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Zona azul: uma concessão cinzenta

A zona azul não é um serviço insulado das demais políticas públicas de mobilidade urbana. Ao contrário, é diretamente associada ao planejamento urbano e da engenharia de tráfego da cidade, justamente como indutor do uso racional do carro e desestímulo ao transporte individual nas áreas mais saturadas.

9/4/2019

Está em curso na cidade de São Paulo um programa de desestatização pelo qual a Prefeitura se propôs a passar a gestão de 55 serviços e ativos municipais à iniciativa privada. A lista de dez prioridades apresentadas no lançamento do Plano Municipal de Desestatização (PMD), em maio de 2017, elenca importantes equipamentos que, de fato, podem ser mais bem geridos por empresas, como o Estádio do Pacaembu, o Complexo Anhembi e o Autódromo de Interlagos. O rol inclui ainda imóveis, parques, cemitérios, mercados públicos, terminais de ônibus, bilhetagem de transportes e habitação social.

Como se vê, não consta como prioridade no plano a concessão, por 15 anos, da gestão do sistema de estacionamento rotativo, conhecido como zona azul, cuja abertura de envelopes com propostas comerciais está prevista para terça-feira, 9 de abril. Mesmo na lista dos 55 serviços e ativos do PMD não se faz menção a esse objeto – havia uma genérica menção ao “viário urbano”. Diante de reveses e adiamentos nos editais ditos prioritários, a Prefeitura sacou um processo licitatório que, se concluído, provocará significativas consequências e entraves para a adequada gestão da mobilidade e do espaço urbano em São Paulo.

Em primeiro lugar, é preciso observar que a zona azul não é um serviço insulado das demais políticas públicas de mobilidade urbana. Ao contrário, é diretamente associada ao planejamento urbano e da engenharia de tráfego da cidade, justamente como indutor do uso racional do carro e desestímulo ao transporte individual nas áreas mais saturadas. É exatamente o oposto da lógica – legítima, frise-se – de uma empresa privada, que tende a querer explorar mais vagas de estacionamento onde há maior fluxo de carros.

Desestatizar a zona azul, portanto, agrava a dificuldade de se gerir um sistema viário por si só extremamente complexo. Como observado em nota pública assinada pelas organizações Cidadeapé e Ciclocidade, representativas dos direitos dos pedestres e dos ciclistas, passar a exploração das vagas de estacionamento da cidade para uma única empresa privada vai limitar reestruturações viárias necessárias para a melhoria da mobilidade urbana, durante um prazo demasiadamente longo e injustificável.

Ao conceder a um ente privado o direito de explorar comercialmente ruas e avenidas para estacionamento de automóveis, privatizando o espaço público - cria-se um ônus financeiro hoje inexiste para a extinção dessas vagas. Ora, a empresa vencedora do certame estará legitimada a reivindicar o reequilíbrio financeiro do contrato quando a Prefeitura quiser implementar ciclofaixas ou ciclovias, alargamentos de calçadas, corredores de ônibus ou parklets em espaços hoje reservados para o estacionamento rotativo. Mesmo se se quiser aumentar a área disponível para o fluxo de carros, as vagas de zona azul passarão a ser um entrave a mais. Esta não deve ser uma preocupação apenas dos ciclistas e pedestres, mas de toda a sociedade paulistana.

Falta de transparência e diálogo

Cabe mencionar ainda que faltou transparência e participação social neste processo público, o que é lamentável per se. A concessão da zona azul não foi colocada em pauta em nenhuma das reuniões, realizadas em 2018, pelo Conselho Municipal de Transporte e Trânsito (CMTT), órgão colegiado de caráter consultivo, propositivo e participativo em questões relacionadas a ações de mobilidade urbana executadas pela Secretaria Municipal dos Transportes (SMT). Da mesma forma, tampouco foi ouvida a Câmara Temática da Bicicleta (CTB), criada para auxiliar o CMTT e ajudar a definir a política cicloviária da cidade. É nítido que era indispensável a consulta tanto ao Conselho quanto à Câmara. E esta semana a imprensa divulgou que o Plano Cicloviário está estacionado desde 2016, em pouco mais de 400 kms. Uma vergonha para uma cidade tão grande como São Paulo.

O fato é que a concessão da zona azul é de interesse amplo da sociedade, mas houve pouca disposição da administração municipal para o diálogo. Por lei, é obrigatória a realização de audiência pública prévia ao lançamento do edital. Pasmem, a Prefeitura publicou às 18h14 de uma quinta-feira a convocação para uma única audiência pública às 14h de segunda-feira. Não bastasse tão exíguo prazo, a audiência em si durou 25 minutos! Dá menos de 2 minutos por ano de concessão...

Um modelo equivocado

Para a Prefeitura, a concessão vai levar à agregação de novas funcionalidades; mais tecnologia no apoio à fiscalização com vistas a reduzir a evasão da zona azul, hoje estimada em 50%; garantia de rotatividade de vagas; e ganhos para o poder público nos 15 anos de vigência do contrato de R$ 1,3 bilhão.

Ora, são itens que por si só não justificam o modelo de concessão, adequado para investimentos de grande monta em infraestrutura, por exemplo. Tampouco se comparam à modernização de um estádio de futebol subutilizado e deficitário, por exemplo.

O montante de receita estimada em R$ 1,3 bilhão pode soar expressivo, mas representa meros 2,1% do Orçamento de 2019 – se somados os 15 anos da concessão, sem correção monetária, esse percentual cai para 0,14%.

Ainda mais grave é o fato de que tais dados nem sequer foram debatidos amplamente pela sociedade ou expostos em estudo de viabilidade técnica e econômico-financeira. A sonegação desse documento pela Prefeitura impede a precisa discussão e verificação do modelo de concessão e deixa quaisquer justificativas apresentadas pela administração fragilizadas.

O economista João Melhado, pesquisador em política urbana pela Universidade Columbia, escreveu um interessante artigo no qual aponta a inadequação do modelo e o risco de mau negócio para os cofres paulistanos. A concessão prevê a ampliação de vagas das atuais 41.511 para 51.407 lugares e uma política tarifária engessada, aplicando-se apenas a correção inflacionária ao preço atual, R$ 5 por hora, congelado desde 2014.

Melhado mostra que o melhor seria adequar uma precificação dinâmica, com variação conforme a demanda, como já tem feito San Francisco, na Califórnia. Isso traria incremento não só à gestão do tráfego na cidade, mas também à arrecadação do sistema, atendendo à necessidade de ajuste fiscal sempre apontada pela Prefeitura para levar em frente o plano de desestatização.

A Prefeitura deveria promover um debate de fato e de direito sobre essa concessão e submeter-se ao escrutínio público, em vez de manter o processo licitatório em uma zona cinzenta, marcada pela falta de transparência e pelo atropelo das boas práticas na administração pública.

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*Aparecido Inácio Ferrari de Medeiros é sócio do Aparecido Inácio e Pereira Advogados Associados.

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