Em 1982, já no final, portanto, da chamada Ditadura militar (para aqueles que, como eu, acreditam que aqui tivemos uma), o então ministro-chefe do Gabinete Civil da Presidência da República, Leitão de Abreu, sentindo-se ofendido pelo editorial publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo, intitulado “Cai a máscara do falso liberal” (19.6.82), requereu ao ministro da Justiça providências e a abertura de processo criminal contra o diretor-responsável por aquele periódico à época, tudo com base na revogada Lei de Segurança Nacional (lei 6.620/78).
O tiro, todavia, saiu pela culatra, pois além da ação não ter ido adiante, em virtude da modificação legislativa (lei 7.170/83) que deixava de considerar crime contra a segurança nacional a ofensa à honra de ministro de Estado, a matéria então questionada, que até aquele momento estava restrita a um único veículo de imprensa, passou a ser replicada e reproduzida por diversos outros jornais, atingindo um número ainda maior de leitores, tudo como forma de reação à suposta “tentativa de limitar a liberdade de expressão da imprensa.”
Os anos se passaram e um caso similar voltou a acontecer.
No último dia 11 de abril, em matéria de capa, a revista Crusoé publicou reportagem afirmando que a defesa do empresário Marcelo Odebrecht havia apresentado à Justiça Federal em Curitiba documento no qual esclarecia que a expressão “amigo do amigo do meu pai”, que aparece em diversos de seus e-mails, seria na verdade o então advogado-geral da União no governo Lula, hoje ministro do Supremo Tribunal Federal, José Antônio Dias Toffoli.
Esta matéria vazia (a meu sentir), que não disse a que veio, mas que claramente não tinha qualquer cunho eminentemente informativo, foi prontamente retirada do ar por decisão do Ministro Alexandre de Moraes, que determinou que “...o site 'O Antagonista' e a revista 'Crusoé' retirem, imediatamente, dos respectivos ambientes virtuais a matéria intitulada 'O amigo do amigo de meu pai' e todas as postagens subsequentes que tratem sobre o assunto...”.
Porém, mais uma vez, o tiro saiu pela culatra, pois, assim como no “caso Leitão de Abreu”, a matéria agora questionada, que também estava restrita a um único veículo de imprensa, passou a ser difundida e publicada por diversos outros, atingindo um número infinitamente maior de leitores dada a velocidade de propagação da informação nos dias atuais, tudo, novamente, como forma de reação à suposta “censura”.
Pronto! Instaurava-se ali, uma vez mais no Brasil, a discussão sobre os limites à liberdade de Imprensa.
Mas, afinal, há ou não há (ou deve haver) limites à liberdade de imprensa? Por óbvio que sim. Tudo tem limite! E como disse o Ministro Dias Toffoli, nos dias que se seguiram à retirada do ar da matéria de Crusoé, a “liberdade de expressão não é absoluta”, e se não é absoluta ela é relativa e deve ter limites.
Seguindo a linha de raciocínio desta declaração do ministro Dias Toffoli, no atual ano de 2019, vale lembrar que já em 1966 a Organização das Nações Unidas relativizava a aqui e agora tão propagada “liberdade absoluta de imprensa”, mais precisamente no artigo 19 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, ao dispor que “O exercício do direito previsto no § 2º do presente artigo (...) poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto, ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para: a) assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas”
E assim deve ser, pois a liberdade de um termina onde começa a do outro, não é mesmo?
Isto porque, a honra e a imagem dos cidadãos não podem, e nem devem, em um Estado Democrático de Direito, ser arranhadas por sofismas lançados ao vento. Deve-se sim, e antes de tudo, inclusive em questões pessoais, levar-se em consideração a presunção de inocência, dando-se aos acusados o direito à ampla defesa e ao contraditório, princípios estes garantidos pela Constituição de 88.
A imprensa, quando municiada por pseudomoralistas e revanchistas de plantão, torna-se ainda mais perigosa, injusta, inescrupulosa e irresponsável.
Ademais, as opiniões e as matérias irresponsáveis, publicadas por uma mídia sensacionalista (ou "quarto poder"), trazem consequências gravíssimas às vidas de cidadãos sérios e honestos, o que não se pode nem se deve admitir.
Nesse sentido, como aqui gostamos muito de comparações com o exterior, vale lembrar que os princípios da liberdade de expressão foram postos pelo povo francês na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, em seus arts. 10 e 11, que assim estabelecem:
“Art. 10º. Ninguém pode ser molestado por suas opiniões, incluindo opiniões religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei.”
“Art. 11º. A livre comunicação das idéias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem. Todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei.”
Entretanto, a mesma França que consagra tais princípios é aquela que impõe, acertadamente, a meu ver, restrições e limites à atividade da imprensa para assegurar o respeito à honra, à imagem, aos direitos e à reputação de seus cidadãos, colocando tais premissas (e limites), em muitos casos, acima daquelas que garantem o acesso à informação. Vejam!
O Código Penal francês, em seu artigo 434-16, proíbe (em tradução livre) “A publicação, antes da intervenção da decisão jurisdicional definitiva, de comentários tendendo a exercer pressão para influenciar o depoimento das testemunhas ou a decisão das jurisdições de investigação ou julgamento...”1, ao contrário do que acontece aqui, onde as seguidas matérias jornalísticas nos vários meios de comunicação inflamam a população contra o acusado - repita-se, acusado -, e acabam gerando as famigeradas prisões “pelo clamor público” e posteriores condenações sem base legal, muitas delas excessivas e arbitrárias.
Já o artigo 35ter da lei francesa sobre a liberdade de imprensa, de 29 de Julho de 1881, em seu inciso I2, proíbe a divulgação, por qualquer meio que seja, da imagem de uma pessoa, identificada ou identificável, portando algemas ou correntes, ou que esteja sendo colocada em prisão preventiva por ocasião de um procedimento penal, antes de seu julgamento e/ou condenação, justamente o oposto do que vemos praticamente todos os dias no jornais e telejornais da manhã, tarde e noite por aqui, sobretudo quando esse “procedimento penal” tem o carimbo “Lava Jato”.
Esta mesma lei de 1881, em seu art. 38, proíbe a publicação dos atos de acusação e todos os outros atos de procedimentos criminais ou correcionais antes que eles tenham sido lidos em audiência pública, tudo para proteger e respeitar a famosa presunção de inocência, não aquela esquecida e tão massacrada do art. 5º, inciso LVII, da nossa Constituição de 88, mas aquela prevista no artigo 9º Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.
Parece até que estamos falando de um país pertencente a outra galáxia ou outra dimensão, mas estamos nos referindo à França, berço de inúmeras proteções à liberdade, inclusive a de imprensa e a de expressão, porém tudo dentro dos seus devidos limites.
Mas não é só. Há mais! E há algo ainda mais interessante.
É que esta lei francesa de 1881 já trazia em seu art. 273, já naquela época, tema atual da mais alta relevância, o combate às chamadas fake news, proibindo a publicação, difusão ou reprodução, por qualquer meio que seja, de “nouvelles fausses” ou fake news, o que, num primeiro momento, foi exatamente o que buscou o Ministro Alexandre de Moraes combater com a decisão de 12 de abril, pois como ele mesmo disse, os esclarecimentos feitos pela PGR “tornam falsas as afirmações veiculadas na matéria “O amigo do amigo de meu pai”, em tópico exemplo de fake news – o que exige a intervenção do Poder Judiciário”.
Esse também é o objeto e razão mesma de ser do tão criticado, porém necessário atualmente, inquérito aberto pelo ministro Toffoli e sob a relatoria do ministro Moraes, como por ele indicado e esclarecido na decisão que revogou a determinação de retirada do ar da matéria de Crusoé.
E o que vemos diuturnamente com a propagação destas fake news, sobretudo nos “tempos estranhos” que vivemos, é que há setores da imprensa, em especial aquela mais sensacionalista, noticiando fatos sem averiguar a sua veracidade, ou muitas vezes sem o devido cuidado e responsabilidade na divulgação do fato, ainda que verídico e verificado, o que traz consequências gravíssimas à honra, à imagem, à intimidade e à vida dos cidadãos, daí a necessidade de se impor limites a esse tipo de divulgação, como aqueles, porque não, previstos na legislação francesa.
No nosso ordenamento jurídico esse limite está inserido no inciso X do artigo 5º da Constituição de 1988, que assim dispõe:
“X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”
O coerente professor Alexandre de Moraes, muito antes de ocupar uma cadeira no Supremo Tribunal, e, portanto, muito antes da decisão de 12 de abril, já dizia que “Os direitos à intimidade e à própria imagem forma a proteção constitucional à vida privada, salvaguardando um espaço íntimo intransponível por intromissões ilícitas externas. A proteção constitucional refere-se, inclusive, à necessária proteção à própria imagem diante dos meios de comunicação em massa (televisão, rádio, jornais, revistas etc).”4
Já o ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça, Nilson Naves, quando presidia aquela Corte Superior, concedeu entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, em 21 de setembro de 2003, e lá já afirmava que “...não há contradição entre o princípio que proíbe qualquer restrição à liberdade de imprensa e o que protege a privacidade, a intimidade, a honra e a imagem das pessoas; se entrarem em choque, porém, deverá sempre prevalecer o direito do indivíduo à preservação de sua imagem.”
O próprio Superior Tribunal de Justiça já se manifestou sobre o tema, no julgamento do REsp 801.109/DF, de relatoria do ministro Raul Araújo (julgado em 12/6/12), no qual prevaleceu a tese de que “...a liberdade de expressão, compreendendo a informação, opinião e crítica jornalística, por não ser absoluta, encontra algumas limitações ao seu exercício, compatíveis com o regime democrático, quais sejam: (I) o compromisso ético com a informação verossímil; (II) a preservação dos chamados direitos da personalidade, entre os quais incluem-se os direitos à honra, à imagem, à privacidade e à intimidade; e (III) a vedação de veiculação de crítica jornalística com intuito de difamar, injuriar ou caluniar a pessoa (animus injuriandi vel diffamandi).”
Disso tudo o que se retira, voltando ao início e finalizando, é que a imprensa representa papel fundamental na manutenção do Estado Democrático, desde que tenha por finalidade, e razão mesma de ser, informar a sociedade com responsabilidade e dentro dos limites e princípios impostos pela própria Constituição de 88, sobretudo aquele que diz serem “...invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas...”, o que, sem sombra de dúvida, não gera qualquer ofensa à liberdade de imprensa, muito menos podem ser encarados (os limites) como atos de censura.
Tudo tem limite! Até mesmo a relativa liberdade absoluta de imprensa.
Pois como disse Dom Quixote a Sancho: “Pela liberdade, assim como pela honra, pode-se e deve-se arriscar a vida”.
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1 La publication, avant l'intervention de la décision juridictionnelle définitive, de commentaires tendant à exercer des pressions en vue d'influencer les déclarations des témoins ou la décision des juridictions d'instruction ou de jugement est punie de six mois d'emprisonnement et de 7 500 euros d'amende. Lorsque l'infraction est commise par la voie de la presse écrite ou audiovisuelle, les dispositions particulières des lois qui régissent ces matières sont applicables en ce qui concerne la détermination des personnes responsables.
2 I. – Lorsqu'elle est réalisée sans l'accord de l'intéressé, la diffusion, par quelque moyen que ce soit et quel qu'en soit le support, de l'image d'une personne identifiée ou identifiable mise en cause à l'occasion d'une procédure pénale mais n'ayant pas fait l'objet d'un jugement de condamnation et faisant apparaître, soit que cette personne porte des menottes ou entraves, soit qu'elle est placée en détention provisoire, est punie de 15 000 euros d'amende
3 La publication, la diffusion ou la reproduction, par quelque moyen que ce soit, de nouvelles fausses, de pièces fabriquées, falsifiées ou mensongèrement attribuées à des tiers lorsque, faite de mauvaise foi, elle aura troublé la paix publique, ou aura été susceptible de la troubler, sera punie d'une amende de 45 000 euros.
Les mêmes faits seront punis de 135 000 euros d'amende, lorsque la publication, la diffusion ou la reproduction faite de mauvaise foi sera de nature à ébranler la discipline ou le moral des armées ou à entraver l'effort de guerre de la Nation.
4 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada. São Paulo. Atlas. 2006. 6ª Ed. Pág. 225.
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*Pedro Naves é advogado e sócio do escritório Nilson Naves Advogados.