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Direito societário e engodo mercadológico: Os acionistas frente ao “acordo MPF/PR - Petrobrás”

E esse cenário induvidosamente clama por uma posição mais responsável, pensada e condizente por parte dos órgãos integrantes do sistema.

18/3/2019

Muito já se disse e muito ainda se poderia dizer acerca do recém divulgado “Acordo de Assunção de Compromissos” firmado entre o MPF no Paraná e a Petrobrás, ramificação do termo celebrado entre a companhia e o departamento de justiça norte americano, mediante o qual nada menos que R$ 2,4 bilhões deverão – ou ao menos deveriam - ser revertidos em prol dos interesses do governo e mercado brasileiros.

 

A par da absurdez deontológica e operacional que parece envolver o tal acordo, contudo, o foco da presente análise são as nuances societárias a ele inerentes, de cuja leitura se denota ou bem um espantoso desconhecimento técnico ou, mais grave, uma temerária – senão até estratégica - omissão por parte do Ministério Público, em franco prejuízo não apenas do tesouro nacional, mas de todo o colegiado de acionistas da Petrobrás.

 

Nessa linha, o que importa aqui é menos a alocação deturpada dos mais de R$ 2 bilhões recebidos do que o modus operandi e as estranhas racionais e condicionantes que lhes foram atachadas ao longo do pacto.

 

De largada, o que se percebe é que, embora destine 50% dos valores “para a satisfação de eventuais condenações ou acordos com acionistas que investiram no mercado acionárlo brasileiro”, o item 2.3.2 do acordo traz a reboque contradições que escondem um perigoso engodo mercadológico.

Isso porque, não obstante a constituição dessa reserva possa soar louvável, à redação do item 2.3.2 acresce-se a sutil previsão condicional de que tais valores caberão unicamente aos acionistas que efetivamente “ajuizaram ação de reparação, inclusive arbitragens, até a data de 08 de outubro de 2017”, estabelecendo-se não apenas uma espécie de marco prescricional cabalístico como, mais grave, vaticinando quiçá um crime de prevaricação por parte dos próprios agentes do Ministério Público.

 

Afinal, na contramão do estabelecido, o que a legislação vigente prescreve de modo taxativo no art. 1º da lei 7.913/89 é que, “sem prejuízo da ação de indenização do prejudicado, o Ministério Público, de ofício ou por solicitação da Comissão de Valores Mobiliários — CVM, adotará as medidas judiciais necessárias para evitar prejuízos ou obter ressarcimento de danos causados aos titulares de valores mobiliários e aos investidores do mercado”.

 

Ou seja, o diabo mora nos detalhes, e se por um lado o “braço lava-jato” signatário do tal acordo tem por missão primeira a persecução criminal daqueles que malversaram o patrimônio da Petrobrás, é ao mesmo Ministério Público do qual a “lava-jato” é parte integrante que a legislação impõe legitimidade e capacidade processuais para buscar de modo ativo o ressarcimento dos acionistas investidores, não lhe bastando a postura meramente homeopática e propagandista de criar um – destaque-se - falso colchão de liquidez que, quando muito, aproveitará apenas os investidores que se dispuseram à empreitada jurisdicional de busca de indenização.

 

Isso quando sabidamente o modelo nacional padece de desincentivos e deficiências de enforcement que tornam por demais onerosa a busca de indenização pelos investidores do mercado de capitais (v.g. (i) quoruns mínimos e necessidade de caução para que se processe sociedades controladoras, dificultadores que são ainda mal equilibrados por prêmios diminutos aos acionistas que se disponham a capitanear os processos; (ii) o problema da quitação em face da aprovação de contas dos administradores e a necessidade de deliberação assemblear prévia para que se possa processá-los; (iii) altos custos de instalação e condução das arbitragens no âmbito da CAM/B3; e (iv) incerteza jurídica quanto a posição processual da companhia, se vítima ou autora do dano)

 

Mas não é só! Para que se compreenda a largueza do problema, à notória incongruência processual decorrente do confronto entre o item 2.3.2 e a lei 7.913/89 há que se somar também as disposições conjugadas do “considerando 2” e itens 1.4 e 2.5.3 do acordo, bem como as previsões postas em suas cláusulas 2.5.1 e 3.2.

 

As primeiras (“considerando 2” e itens 1.4 e 2.5.3) afirmam basicamente que a Petrobrás “foi vítima e diretamente lesada por ilícitos praticados em seu desfavor”, e que a assinatura do acordo ou mesmo a utilização dos valores alocados no item 2.3.2 “não implicarão em confissão ou reconhecimento de responsabilidade por dolo ou culpa, tampouco nexo de causalidade, com qualquer alegação de dano individual a terceiro”.

 

Ora, num juízo técnico abstrato essas afirmações não guardariam nenhum disparate. Afinal, ao menos enquanto não se consolidar nacionalmente orientação que replique de algum modo a chamada teoria da fraude no mercado (fraud on the market theory), desenvolvida no sistema americano como substrato de imputação de responsabilidade à sociedade, à ótica da lei das S.A brasileira a companhia parece situar-se de fato na posição de vítima primeira dos danos havidos.

 

A questão, porém, é que, se essa negativa de responsabilidade poderia fazer sentido para a Petrobrás como salvaguarda básica no acordo - sob pena até de aniquilar suas alegações de defesa nas ações e arbitragens em que figurar como ré -, o mesmo não se pode admitir por parte do órgão a quem compete justamente a busca de responsabilização e reparabilidade, note-se, não em benefício próprio, mas em prol dos acionistas e mercado investidor em geral.

 

Daí a especial gravidade do item 2.5.1, ao dispor que “caso não sejam plenamente utilizados esses valores (os 50% reservados) para a finalidade prevista, no prazo de 5 (cinco) anos, eventual saldo existente será destinado” então ao caixa da Fundação privada a ser constituída pelo MP.

 

Não bastasse isso, aquela declaração de indenidade do “considerando 2” e itens 1.4 e 2.5.3 contradiz e ignora completamente a confissão e declaração da própria companhia no âmbito do acordo firmado com o departamento de justiça americano, onde além de reconhecer sua responsabilidade pelos atos de seus administradores comprometeu-se a não negar essa assertiva em nenhum ato público ou processual vindouro. (vide fls. 3 do acordo com o Departament of Justice)

 

Ademais disso, por mais que ainda sejam raras as empreitadas do Ministério Público via ações civis públicas no âmbito do mercado de capitais (vide, p.ex, caso EBX), é notório que os escândalos corporativos financeiros e de compliance experimentados na última década (v.g, casos Sadia, Aracruz, BRF, JBS e a própria Petrobrás) induziram ao surgimento de respeitável e crescente discussão e produção nacionais acerca da possibilidade de responsabilização direta das companhias pelos atos irregulares de sua administração, sendo este inclusive o cerne das ações e arbitragens que pende hoje no entorno da Petrobrás.

 

E esse cenário induvidosamente clama por uma posição mais responsável, pensada e condizente por parte dos órgãos integrantes do sistema. 

 

Esta, todavia, não parece ser a perspectiva do MP na esfera do acordo entabulado, mormente diante das prescrições do item 3.2, que em sua maioria demonstram uma franca indisposição em agir ativamente, na medida em que estabelecem prioritariamente apenas a necessidade de a companhia comunicá-lo da instauração, andamento e/ou conclusão das ações e arbitragens instauradas.

 

Nessa toada, a faculdade posta na alínea “iii” do item 3.2 não soa a que o MP pretenda agir como amicus curiae pró-acionistas. Ao contrário, ante a dita reversão de valores prevista no item 2.5.1, induz sim a que, quando e se vier a integrar aquelas ações e arbitragens, o MP tenda a atuar mais para preservar a liquidez da reserva de 50% do que para sangrá-la. Assim sendo, ao fim e ao cabo aquela reserva de 50% revelar-se-á mais uma espécie de escrow account indireta pró-MP, ao qual o acordo teria atribuído mais um dever de proteção indenizatória em prol da Petrobrás (uma espécie de cláusula hold harmless) para, com isso, preservar o caixa futuro de sua “própria” Fundação privada.

 

E isso como corolário óbvio do fato de que quem pretendesse efetivamente acusar a Petrobrás naturalmente não tenderia a colocar no papel que esta seria vítima do ato gerador do dano imputado, como o fizera o MP no “considerando 2” e, reflexamente, nos itens 1.4 e 2.5.3 do acordo.

 

E aqui vale um breve aparte acerca da natureza e funcionamento da tal Fundação. Embora a mesma venha a ter personalidade jurídica, sua composição ficará na prática sob controle do próprio MP (federal e estadual), que inclusive poderá indicar dois dos cinco integrantes do Comitê de Curadoria Social (item 2.4.2 c/c 2.4.4), mormente à vista de recente decisão do Juízo da 13ª Vara Federal do Paraná, que ao homologar o dito acordo entendeu que não haveria a necessidade de submissão da composição ao controle judicial (item 2.4.3.1), facultado ainda aos integrantes que, se assim desejarem, integrem inclusive o órgão de deliberação superior da fundação (item 2.4.3.6).

 

Mas ora, eventual participação de membro do MP no Comitê, ainda que tenha a natureza meramente “honorífica” - conforme se autoqualifica no item 2.4.3.3 do acordo -, não se compatibiliza com o estatuto constitucional do Ministério Público, como não se compatibilizaria tampouco com o estatuto da Magistratura, conforme recentemente decidiu o CNJ acerca de participação de magistrados em conselhos consultivos de segurança pública idealizado por governo estadual (vide recomendação nº 35/19).

 

Com efeito, esse nebuloso grau de ingerência do MP sobre a fundação somente robustece as dúvidas e cogitações acima. Destarte, em sendo essa a realidade, não seria despropositado cogitar de uma potencial prevaricação derivável do tal acordo, redundando sim no retardamento ou não adoção de ato de oficio - qual seja, a propositura das ações civis públicas devidas -, buscando com isso a satisfação de interesse ou sentimento pessoal – materializado pela futura nova capitalização da Fundação privada a ser constituída).

 

Lado outro, se o MP reconhece de fato que a Petrobrás não é a autora, mas sim a vitima dos danos, não poderia jamais alocar os valores da multa em prol de seus acionistas, devendo restituí-los à companhia – ou ao tesouro - para assim recompor minimante os danos sofridos por companhia e/ou poder público. Ato contínuo, na esteira da lei 7.913/89 deveria então promover as demais ações cabíveis, fosse em face dos administradores faltosos, fosse em desfavor da União, enquanto acionista controladora em eventual abuso, omissão ou conivência.

 

Nesse ponto, é sintomática e digna de nota a ressalva constante do “considerando” 10 do pacto, cujo texto destaca que, “de acordo com a lei 13.303/16, a realização do interesse coletivo de uma sociedade de economia mista deverá ser orientada para o alcance do bem-estar econômico e para a alocução socialmente eficiente dos recursos geridos por ela.”

 

Embora verídica, essa concepção holística da responsabilidade corporativa não afasta de per se as sociedades de economia mista dos deveres para com os acionistas, como aliás o prescreve expressamente a mesma lei 13.303/16, em seus arts. 4º, 5º e 6º, este último taxativo em sua parte final no sentido de que o estatuto deverá prever mecanismos de proteção aos acionistas, nos termos da LSA.

 

De todo modo, se a opção pelo destaque do aspecto social macro talvez justifique o menor zelo do acordo – e do MP - para com os acionistas, tal leitura não aparenta tampouco dar lugar ao confisco de recursos que deveriam voltar ao caixa da companhia para atividades sociais cujo conteúdo transita na mais pura abstração e subjetivismo ideológico.

 

Bem verdade que o pano de fundo desta temática é objeto de um debate muito mais complexo, em especial após a edição da lei 13.303/16. No entanto, a postura do Ministério Público parece antepor-se à visão da própria CVM a respeito, conforme assentado nos casos Eletrobrás e EMAE/Sabesp nos quais, embora anteriores à lei em questão, a sinalização foi de que a responsabilidade social e o atendimento às expectativas de outros stakeholders não podem por si só induzir a companhia a desviar-se de sua finalidade lucrativa primeira, senão nas hipóteses relacionadas ao interesse que justificara sua criação, segundo previsão do art. 238 da lei das S.A. Convenhamos, contudo, a criação da Petrobrás não parece ter sido motivada pela necessidade de se incutir uma determinada espécie “cultura nacional”, como se dispôs nas finalidades do acordo.

 

Em suma, o que se tira da leitura sistemática do acordo é, o órgão (Ministério Público) a quem se atribui legalmente o poder-dever de persecução indenizatória pró-acionistas, abdica voluntária e inexplicavelmente deste múnus, entrecruzando de modo no mínimo errante interesses da companhia com os seus próprios e compactuando com assertivas dúbias – como, v.g., a tese da situação jurídica de vítima da Companhia -, as quais em boa parte se contrapõem aos fundamentos jurídicos aptos a edificar uma eventual ação civil de responsabilidade por danos ao mercado.

Enfim, à ótica societária o acordo firmado parece transmitir uma lamentável mensagem negativa ao mercado

__________

*Henrique Barbosa é doutor em Direito Comercial pela USP, coordenador e professor do pós-graduação em Direito do IBMEC, diretor do IBRADEMP. 

*Eduardo Souza é doutorando em Direito Comercial pela USP. Juiz Federal em Vitória/ES.

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