Migalhas de Peso

A polêmica do exame da OAB: carta aberta ao presidente da República

Ainda que o ensino, de um modo geral, e o ensino nas universidades, notadamente as de Direito, de modo específico, fossem bons, mesmo assim o Exame de Ordem se justificaria, por sua função batismal.

6/3/2019

Propiciar um ambiente para a busca da felicidade, na síntese das sínteses contida na Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, de 4 de julho de 1776, é a finalidade da República. Mas o Estado não diz, nem deve dizer - não num governo de soberania popular, apostado na liberdade -, como cada um deve fiar o fio da vida para alcançá-la. Ninguém, senão o próprio homem - adaptando aqui o verso de Whitman –, pode atravessar essa estrada por ele. A Constituição Federal de 5 de outubro de 1988 não alude, em seu preâmbulo, à busca da felicidade (como, de resto, nem a estadunidense, promulgada em 17 de setembro de 1787). Mas ela consagra, em caráter de fundamentalidade, no seu art. 5º, XIII, a liberdade de profissão, isto é, a opção de escolha, de cada um, do meio como a vida será vivida. Isso não significa, no entanto – conforme o referido dispositivo ressalva -, que a lei não possa, e até mesmo não deva, estabelecer requisitos e fixar padrões mínimos de qualificação para o exercício de atividades profissionais, em prol da sociedade. No caso da advocacia, essa regulação cabe à OAB, por seu Conselho Federal, de acordo com os arts. 8º e 44, II, da Lei n. 8.906/1994. E dentre os requisitos exigidos para a seleção de advogados, insere-se o da aprovação do bacharel-candidato no Exame de Ordem (art. 8, IV, e parágrafo 1º).

Recentemente, o presidente a República externou sua intenção, fruto de uma convicção pessoal -- já antiga, aliás --, de abolir o Exame de Ordem, por considerá-lo, basicamente, injusto e desnecessário. É fundamental assinalar que não foi a OAB que instituiu o Exame de Ordem. Foi a lei que (re)criou a OAB (Lei 8.906/94) que o instituiu; a OAB apenas o regulamentou, conforme o provimento 144, editado por seu Conselho Federal. O Exame de Ordem, portanto, é (de origem) legal. Para que se cogitasse, então, da sua supressão, nova lei, revogando-o, deveria ser editada pelo Congresso Nacional. Assim, o chefe do executivo federal, sozinho, nada pode aqui, ou pode pouco, ou pode apenas e tão somente nos limites em que participa da tramitação de qualquer proposta de lei.

O Exame de Ordem cumpre (ao menos, para não nos estendermos aqui) duas relevantes funções: a) iniciática; e b) de controle de qualidade. A iniciática radica na natureza das coisas; decorre do mundo da vida. “Tudo é símbolo e analogia (o vento que passa, a noite que esfria ...”), diz o verso de Pessoa. E o Exame de Ordem materializa, justamente, no âmbito da advocacia, essa simbologia do devir, marcada pela constante alteração de status: dali em diante, não mais bacharel, mas advogado que, no tirocínio e na responsável militância prática, isto é, exercendo a advocacia em defesa, antes de tudo, do cumprimento da Constituição Federal e das leis.

As universidades, com efeito, não formam advogados, apenas bacharéis em Direito (e o princípio vale, queremos crer, para qualquer atividade profissional. Aliás, não forma nem advogados, nem juízes, nem procuradores, nem defensores públicos. Juízes, procuradores e defensores submetem-se a concursos públicos. Mas o concurso público não é apenas uma modalidade necessária de contratação/seleção de particulares pelo Poder Público para o exercício de uma função pública; é, na origem, um rito de passagem. Ali, preparando-se para o certame – condicionando, focando e mobilizando suas energias físicas e psicológicas para essa finalidade, com a adoção de todos os atos necessários para o êxito da missão -, o candidato vai se preparando para o seu novo status, que o acompanhará no exercício do seu relevante ofício. E o mesmo se dá no exame de ordem da OAB. Não é só a prova em si; não é o evento isolado; não é nada disso, que seria pouco. É, antes, e previamente, aquela preparação mental e finalística; é o contato com a deontologia profissional; o contato com as práticas, os valores e com a maneira de pensar própria de um advogado, vocacionada, como deve ser, à defesa intransigente das liberdades, sobretudo, do Estado Democrático de Direito, e dos direitos e garantis fundamentais, notadamente dos direitos humanos. O exame de ordem, então, com tudo o que o pressupõe, é uma maneira de o bacharel, aspirante a advogado, entrar em contato com esse universo. A prova simboliza esse trabalho de transição; objetiva essa passagem. Talvez, quiçá, num outro contexto sócio-econômico, conviesse, não a sua supressão, mas a sua intensificação – não, portanto, o rebaixamento, mas a elevação do sarrafo de qualidade -, com a adoção de práticas adicionais, de modo ainda mais acurado. Mas talvez aí já se começasse a pender para algum excesso, com mais dispêndio de tempo, recursos e expectativas humanas. Nesse contexto, ainda que o ensino, de um modo geral, e o ensino nas universidades, notadamente as de Direito, de modo específico, fossem bons, mesmo assim o Exame de Ordem se justificaria, por sua função batismal.

Mas o fato é que o ensino universitário, de um modo geral - e sempre há honrosas e tradicionais exceções que confirmam a regra -, não é bom. Antes, é muito deficitário. Com isso, a função de controle (mínimo de qualidade) exercida pela OAB, à luz da conjuntura atual (de décadas de retilíneo depauperamento linguístico-cultural), explica-se por si mesma, como uma verdade de Conselheiro Acácio. Como abrir mão dela, considerando todo o quadro da (des)arte em volta? Quanta responsabilidade, seriíssima, não está implicada no exercício da advocacia, que, ainda que privada, consubstancia, também ela, um serviço público? Aliás, por que, sendo ela também um serviço público, marcado pela nota da essencialidade (conforme art. 133 da Constituição Federal de 1988), assim como a própria OAB é um serviço público (art. 44, caput, da lei 8.906/94), deveria se dar, com a advocacia, de um modo diferente do que se dá com as demais carreiras públicas do Direito? Tirando ministros do Supremo Tribunal Federal, para cujo cargo exige-se invulgar conhecimento jurídico, e as vagas dos tribunais da federação reservadas aos advogados pelo quinto constitucional, para cujo preenchimento, de igual modo, se pressupõe exitosa e bem encaminhada prática advocatícia, quem concebe hoje preenchimento de qualquer outra carreira jurídica sem um mínimo de controle de qualidade, por meio de concurso de provas ou provas e títulos? Seria uma temeridade, portanto, pelo pouco que até aqui já se expendeu, abolir o exame de ordem.

A OAB, com certeza, não irá salvar a educação no Brasil, até porque esse não é o seu mister. Por isso, fica aqui um apelo cívico: comecemos, enfim, a fazer a coisa certa; comecemos, afinal, do começo; comecemos, portanto, da educação, séria, intensa, massiva, comprometida e de qualidade, em todos os níveis. Mas comecemos mais urgentemente pelas crianças, pela nova geração que começa, a geração do futuro, para que ela tenha algum futuro. Nada é por acaso; nada vem por acaso; e nada aconteceu por acaso. O ensino universitário é ruim, porque os ensinos fundamental e médio são ruins – para não descermos mais fundo, até a educação infantil. E os ensinos médio e fundamental são ruins, porque a educação não é prioridade. A língua portuguesa, aliás (tão bela e tão desmerecida!), não é prioridade. E a situação só piora. O que vale, hoje, como dizem – e quem o diz são vozes oficiais – é comunicar e fazer-se entender, o resto é parnasianismo. Com isso, e como sempre tem sido, em vez de projetarmos para cima, e elevarmos o discurso e o padrão das relações, forjamos ideologias tropicalistas para nos absolver de erros históricos e culturais que nos condenaram à miséria – e nela somos mantidos. E assim seguimos, indulgentes e transigentes com tantos déficits. A pobreza de uma cultura começa com o rebaixamento de sua língua. Não se trata, aqui, de nacionalismos obsoletos. A língua é muito maior do que a nação: ela é transnacional (o português está entre as oito línguas mais faladas no mundo, na frente do alemão, do francês, do italiano e do russo e de tantas outras, graças à coragem de Vasco da Gama e ao gênio de Camões). Nem se trata de virtuosismo estético: a língua é o nosso instrumento de inserção e integração no mundo e, como tal, o maior patrimônio de que um indivíduo, isoladamente considerado, e um país, tomando-o coletivamente, como soma de todos os indivíduos, pode dispor. A língua, que é uma experiência vital e criadora, pode levar qualquer um a qualquer lugar. Ela é, pois, o princípio da liberdade. De mais a mais, num mundo de dispersões, tal como o de hoje, sem narrativas globais, próprio de uma sociedade heterogênea, multitudinária e fraturada – e haver diferença é bom, pois as tensões fazem parte do jogo -, o que, senão a língua, afinal, nos une? Que a nossa felicidade, ou aos menos uma parte dela, individual e coletiva, seja a busca do tempo perdido na área da educação.

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*Ana Tereza Basilio é vice-presidente da OAB/RJ e sócia do escritório Basilio Advogados.

*Bruno Di Marino é sócio do escritório Basilio Advogados.









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