Migalhas de Peso

“Plus ça change, plus c’ést la même chose”: não há nada novo debaixo do sol

A resposta da sociedade, no recolhimento a posteriori de postagens agressivas aos valores comuns, é tardia e extremamente limitada. Ela corre atrás do prejuízo, sem jamais poder extirpá-lo por inteiro, tal como a conhecida historieta relativa à impossibilidade de se reaver todas as penas que compunham um travesseiro rasgado, espalhadas ao vento.

27/3/2019

Desde alguns anos a sociedade tem sido ameaçada com a destruição como nunca o fora antes através de sua história, e a ameaça ainda está longe de se desvanecer. Assistimos nestes últimos anos ao ressurgir de uma nova barbárie mais destruidora do que aquela a que o mundo teve que fazer frente na Idade das Trevas (“Dark Ages”) porque vem armada de todos os poderes da ciência e invenção da moderna tecnologia. Todas as defesas que a sociedade lenta e dolorosamente construíra num trabalho de séculos foram subitamente varridas, e pretendeu-se criar uma nova ordem baseada simplesmente na força e no terror em que tanto os direitos do homem como os das nações são espezinhados. Não é provável que tenha sido por acaso que esta nova barbárie se associou à heresia dum racismo que implica na negação da unidade e da civilização humana. Mas não se identifica com este credo um tanto artificial, e devemos estar preparados para encarar a possibilidade de que os males introduzidos no mundo moderno pela ação deliberada de aventureiros políticos possam mostrar-se infecciosos num organismo debilitado por comoção súbita, seguindo um processo lento de desintegração social e espiritual. Não há dúvida de que os movimentos revolucionários, geralmente chamado fascistas, devem o sucesso não à sua força intrínseca, mas ao caminho seguido na exploração da preexistente fraqueza da sociedade e na união dos impulsos discordantes de frustração e de agressão, tanto sociais, como internacionais, na conquista do poder e da pilhagem. Mas a derrota do fascismo, por desgraça, não significa a remoção das causas que o produzem, e, enquanto elas perdurarem, o processo de desintegração provavelmente continuará, por mais completa que seja a alteração dos nomes e das ideologias dos partidos.

A restauração da sociedade é uma tarefa que nenhum partido político e nenhum Estado isolado são capazes de levar a cabo. Contudo, constitui isto uma questão de vida ou de morte para todos os homens e mulheres da sociedade humana – um problema ainda mais vital do que as questões de trabalho, de salário, de habitação e de saúde, de que, com razão, nós hoje temos tão nítida consciência; porque todas estas coisas pressupõem a existência de uma ordem social estável e, a não ser que as forças destruidoras que se libertaram possam ser convenientemente fiscalizadas esta base elementar do bem estar não poderá ser garantida.

Os últimos decênios revelaram um imenso e espantoso incremento dos poderes de destruição do homem sem a correspondente aquisição de qualidades sociais de que a civilização carece para poder usar tão terríveis poderes sem a si própria se destruir. Pelo contrário, o mundo está sob muitos aspectos mais pobre e mais débil do que antes da revolução científica.  Nem isto é muito de surpreender. Porque as ilimitadas oportunidades de progresso material tornadas necessárias pela ciência moderna levaram a uma concentração de técnicas altamente especializadas e desviaram os pensamentos dos homens dos mais profundos níveis da realidade e da experiência espiritual em que as civilizações religiosas do passado baseavam toda a sua perspectiva de vida. Assim, a mecanização da vida moderna não significa somente que a nossa civilização se tornou mais poderosa, mais altamente organizada e mais complicada – significa também que se tornou mais extrovertida e superficial, menos firmemente arraigada no coração e na natureza humana e menos cônscia das realidades espirituais. Se a nossa civilização tem que sobreviver, necessário se torna restaurar um mais sadio equilíbrio entre a vida interior e suas atividades exteriores, cuja perda desequilibra por completo a balança da nossa cultura e ameaça esmagar o espirito humano, fonte criadora de todo o desenvolvimento, sob o peso da maquinaria que criou.

E para restaurar este equilíbrio vital é preciso em primeiro lugar que a sociedade tenha mais completa consciência da natureza de sua herança social e das raízes de suas tradições comuns, porque enquanto os nossos pensamentos se concentrarem nas coisas que nos dividem – conflitos econômicos de classe e conflitos políticos de nacionalidade – nós próprios confessadamente nos estamos tornando instrumentos ativos ou passivos das forças de desintegração.

Caro leitor, vamos dar uma paradinha por aqui porque tenho uma confissão a fazer. O texto acima não é da minha autoria. Trata-se de alguns parágrafos do prefácio da obra “A Formação da Europa”, de Christopher Henry Dawson (redigido pelo própria autor), escritor inglês que viveu entre 1889 e 1970, na tradução portuguesa da 7ª edição inglesa, cuja primeira edição é de 1932. Esta 7ª edição é de 1950, ou seja, cinco anos depois de término da Segunda Grande Guerra1.

Esse precioso livro faz parte do cabedal da biblioteca deixada pelo meu pai, incorporado à minha, que de quando em vez eu visito para ali achar leituras preciosas, vindas de um passado remoto ou mais próximo. Como se pode perceber, sua atualidade é praticamente total, tendo eu tomado a liberdade de, para os propósitos deste texto, mudado algumas palavras ou frases com o fim de descontextualizar uma abordagem voltada essencialmente para a Europa, objeto direto das preocupações daquele festejado autor, hoje um pouco esquecido, em sua época. Lembre-se que a Europa havia há pouco visto o fim (formal) de uma das guerras mais devastadoras da história da humanidade, na qual a barbárie alcançou níveis até hoje verdadeiramente indescritíveis, tendo como um dos seus fundamentos (no fundo, uma ponte para que objetivos escusos maiores pudessem ser atingidos) uma ideologia profundamente racista e supremacista, que hoje se vê infelizmente repetida no nível de alguns Estados nacionais e, no varejo, no comportamento de minorias violentas.

Não importa que Christopher Dawson tenha sido fundamentalmente um autor orientado pela sua fé no cristianismo católico, porque as suas ponderações têm um alcance universal. E delas podemos inferir que a tecnologia se incrementou de forma exponencial pelas várias décadas desde o aparecimento desse livro, ao mesmo tempo em que a sociedade humana continua a mesma em sua essência, nas suas qualidades e na sua loucura.

O que mudou?

Simplesmente a quase instantaneidade e a universalidade da transmissão das informações, ao lado da superação dos agentes intermediários entre tais informações e os seus destinatários. Nos dias de hoje em questão de segundos, uma postagem colocada nos domínios da internet circula todo o globo terrestre e influencia pessoas para o bem e, infelizmente, muito frequentemente, para o mal.

A partir de um governante supremo de um país, até um anônimo autor de uma barbaridade qualquer, todos têm acesso ao poder de difundir mensagens (ser um “youtuber”, um twiterista”, ou um “influenciador digital” passou a representar nova atividade2), o que mostra que, no fundo, se cuida na atualidade, de uma mudança que se mostra ser fundamentalmente de grau e não de natureza, mas que apresenta profundos efeitos na sociedade. No passado, enquanto um louco qualquer divulgava o fruto de sua loucura de cima de um caixote de madeira em uma praça, ou por meio de poucos ou muitos exemplares escritos (cujo custo deveria ser pago por alguém), sua circulação era muito limitada, na época atual, como se sabe, a difusão das ideias é barata e imediata.

Não cabe aqui perscrutar as complexas razões pelas quais o exemplo da insânia violenta afeta tão profunda e rapidamente seguidores por todos os lugares. Veja-se a propósito os recentes massacres na escola de Suzano e na Nova Zelândia, o primeiro deles certamente inspirado no seu modelo de Columbine. Será culpado o celular, o tablete, a internet? Respostas fáceis, muitas vezes falsas e incompletas fazem parte de explicações encontradas em todos os lugares, no plano de conversas de botequim.

A resposta da sociedade, no recolhimento a posteriori de postagens agressivas aos valores comuns, é tardia e extremamente limitada. Ela corre atrás do prejuízo, sem jamais poder extirpá-lo por inteiro, tal como a conhecida historieta relativa à impossibilidade de se reaver todas as penas que compunham um travesseiro rasgado, espalhadas ao vento.

Para o autor em foco a solução estava na volta aos valores que ele defendia e que, no fundo são os mesmo das nossas preocupações diuturnas. Podemos dizer que se trata de valores universais, não importando a crença de cada um, mas é necessário resgatá-los. E neste sentido a revalorização família é a pedra fundamental e disto ninguém duvida. A questão está em como chegar a esse resultado, considerando todas as dificuldades impostas pela sociedade moderna, na qual a exigência de trabalho intenso se impõe como uma questão de natureza ampla: econômica e pessoal. No plano econômico a conjunção dos ganhos do casal e muitas vezes dos filhos é essencial para a sobrevivência revestida de uma dignidade mínima. No plano pessoal frequentemente os indivíduos elevam os seus alvos a um patamar superior às necessidades materiais (mesmo considerada a busca de um padrão mais elevado de conforto e de facilidades), na busca de uma posição de relevo que, no futuro, se revelará vazia e frustrada.

Dentro dos cenários acima procura-se jogar para a escola uma função e uma responsabilidade que não lhes são próprias e, na escola pública, repleta de vicissitudes, mesmo o esforço dos seus dirigentes e professores muitas vezes abnegados é absolutamente incompatível com a ideia da substituição da família. E a valorização desta, mediante a facilitação de maior convivência de pais e filhos – especialmente os pequenos – não é objeto de políticas públicas, como é o caso do Brasil, políticas estas que deveriam dar condições aos empresários para delas fazerem parte.

Mas, convenhamos, mesmo que se lhes dessem todas as oportunidades e condições para tal, muitos pais abdicariam de sua função própria (como aliás acontece em muitos lares), deixando seus filhos nas mãos de babás e de creches de tempo integral para poderem se dedicar livremente a outras coisas menos nobres. Tudo consiste numa questão de valores.

Cabe, portanto, reforçar o que disse há noventa anos o nosso caro Christopher Dawson: “se a nossa civilização tem que sobreviver, necessário se torna restaurar um mais sadio equilíbrio entre a vida interior e suas atividades exteriores, cuja perda desequilibra por completo a balança da nossa cultura e ameaça esmagar o espirito humano, fonte criadora de todo o desenvolvimento, sob o peso da maquinaria que criou”.

A esperança é a última que morre, é o que se repete. E esperamos que não morra.

____________

 

1 “A formação da Europa”, Livraria Cruz, Braga (Portuga), 1956.

2 Situações nas quais quem não tem nada de valor a transmitir passa para o seu rebanho inerte todo um falso conteúdo de comportamento.

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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio de Duclerc Verçosa Advogados Associados. Professor Sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.

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