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Recuperação judicial: panorama de 14 anos da jurisprudência do STJ

Nesses 14 anos de vigência da LFR, o STJ se deparou com temas tormentosos, consolidando com ponderação e equilíbrio os interesses conflitantes – que são muitos e diversificados –, tendo por fundamento primeiro o princípio da preservação da empresa.

26/4/2019

Certa vez, Dwight D. Eisenhower1 disse que a busca vã pela segurança absoluta nos levaria à falência. No original, we will bankrupt ourselves in the vain search for absolute security.

A segurança absoluta não existe. É utópica. Em todas as atividades humanas há risco. Quanto maior o risco, menor a segurança, e vice-versa. Estão ligados.

Mas a busca por ela deve ser incessante, a fim de reduzir o risco.

No campo do Direito, a segurança jurídica encontra especial relevo.

Há “em seu conteúdo conceitos fundamentais para a vida civilizada, como a continuidade das normas jurídicas, a estabilidade das situações constituídas e a certeza jurídica que se estabelece sobre situações anteriormente controvertidas” (BARROSO, 2002, p. 49).

E ela tem notável influência no mundo dos negócios, em que a mensuração do risco é ínsita e indispensável. O empresário anseia por regras claras e um tanto quanto perenes, que conformem um horizonte de expectativa (Erwartungshorizont), de previsibilidade, estabilidade, elementos vitais na atividade empresarial, de forma a poder conduzir, planificar e desenvolver profissionalmente o seu mister econômico, com segurança e paz.

A Lei de Falências e Recuperações Judiciais (LFR – lei 11.101/05), que entrou em vigor em 2005, surgiu como proposta de reforço a essa segurança jurídica esperada pelo empresariado, evitando falências prematuras e resguardando ativas as empresas efetivamente viáveis. A função social da empresa, a preservação da atividade empresarial e dos empregos (art. 47) ganharam ares de mandamento primeiro.

A respeito da segurança jurídica, constou do parecer do anteprojeto:

“deve-se conferir às normas relativas à falência, à recuperação judicial e à recuperação extrajudicial tanta clareza e precisão quanto possível, para evitar que múltiplas possibilidades de interpretação tragam insegurança jurídica aos institutos e, assim, fique prejudicado o planejamento das atividades das empresas e de suas contrapartes” (TEBET, parecer 534/04, grifo nosso).

Ao longo desses anos, o STJ se deparou com diversos temas polêmicos. E firmou muitas posições, salutares e contribuidoras da segurança jurídica, conciliando a plêiade de interesses colidentes, mais acentuada nesse tipo de litigiosidade coletiva: os credores, almejando a satisfação do crédito, com menor prejuízo possível; o devedor buscando a sobrevivência e a preservação da empresa e do patrimônio; e a sociedade interessada na manutenção dos empregos e da atividade econômica.

A interpretação que prevaleceu no STJ, ao longo desses quase 14 anos de existência da norma, foi a da preservação da empresa. Dispositivo de tônus eminentemente principiológico, o art. 47 da LFR foi erigido pela jurisprudência a viga mestra da lei, assentando que

“a recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”.

Entretanto, a busca incansável pela preservação da empresa em crise gerou algumas distorções, que acabaram por ecoar no interesse dos credores e, de relanço, na própria segurança jurídica aspirada pela legislação especial. A exegese da preservação da empresa, que tem fundo nobre e deve ser prestigiada, se levada a ferro e fogo, tem o condão de desequilibrar o sistema, à medida que exerce influência direta sobre o outro lado da balança, ad instar de vasos comunicantes – para dar a um, é preciso tirar do outro (relação crédito/débito).

A busca pela preservação da empresa gerou distorções que acabaram por ecoar no interesse dos credores.

E é nesse contexto que algumas desconformidades surgiram, em temas específicos e esparsos da LFR.

Exemplo clássico, talvez que tenha envolvido a primeira polêmica na interpretação da LFR, foi a extensão do stay period, o prazo de suspensão das ações e execuções contra o devedor por 180 dias (§ 4º do art. 6º e art. 52, inciso III, da LFR).

Muito embora o legislador houvesse previsto expressamente que tal prazo seria “improrrogável”, o que se viu numa primeira abordagem do STJ foi a iterada autorização de sua prorrogação. O prazo de blindagem de 180 dias mostrava-se demasiadamente exíguo, comprometendo o fôlego e enfraquecendo o escudo contra a constrição de bens imprescindíveis à continuidade da atividade empresarial.

Entretanto, o que, num primeiro momento, notadamente em instâncias ordinárias, limitava-se à prorrogação por um mesmo período (mais 180 dias), acabou por ser ainda mais dilatado. O stay period, cuja pertinência da prorrogação ou não o STJ deixou a cargo do juízo da recuperação, passou a ser prorrogado sistematicamente até a realização das assembleias de credores, o que, muitas vezes, como a experiência mostra, tem-se alongado por vários anos, considerando as sucessivas suspensões das assembleias.

Se, de um lado, a prorrogação mostrava-se salutar para a empresa devedora, que persistia blindada contra o assédio dos seus credores, o mesmo não podia ser dito do lado dos credores.

Muitas garantias, dentre as quais as de caráter fiduciário (alienação e cessão fiduciárias), excluídas expressamente da recuperação judicial pelo § 3º do art. 49 da LFR, ficaram fadadas à temporária ineficácia, jungidas à blindagem do stay period.

Não é só. Recente orientação jurisprudencial do STJ ampliou ainda mais o período de suspensão, entendendo que a retomada do curso das ações e execuções não poderia se dar de forma automática, mesmo após a aprovação do plano de recuperação judicial. Foi ratificado que a análise ficaria a cargo do juízo da recuperação, considerando o caso concreto (REsp 1.212.243-SP, REsp 1610860-PB, AgInt no CC nº 154.731-SP, EDcl no AgRg no RCD no CC 134655-AL, AgInt no REsp 1717939-DF).

Com isso, o prazo de blindagem, na letra da lei tido como “improrrogável” e de caráter objetivo (180 dias), passou a ter caráter subjetivo, ficando a critério do juízo da recuperação judicial e dependente da análise do caso concreto, constelação que vem contribuindo para a insegurança jurídica do sistema e imprevisibilidade, posto que não há regra perene e certa de término do período suspensivo, como originariamente previsto em lei.

Em decisões isoladas e minoritárias, o próprio STJ vem alertando para o retrocesso representado pela indefinição das sucessivas prorrogações do stay period:

“[...] O legislador concatenou o período de suspensão de 180 dias com os demais prazos e procedimentos previstos no trâmite do próprio pedido de recuperação, que deve primar pela celeridade e efetividade, com vistas a evitar maiores prejuízos aos trabalhadores e à coletividade de credores, bem como à própria empresa devedora. A função social da empresa exige sua preservação, mas não a todo custo. A sociedade empresária deve demonstrar ter meios de cumprir eficazmente tal função, gerando empregos, honrando seus compromissos e colaborando com o desenvolvimento da economia, tudo nos termos do art. 47 da lei 11.101/05. Nesse contexto, a suspensão, por prazo indeterminado, de ações e execuções contra a empresa, antes de colaborar com a função social da empresa, significa manter trabalhadores e demais credores sem ação, o que, na maioria das vezes, terá efeito inverso, contribuindo apenas para o aumento do passivo que originou o pedido de recuperação. Em situações excepcionais, a serem oportunamente enfrentadas por esta Corte, a regra pode comportar exceções. Todavia, o temperamento banalizado e desmedido do prazo de suspensão pode, desde já, importar retrocesso para o drama vivido na época das intermináveis concordatas, que o legislador procurou sepultar. [...]” (2ª Seção, AgRg no CC 110.250DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 8/9/2010, DJe de 16/9/10, grifo nosso).

Outro tema tormentoso sobre o qual se debruçou a corte superior foi o do prosseguimento das ações e execuções contra devedores solidários. Em sede de julgamento de recursos repetitivos, decidiu o tribunal que a recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das execuções nem induz suspensão ou extinção de ações ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória, pois não se lhes aplicam a suspensão prevista nos arts. 6º, caput, e 52, inciso III, ou a novação a que se refere o art. 59, caput, por força do que dispõe o art. 49, § 1º, todos da LFR (REsp 1.333.349-SP).

Ainda assim, polêmico e recente julgado entendeu que se o plano aprovado previsse a supressão de tais garantias reais e fidejussórias de coobrigados, todos os credores a ela se submeteriam, indistintamente (REsp 1532943-MT). O acórdão foi posteriormente retificado para limitar a aludida supressão apenas aos credores submetidos à recuperação judicial. Tal entendimento, contudo, não tem prevalecido. Em instâncias estaduais, ainda reina a orientação de que se o credor votou contra a aprovação do plano e apresentou ressalva, a ele não poderia ser oposta a liberação dos coobrigados prevista no plano aprovado.

De qualquer forma, a vertente que impera atualmente é a da súmula 581, que prevê que

“a recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória”.

Mais uma matéria que recentemente bateu às portas do STJ é a da recuperação judicial do produtor rural. Nesse setor, muito embora ainda esparsas as primeiras decisões do tribunal (decisões monocráticas), foram tomados louváveis posicionamentos, rejeitando-se o benefício ao produtor rural que não comprovasse o exercício regular da atividade empresarial pelo período de dois anos anteriores ao pedido da benesse (arts. 48, caput, e 51, inciso V, da LFR).

O exercício regular, entendeu a corte, pressupõe a inscrição do produtor rural na Junta Comercial. Tal inscrição possuiria caráter constitutivo, e não apenas declaratório. Foi assim que, “amparando-se na interpretação sistemática dos referidos normativos, pode-se concluir que estão excluídos de requerer a recuperação judicial os denominados empresários irregulares ou simplesmente produtores rurais, mesmo que desempenhem suas atividades há mais de dois anos, em razão do caráter constitutivo de sua inscrição na Junta Comercial” (Pet 11.460-MT).

Há diversos julgados na mesma linha: Pet 11.376-MT, REsp 1478001-ES, REsp 1193115-MT.

Houve recente proposta de afetação do tema ao julgamento de recursos repetitivos. Se deliberado o julgamento nessa sistemática, espera-se seja mantido o posicionamento já adotado, pois consentâneo com a segurança jurídica que necessita a concessão do crédito, a fortiori no agronegócio.

A inscrição do produtor rural na Junta Comercial possui caráter constitutivo.

O impacto de uma interpretação divergente seria imenso. Basta anotar que as transações negociais, notadamente as concessões de financiamento, são precedidas da análise de crédito. Nela há um exame da situação financeira do tomador do crédito, no que incluída a mensuração do risco, expectativa ou probabilidade de piora da saúde financeira e de eventual pedido de recuperação judicial.

Nessa fase de puntuação contratual, é importante que haja previsibilidade, ou preservação do horizonte de expectativa (Erwartungshorizont). Interpretação extensiva, que extrapole os limites legais sobre os quais assentado o horizonte de expectativa do jurisdicionado, levaria a uma ruptura das bases do negócio jurídico (Störung der Geschäftsgrundlage – OERTMANN2), não consideradas quando da contratação.

Assim é, por exemplo, com a concessão de crédito ao produtor rural. Como pessoa natural (pessoa física), não está ou não estava no horizonte de expectativa do credor a possibilidade de pedido de recuperação judicial. Com autorização repentina e indiscriminada desse benefício aos produtores rurais, violada terá sido a base do negócio jurídico. Uma influência nova, não considerada pelas partes contratantes quando da celebração do contrato, derrói a segurança jurídica do arcabouço legal.

Mas também quando o assunto é cessão e alienação fiduciária, algumas distorções têm emergido. Determinado tipo de credor fiduciário tem enfrentado verdadeira via crucis para recebimento do seu crédito. Para ele, não é demasiado absurdo exclamar a advertência de Dante, no portal do inferno: “Deixai toda esperança, ó vós que entrais!”.

Como se sabe, o credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, estão excluídos do processo de recuperação judicial (§ 3º do art. 49 da LFR). Há formação de um patrimônio autônomo – uma espécie de patrimônio de afetação –, que responde exclusivamente pelas obrigações específicas para as quais constituído.

A exclusão deve ser entendida em sentido amplo e abrangente, compreendendo bens corpóreos e incorpóreos, dentre eles, os direitos sobre bens móveis e títulos de crédito a que se refere o art. 66-B da lei 4.728/65, com a redação dada pelo art. 55 da lei 10.931/04.

A exclusão desses créditos dos efeitos da falência e do procedimento de recuperação judicial deflui não apenas da segregação que constitui efeito próprio da natureza de qualquer garantia fiduciária, mas igualmente de previsão específica contida em lei especial. A raison d’être deste alijamento é ligada a uma tentativa, de um lado, de facilitar a concessão do crédito às empresas em crise, e, de outro, como forma de conceder maior segurança a esse credor e reduzir, com isso, o custo do empréstimo (spread bancário).

Assim já se pronunciou o STJ: a “instituição de tal privilégio (LF, art. 49, § 3°) foi opção legislativa com nítido intuito de conferir crédito para aqueles que estão em extrema dificuldade financeira [...]”. O legislador optou por

“conferir tratamento diferenciado a determinados créditos, normalmente titulados pelos bancos, afastando-os dos efeitos da recuperação, justamente visando conferir maior segurança para concessão do crédito e diminuindo o spread bancário” (REsp 1207117-MG).

O tribunal vem mantendo esse posicionamento, ou seja, excluindo dos efeitos da recuperação judicial e da falência os créditos aos quais atrelada a propriedade fiduciária. Nesse sentido: REsp 1653976-RJ, REsp 1.263.500-ES, AgInt no AREsp nº 884.153-SP, REsp 1549529-SP.

Contudo, em que pese o claro objetivo de instituição deste privilégio em prol da atividade econômica (concessão de crédito), o que se observa é que determinado tipo de credor fiduciário, na recuperação judicial, remanesce em situação nebulosa, passível de ser chamada de estado de gravitação (Schwebezustand). É a hipótese do credor fiduciário, cuja garantia repousa sobre máquinas, equipamentos, estoques ou bens de capital, considerados essenciais para a atividade econômica da empresa recuperanda. Esse tipo de credor é extraconcursal, isto é, não é contemplado no plano de recuperação judicial, que, via de regra, não prevê forma de pagamento a créditos excluídos daquele procedimento. Mas agora a agravante: ele também tem enfrentado dificuldades hercúleas para receber seu crédito fora da recuperação, à medida que obstado de excutir o bem garantido, considerado bem de capital da empresa, máxime quando da prorrogação do stay period.

A posição desse tipo de credor tem se mostrado paradoxal e até mesmo kafkiana. A sua garantia, com a recuperação judicial, teve a eficácia restringida. Passou a não ser mais excutível, seja porque essencial à atividade da empresa em recuperação, seja porque o prazo de blindagem fora prorrogado para período posterior à aprovação do plano de recuperação judicial. A eficácia não é mais plena, mas contida, adstrita sempre a uma decisão do juízo universal da recuperação judicial, à luz do exame da essencialidade no caso concreto (CC 153.473-PR, AgInt no CC 149.798-PR, AgInt no AREsp 1000655-SP).

Mais. Recentes decisões do tribunal sedimentaram “posicionamento no sentido de que quaisquer atos judiciais, que possam colocar em risco a eficácia do plano de recuperação, devem ser submetidos ao crivo do Juízo universal” (AgInt no AgInt no AgInt no CC 149.561-MT). Noutro raio semântico, o impedimento de retirada de bens essenciais vem se estendendo até mesmo para período posterior ao término do processamento da recuperação judicial, muito além de qualquer stay period, passando a estar vinculado ao sucesso do cumprimento do plano de recuperação judicial.

Na exposição de motivos da LFR, isto é, nos pareceres que antecederam a promulgação da lei, fora exposta a problemática da retirada de bens da empresa em recuperação, alertando-se para o franco potencial de prejudicar a continuação das suas atividades. Tinha-se como premissa a inviabilidade do soerguimento da empresa, caso fosse indistintamente autorizada a busca e apreensão de bens essenciais à sua atividade.

Todavia, foi também ressaltado o outro lado da moeda. Afinal, não se podia negar aos credores proprietários o direito de reaver seus bens, sob pena de se comprometer a segurança que caracteriza esses contratos e, assim, reduzir a efetividade de instrumentos que, necessário reconhecer, proporcionaram, nas modalidades de crédito com garantia mais segura, como a alienação fiduciária, taxas de juros bastante inferiores à média praticada no país.

E foi exatamente com o objetivo de conciliar esses interesses que foi formulada proposta de não se suspender as ações dos credores extraconcursais, mas vedar a retirada de bens essenciais durante o prazo de 180 dias. Como consta do parecer, a proposta foi “uma solução de equilíbrio: não se suspendem as ações relativas aos direitos dos credores proprietários, mas elimina-se a possibilidade de venda ou retirada dos bens durante os 180 dias de suspensão, para que haja tempo hábil para a formulação e a aprovação do plano de recuperação judicial. Encerrado o período de suspensão, todos os direitos relativos à propriedade são devolvidos ao seu titular. Como essas obrigações não se sujeitam à recuperação judicial, naturalmente o plano aprovado deverá prever o pagamento desses credores em condições satisfatórias, sob pena de estes exercerem o direito de retirada dos bens e inviabilizarem a empresa” (TEBET, parecer 534/04, grifo nosso).

Alguns credores extraconcursais tiveram a eficácia de suas garantias tolhida.

Mas o elastério concedido ao prazo de suspensão de 180 dias acabou por gerar, reflexamente, outro paradoxo. A assunção do parecer, de que o plano de recuperação deveria prever o pagamento dos credores extraconcursais, não se revelou na prática. Muitos planos, se não a maioria, não preveem a forma de pagamento dos credores extraconcursais, em grande parte em função da blindagem a que fazem jus durante a recuperação judicial e até mesmo após a aprovação e homologação do plano. Ausente a pressão do término do stay period, os credores extraconcursais proprietários de bens considerados essenciais foram literalmente relegados a um limbo, espécie de purgatório dos credores detentores de garantia com eficácia contida.

A situação do credor fiduciário de bens essenciais está por merecer nova abordagem, quiçá até mesmo de lege ferenda, a fim de evitar situações de perplexidade e que não condizem com a segurança jurídica e previsibilidade almejadas, postulados tão caros ao mercado. Relegar tal credor à posição de nada receber no plano, e nada receber fora dele, denota-se insustentável (REsp 1660893-MG). A solução consistente na abertura de exceções, como submeter tais específicos credores à recuperação judicial, não parece, com todas as vênias, a que outorgue maior segurança jurídica ao sistema, notadamente em vista da consolidada jurisprudência que vinha confirmando o texto expresso de lei (§ 3º do art. 49 da LFR), vale dizer, excluindo tais credores dos efeitos da recuperação judicial, permanecendo apenas impedida a retirada de bens essenciais durante o stay period – período esse, no texto legal, repita-se, improrrogável, de 180 dias.

A mesma situação já não ocorre com o credor detentor de cessão fiduciária de recebíveis, no contexto da chamada “trava bancária”. Igualmente excluído da recuperação judicial, esse tipo de garantia possui uma característica especial: o bem objeto da garantia não está na posse do devedor nem se inclui no seu processo produtivo.

Em recentes julgados, em que se discutiu o que deveria ser entendido por “bem de capital”, o STJ fixou a orientação de que títulos de crédito cedidos fiduciariamente não constituiriam bem de capital. Bens de capital seriam bens utilizados no processo produtivo, com as seguintes características: “bem corpóreo (móvel ou imóvel), que se encontra na posse direta do devedor, e, sobretudo, que não seja perecível nem consumível, de modo que possa ser entregue ao titular da propriedade fiduciária, caso persista a inadimplência, ao final do stay period” (REsp 1758746-GO).

Aqui, portanto, vê-se nítida orientação do tribunal no sentido de manter a extraconcursalidade dos credores que detenham cessão fiduciária de recebíveis ou de títulos de crédito, autorizando a manutenção da trava bancária (AgInt no REsp 1.475.258-MS, REsp 1592647-SP, AgRg no REsp 1326851-MT).

Nesses 14 anos de vigência da LFR, o STJ se deparou com temas tormentosos, consolidando com ponderação e equilíbrio os interesses conflitantes – que são muitos e diversificados –, tendo por fundamento primeiro o princípio da preservação da empresa.

No entanto, algumas distorções esparsas, quanto a pontos específicos da lei e que vêm gerando certa insegurança jurídica, merecem revisitação. O postulado de preservação da empresa é ponto cardinal na sistemática da LFR, mas não deve ser aplicado como panaceia universal e a todo custo (AgRg no CC 110.250-DF), a ponto de tornar ineficazes ou inexequíveis garantias importantes prestadas sob determinado regime negocial e jurídico, que também exercem sua função social.

Favorabilia amplianda, odiosa restringenda, lapidando-se os extremos, de sorte a evitar que pensamentos como o do renomado economista norte-americano John Maynard Keynes3 se tornem corriqueiros em recuperações judiciais: if I owe you a pound I have a problem; but if I owe you one million, the problem is yours.4

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1 Citado por David S. Mason, na obra The End of the American Century (2009, p. 13).

2 Abalo da base contratual, expressão cunhada na obra Die Geschäftsgrundlage, ein neuer Rechtsbegriff (A Base Contratual, um novo Termo Jurídico), de 1921, de Paul Oertmann. A tese teve como motivação a desenfreada inflação do pós-guerra da República de Weimar, Alemanha, como relata Karl Larenz (2004, p. 699, § 38, ziff. 5).

3 Citado na obra The Rise and Decline of the American Empire (LUNDESTAD, 2012, p. 78). Há variações da citação, como “If you owe your bank a hundred pounds, you have a problem. But if you owe a million, it has”, segundo a revista The Economist, de 13 de fevereiro de 1982, p. 11. 

4 Se te devo uma libra, tenho um problema; mas se te devo um milhão, o problema é seu.

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BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

LARENZ, Karl. Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts. 9. ed. Munique: C.H. Beck, 2004.

LUNDESTAD, Geir. The Rise and Decline of the American Empire. Oxford: Oxford University Press, 2012.

MASON, David S. The End of the American Century. Lanham: Rowman & Littlefield Publishers, Inc., 2009.

OERTMANN, Paul. Die Geschäftsgrundlage, Ein neuer Rechtsbegriff. Leipzig: Scholl, 1921.

TEBET, Ramez. Parecer nº 534/2004.

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O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, ano XXXIX, nº 141, de abril de 2019.

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*Armin Lohbauer é advogado em São Paulo.

*Rachel Ferreira Araújo Tucunduva é advogada em São Paulo, membro do Turnaround Management Association do Brasil (TMA Brasil) e do IASP.

 

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