. Jurisprudência defensiva. Ressalva
Mas nem tudo são flores! De fato, há uma queixa recorrente quanto à chamada jurisprudência defensiva. Disse-se recorrente porque quando da edição da revista da AASP, comemorativa dos 20 anos do STJ, o saudoso ministro Humberto Gomes de Barros advertiu:
“Às vésperas de completar 20 anos, o Tribunal adolescente enfrenta crise de identidade. Envolvida nesse dilema, a Corte vê-se na iminência de fazer uma opção: consolidar-se como líder e fiadora de segurança jurídica ou transformar-se em reles Terceira Instância. Escolhido este último termo, a Corte passará a servir apenas como instrumento para alongar o curso dos processos e dificultar ainda mais a prestação jurisdicional. Intoxicado pelos vícios do processualismo e fragilizado pela ineficácia de suas decisões, o STJ parece mergulhar em direção a esta última hipótese.
Para fugir a tão aviltante destino, o STJ foi compelido a adotar a denominada ‘jurisprudência defensiva’, consistente na criação de pretextos para impedir a chegada e o conhecimento dos recursos que lhe são dirigidos. Prisioneiro do defensivismo, deixa de solucionar questões fundamentais para esconder-se no escapismo do ‘não conheço’” (AASP, 2009, p. 57, grifo nosso).
Antes de formular outras considerações sobre o subtema, recorde-se a elegante advertência de José Carlos Barbosa Moreira (2006, p. 155):
“É inevitável o travo de insatisfação deixado por decisões de não conhecimento; elas lembram refeições em que, após os aperitivos e os hors d’oeuvre, se despedissem os convidados sem o anunciado prato principal”.
O atual CPC procurou impedir o uso de armadilhas processuais para se denegar justiça.
Para além de recorrente, o tema é atual. Tão atual que essa Associação, no final do ano passado, depois de ouvido o Conselho Diretor e o Colégio Superior, integrado pelos seus ex-presidentes, ratificou a manifestação conjunta das entidades da advocacia Associação dos Advogados de São Paulo (AASP), Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), seccional paulista da OAB, Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa) e Movimento de Defesa da Advocacia (MDA), condenou a prática de se não conhecer o mérito dos recursos, apegando-se demasiadamente à forma.
É bem verdade que o atual CPC procurou impedir o uso de armadilhas processuais para se denegar justiça. Porém, a inventividade do ser humano é ilimitada, tanto é assim que, no momento, litigando contra fatos notórios, grassa uma grande discussão sobre se segunda e terça-feira de Carnaval são ou não feriado. E se as partes deveriam, sob pena de não conhecimento de seus recursos, comprovar o fato quando de sua interposição.
Tudo isso apesar de inexistir, no Brasil, ser humano minimamente informado, que desconheça que, nos dias de folia, não há expediente forense.
A despeito disso, discute-se se um recurso interposto de decisão cuja manutenção ou reforma irá interferir na esfera de direitos do jurisdicionado pode ou não ser conhecido pela mera ausência de comprovação de que, no local de sua interposição, houve ou não expediente forense. E pior, sem se dar à parte a possibilidade de suprir essa deficiência. Neste passo, o que é pior, ignorando uma sábia regra do Regimento Interno do STJ (art. 86), que, para não onerar as partes, permite que erros como esse sejam sanáveis. Mesmo porque o requisito da comprovação da ocorrência de feriado local no momento em que foi interposto o recurso é um vício formal extrínseco. E mais grave, pois não há, coerentemente com o espírito e os princípios jurídicos3 que presidiram a reforma encetada, determinação legal estabelecendo que a sua ausência constitui-se vício insanável.
E os princípios, como advertia Geraldo Ataliba, valem mais do que a norma, pois são eles que dão o norte e orientam o rumo à interpretação e aplicação da lei.
Não que a corte não deva responder adequadamente aos abusos perpetrados pelas partes. Com certeza deve reagir, porém, utilizando-se dos instrumentos punitivos previstos em lei para desestimular o recurso interposto com nítido intuito procrastinatório. Mas não criar obstáculos para o conhecimento de um recurso sem perquirir seu conteúdo. E nesse passo, apegando-se a uma infração formal que no mais das vezes nem sequer foi questionada pela parte contrária.
De fato, a repercussão disso entre os jurisdicionados é a pior possível. Para ilustrar essa afirmação basta recordar a hipótese de partes que, em ações semelhantes, têm decisões distintas. Uma que recebe a prestação jurisdicional acolhendo a sua pretensão e outra que recebe a negativa. Não porque não tivesse razão, mas porque seu recurso ressentiu de uma mera demonstração formal de um requisito que poderia, facilmente, vir a ser suprido mediante determinação da corte, tal como determina o art. 86 do Regimento Interno do Tribunal, o princípio do aproveitamento dos atos e, por que não dizer, o bom senso.
6. Conclusão
As críticas não visam a desmerecer a qualidade dos trabalhos e dos benefícios que a criação e os 30 anos de existência proporcionaram aos jurisdicionados em particular e ao Brasil. Longe disso. Ao formulá-las tem-se em mente o aprimoramento do Tribunal da Federação.
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1 Aos procuradores era dado optar pelo regime da liberdade para advogar, exceto contra o Poder Público.
2 A entidade foi fundada por juízes federais que depois vieram a integrar o STJ, daí por que dentre os associados há ministros do STJ e do STF
3 Segundo universalmente aceito, os princípios valem mais do que as normas, de tal sorte que a regra que impõe ao recorrente a obrigatoriedade da demonstração do feriado local deve ser interpretada vis-à-vis o espírito da reforma e cum granus salis.
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ASSOCIAÇÃO dos Advogados de São Paulo. Revista do advogado, São Paulo: AASP, ano XXIV, n. 103, maio 2009.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 4. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1979.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Restrições ilegítimas ao conhecimento dos recursos. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 386, ano 102, 2006.
SALOMÃO, Luís Eduardo. 30 anos do STJ – Principais precedentes que marcaram sua evolução. JOTA. 2 jan. 2019.
TOOBIN, Jeffrey. Os Nove por dentro do mundo secreto da Suprema Corte. São Paulo: IDP; Saraiva, 2018.
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O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, ano XXXIX, nº 141, de abril de 2019.
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*Edgard Silveira Bueno Filho é advogado e sócio do escritório Lima Gonçalves, Jambor, Rotenberg & Silveira Bueno – Advogados, diretor de assuntos governamentais do IASP, foi procurador do Estado, juiz do TRF da 3ª Região, presidente da Ajufe e professor assistente mestre de Direito Constitucional na PUC-SP.