Dado o péssimo acesso à informação do brasileiro, seja pela via tradicional e principalmente pela forma informal de acesso online (blogs, correntes de whatsapp, facebook, etc), convencionou-se que o deslocamento da competência de certos crimes referentes à Lava Jato, aqueles com fundos eleitorais (caixa 2, corrupção, dentre outros), causaria um verdadeiro colapso na operação. Entendo que isso não é verdade.
A Constituição diz que a Justiça Federal julgará causas de interesse da União, "ressalvada a competência da Justiça Militar e Eleitoral"1. Já o Código Eleitoral diz que sua justiça especializada é responsável por processar e julgar os crimes eleitorais "e comuns que lhe forem conexos"2. Portanto, o assunto não parece carregar elevada complexidade, visto que a competência da justiça comum, estadual ou federal, é residual quanto à justiça especializada – seja eleitoral ou militar – estabelecida em razão da matéria.
No entanto, muita polêmica foi gerada, sobretudo nas redes sociais, levando boa parte da população a acreditar que um eventual reconhecimento da competência da justiça eleitoral, no jargão popular, “acabaria em pizza”.
O primeiro argumento sustentado pelas redes, e talvez o que seja o mais razoável, reside na possível anulação de sentenças proferidas por Juiz incompetente. Isto significa a possibilidade de anular decisões que tenham sido proferidas pela 13ª. Vara Federal de Curitiba e outras varas federais que julgam casos da Lava Jato e suas revisões ou confirmações pelos respectivos Tribunal Regionais Federais.
Nesse particular, cabe observar que nem todo ato de corrupção investigado no âmbito da Lava jato está conexo a crimes eleitorais, embora alguns certamente estejam, sobretudo quando comprovada a existência de caixa 2, que abastece campanhas eleitorais com dinheiro ilícito oriundo de corrupção. Nesse contexto, conforme salientado pelo Ministro Marco Aurélio Mello em seu voto, a instrução processual poderia ser aproveitada pela jurisdição eleitoral, mas decisões proferidas por órgão materialmente incompetente não subsistiriam. Ademais, a decisão proferida pelo STF no dia 14 de março não ocorreu em sede de controle abstrato de constitucionalidade ou cujo tema tivera repercussão geral reconhecida. Isso significa que, apesar da relevância da decisão, não estará revestida de efeito vinculante, valendo apenas para o caso julgado e servindo como precedente para outros casos semelhantes.
De qualquer maneira, o precedente é poderoso e o debate sobre a natureza das decisões até então proferidas deverá ser aprofundado e muito questionado. Isso porque, as nulidades do processo, podem ser reconhecidas a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição, existindo o risco de serem anuladas todas as decisões conexas a crimes eleitorais, mas por outro lado desconexas com a Lava Jato. Uma forma de mitigar o risco de anulação de julgados seria reconhecer as decisões proferidas até então, conferindo eficácia ex nunc à decisão do STF, tema que certamente voltará à pauta da Suprema Corte em razão da relevância dos seus efeitos na maior investigação de corrupção já empreendida na história do Brasil.
Cabe salientar ainda, que as próprias regras de competência e conexão dos casos da Lava Jato já são por si só bastante difíceis de serem explicadas, haja vista haver um Juízo praticamente universal para julgamento de todo e quaisquer casos relacionados à corrupção na Petrobras, a 13ª. Vara Federal de Curitiba, além das Varas Federais do Rio de Janeiro, Brasília e São Paulo, quando atuam nas questões relacionadas à Lava Jato nas suas respectivas jurisdições.
E as demais varas, como se define a questão da competência? Se um caso conexo for investigado em Santa Catarina, por exemplo, deveria ser “aberta” uma vara da Lava Jato naquele estado ou os processos obrigatoriamente devem ser julgados pela 13ª. Vara Federal de Curitiba? A depender da resposta, o que justificaria varas de Lava Jato nos demais estados (SP, RJ e DF) e em outros não? Afinal, até onde se tem conhecimento, houve cometimento de ilícitos na maior parte do território brasileiro. A Bahia por exemplo, é sede de diversas empresas de construção envolvidas nos escândalos, mas não tem vara de Lava jato.
Mas a principal razão dessa torcida da sociedade – muitas vezes manipulada por meio de informações incompletas ou inverídicas – deriva do espírito punitivista, que só vislumbra sucesso em investigações que culminarem em condenações, de preferência ausente de garantias constitucionais como a presunção de inocência, pouco se importando com a necessária imparcialidade dos agentes do processo.
Eventuais anulações de julgados podem sim causar um retrocesso na operação como um todo, o que deveria ser evitado. Por outro lado, o argumento de que a Justiça Eleitoral não estaria preparada para julgar casos da espécie é não apenas falacioso, como constrangedor. Primeiro porque desprestigia a Justiça Eleitoral e segundo, porque apequena o próprio debate.
Ora, a Justiça Eleitoral não apenas é integrante da Justiça Federal, mas se trata de justiça especializada, competente para julgar as questões eleitorais e conexas. Ademais, quem investiga os crimes eleitorais? A mesma Polícia Federal e o mesmo Ministério Público. Os nomes dos servidores encarregados até podem ser outros, mas a estrutura e as instituições serão rigorosamente as mesmas, cabendo lembrar aqui o princípio da impessoalidade, tão caro à Administração Pública. Na mesma linha, como sustentar que a PF ou o MPF seriam competentes para investigar crimes de lavagem de dinheiro e corrupção quando atuam nas respectivas varas que jugam processos da Lava jato, mas perderiam tais predicados se estivessem atuando perante a especializada Justiça Eleitoral? Por isso o argumento é aviltante, sem falar no enxovalho à qualidade dos integrantes da Justiça Eleitoral que essas críticas representam.
E o rito do processo eleitoral, teria mesmo o potencial de atrapalhar os processos, ou poderia inclusive acelerar as investigações? Porque se no processo civil ordinário os prazos são contados em dias e as publicações não raramente demoram a acontecer – contribuindo sobremaneira à conhecida e tão criticada morosidade na prestação jurisdicional – no processo eleitoral os prazos são bastante curtos, sendo que boa parte são contados em horas, (quando no processo eleitoral, mas que após os pleitos correm em prazos igualmente exíguos – geralmente entre 3 e 5 dias, a exemplo do recurso a ser interposto em 3 dias, previsto no artigo 258 do Código Eleitoral3) podendo ter o efeito de reduzir significativamente a duração dos processos julgados na justiça especializada e assim contribuir com uma maior efetividade da Justiça. Isso sem falar na reconhecida capacidade técnica dos quadros da Justiça Eleitoral e do reconhecimento internacional que as eleições brasileiras desfrutam, além da maior fluidez e agilidade na tramitação das ações, em razão do descongestionamento dos feitos nesse órgão.
Por isso, justifica-se a preocupação quanto a possíveis anulações de decisões proferidas. No entanto, estas são cenas dos próximos capítulos, a serem acompanhadas atentamente. Igualmente, deveria o STF se preocupar com argumentos consequencialistas ou focar em critérios de natureza constitucional? De outro lado, deve-se levar em consideração que a Justiça eleitoral é na verdade órgão especializado da própria Justiça Federal, e certamente tem capacidade de processar e julgar questões complexas. Isso pode até demandar medidas de aumento de pessoal, ou ressuscitar antigas discussões sobre a formação de seus quadros, especialmente no que diz respeito aos tribunais regionais e ao Tribunal Superior Eleitoral, mas essas são questões administrativas. Desacreditar a Justiça Eleitoral sem argumentos ou buscar resolver a discussão com base no anseio popular já é outro assunto, inadmissível, ao meu ver.
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1 Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
(...) IV - os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral;
2 Art. 35. Compete aos juizes:
(...) II - processar e julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos, ressalvada a competência originária do Tribunal Superior e dos Tribunais Regionais;
3 Art. 258. Sempre que a lei não fixar prazo especial, o recurso deverá ser interposto em três dias da publicação do ato, resolução ou despacho.
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*Carlos Alberto Doering Zamprogna é advogado na Diretoria Jurídica do Banco do Brasil em São Paulo , mestrando em Direito, Justiça e Desenvolvimento pela EDB e pós graduado em Direito Internacional Público e Privado pela UFRGS.