O emblema bandeira branca é mais conhecido por ser o símbolo da paz. Ao levantar uma bandeira branca, um exército está desistindo de sua luta, não necessariamente se rendendo à nação inimiga, mas pedindo trégua, de modo a não avançar numa batalha que, por cálculo e risco, não é mais compensadora. “Ao contrário do que diz o senso comum, ela não significa necessariamente paz, mas apenas o desejo de seu portador em interromper os combates para conversar”1.
Pois bem. No plano do controle externo, não é qualquer novidade a quantidade desenfreada de ações civis públicas por supostos atos de improbidade administrativa propostas pelo Ministério Público em desfavor dos gestores, à base, sempre, de uma suposta ineficiência quanto à tomada de decisões. De igual modo, os Tribunais de Contas, na ânsia de exercer um controle efetivo, ousaram não apenas aconselhar e controlar, mas se sobrepor mesmo ao gestor público, apenando os agentes públicos quando não existente uma coincidência de escolhas entre o exercente da função administrativa e o controlador. Isso gerou, no âmbito da administração pública brasileira, um temor em decidir: na dúvida, melhor não opinar, ainda que a omissão desague em prejuízo ao interesse público. Esta é, sem dúvidas, a situação mais lamentável que possa existir!
Auspiciosamente e granjeando uma nova estrutura permissiva à tomada de decisões no âmbito da administração pública, de modo a evitar o “apagão das canetas”2, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB - passou por contundentes modificações, já no ano de 2018, por meio das alterações promovidas pela lei 13.655/18, com a inserção de diversos dispositivos que permitem ao gestor a concretização das políticas públicas de forma mais segura e tendente à solidificação da eficiência3 no atuar e exercício da função administrativa.
Vários de seus dispositivos, inseridos por meio da modificação empreendida pela lei 13.655/18, guarnecem a administração pública quanto à tomada de decisões, permitindo uma maior segurança jurídica no atuar administrativo e evitando, por derradeiro, o intrépido controle externo que soia ocorrer em situações donde, em regra, não emergia sequer possibilidade de se controlar. Este é, dentre tantos, o motivo pelo qual foi pensado o art. 28 da LINDB, com todos os seus não suprimidos parágrafos, claro!
Tal dispositivo prevê que “o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”. Ou seja, a norma permite uma maior estabilidade para a prática dos atos administrativos, subtraindo, do gestor, o temor imensurável quanto à tomada de decisões.
Não há negar, contudo, que o art. 28 não resolve a situação por completo – e aqui já passo a ser mais claro e direto. E por que não resolve? Explico: porque ele se limita ao seu próprio caput, sem que aclare, contudo, o que se deve entender por erro grosseiro. É que o conceito de dolo já se faz mais apreensível na prática; o erro grosseiro, não – carece de uma maior regulamentação, sob pena de cair numa vagueza angular, o chamado conceito jurídico indeterminado.
Havia, no original projeto de lei 7.448/17, a previsão de três parágrafos no art. 284. O § 1º possuía a seguinte redação: “Não se considera erro grosseiro a decisão ou opinião baseada em jurisprudência ou doutrina, ainda que não pacificadas, em orientação geral ou, ainda, em interpretação razoável, mesmo que não venha a ser posteriormente aceita por órgãos de controle ou judiciais”. Todavia, tal parágrafo foi vetado, e, nas razões do veto, consta:
A busca pela pacificação de entendimentos é essencial para a segurança jurídica. O dispositivo proposto admite a desconsideração de responsabilidade do agente público por decisão ou opinião baseada em interpretação jurisprudencial ou doutrinária não pacificada ou mesmo minoritária. Deste modo, a propositura atribui discricionariedade ao administrado em agir com base em sua própria convicção, o que se traduz em insegurança jurídica5.
De tal modo, restou ao art. 28 apenas a redação do caput, que é genérica e de conteúdo juridicamente indeterminado. É claro que há, certamente, zonas de certezas positivas e negativas. Existem casos em que se percebe, facilmente, que o agente público poderia ter agido com mais acuidade, não incidindo em erro grosseiro ou até mesmo dolo. André Castro Carvalho6 destaca que existem situações que são impassíveis de dúvidas, “preto no branco”, e que não devem trazer qualquer discussão jurídica.
(...) É certo que existem situações “preto no branco” que não devem trazer muita discussão jurídica. Um parecer de duas páginas em uma licitação de 1 bilhão de reais que dá errado pode ter uma presunção iuris tantum de erro grosseiro - dificilmente o responsável pela opinião abordou todos os pontos controvertidos do projeto, a não ser que seja ele um X-men com poderes mutantes de síntese.
Considerando a imprecisão do termo “erro grosseiro” e a ausência de regulamentação, na lei, quanto ao seu sentido, voltamos ao ponto de partida, e aqui exsurge mais uma vez o problema: caberá aos órgãos de controle definirem, topicamente, em cada caso em concreto, se determinada ação do agente público poderá ser ou não passível de responsabilização pessoal. A imprecisão terminológica conduz ao controle casual, distraído de qualquer conteúdo objetivo e, mais que isso, aumentando, sem qualquer pejo, a insegurança jurídica. Ou seja, nada mudou!
Aliás, o Tribunal de Contas da União - TCU, aplicando o conteúdo das alterações havidas na LINDB, demonstrou a total veracidade da tese indicada acima, visto que o conceito de “erro grosseiro” permanece deveras subjetivo. Explica-se: a fim de “regulamentar” o alcance da norma, os ministros do E. TCU já apresentaram três versões distintas sobre o que representa a suposta grosseria do erro, a ver:
“Para fins do exercício do poder sancionatório do TCU, pode ser tipificado como erro grosseiro (art. 28 do decreto-lei 4.657/42 – LINDB) o descumprimento de normativo da entidade pelo gestor, especialmente o que resultar em danos materialmente relevantes.” (Acórdão 2677/18 julgado em 21 de nov. de 2018. Relator: min. Benjamin Zymler)
“O erro grosseiro a que alude o art. 28 do decreto-lei 4.657/42 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), incluído pela lei 13.655/18, fica configurado quando a conduta do agente público se distancia daquela que seria esperada do administrador médio, avaliada no caso concreto.” (Acórdão 2860/18 julgado em 5 de dez. de 2018. Relator: min. Augusto Sherman)
“Para fins do exercício do poder sancionatório do TCU, erro grosseiro (art. 28 do decreto-lei 4.657/42 – Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro) é o que decorreu de grave inobservância do dever de cuidado, isto é, que foi praticado com culpa grave.” (Acórdão 2924/18 julgado em 12 de dez. de 2018. Relator: min. José Mucio Monteiro)
Entretanto, a “boa nova” reside justamente na interpretação a contrario sensu da norma aqui estreitada. É que a inserção, no texto legal, de que o agente responde pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas nos casos de dolo ou erro grosseiro leva, necessariamente, ao entendimento de que não pode haver uma implicação de responsabilidade desordenada, mas apenas nos casos previstos na lei: dolo e erro grosseiro. Até parece uma tautologia, mas não! Os conceitos e a dicção literal da norma importam para a interpretação do controlador e, sem dúvidas, este foi o desiderato da lei 13.655/18.
A despeito da inexatidão jurídica dos termos utilizados pela LINDB, designadamente “erro grosseiro”, é certo que o seu art. 28 pode vir a funcionar como uma “bandeira branca”, afastando a incontornável guerra travada pelos órgãos de controle junto ao exercente da função administrativa, e permitindo maior eficiência na gestão da coisa pública, evitando, significativamente, a inércia do agente público em decidir, de modo a lhe poupar do medo! No entanto, para que isso ocorra, é de rigor que a interpretação dada, pelos órgãos de controle, coadune-se com o “espírito da norma”: uma “bandeira branca” à ação do administrador público. Assim, é necessário que haja parcimônia para a devida aplicação da norma, pois, do contrário, com a banalização do “erro grosseiro”, apenas estimulará, ainda mais, o citado “apagão das canetas”.
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1 Trégua na Síria: o valor da ‘bandeira branca’ e de outros símbolos no campo de batalha. Acesso em 16 de fevereiro de 2019.
2 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; FREITAS, Rafael Véras. O artigo 28 da nova LINDB: um regime jurídico para o administrador honesto. Consultor Jurídico – CONJUR. 25 maio 2018. Acesso em 16 de dezembro de 2018.
3 Sérgio Ferras e Amauri Saad, in “FERRAZ, Sérgio; SAAD, Amauri Feres. Autorização de serviço público. São Paulo: Malheiros. 2018”, são contundentes quanto à categorização da Administração Pública eficiente. “(...) o núcleo hoje inegável do direito administrativo repousa no cultivo ao conceito de eficiência. Há que se olhar até com piedade a opinião dos primeiros e apressados glosadores (ou, melhor, autênticos “gozadores”) que, atordoados com a inserção na Constituição do princípio da eficiência, se dedicaram a negar sua relevância e compostura jurídica e a pregar fosse ele ignorado até pelos juristas (à semelhança do que antes intentado relativamente ao princípio da moralidade). Negação cega e estulta (do mesmo quilate da negação à imperatividade, em nosso constitucionalismo, do princípio da subsidiariedade). A busca da eficiência é a busca da própria razão de ser do direito administrativo; e tão dramática é essa constatação, que na referida obra coletiva, supracitada, chegamos, mesmo, a afirmar que eficiência é o nome que hoje poderíamos dar ao próprio direito administrativo. (...). Analogicamente, diremos: ao direito administrativo da função administrativa, ao direito administrativo do ato administrativo, ao direito administrativo da coparticipação, segue-se, e hoje prepondera, o direito administrativo da eficiência (e, pois, o direito administrativo do controle)”. Grifo não consta no original.
4 Os parágrafos segundo e terceiro, apesar de importantes, não possuem relevância para a presente discussão, razão pela qual não são citados.
5 Mensagem 212. Acesso em 16 de fevereiro de 2019.
6 CARVALHO, André Castro. Pele em jogo: a LINDB e as assimetrias ocultas no cotidiano do administrador público brasileiro. In: CUNHA FILHO, Alexandre Jorge Carneiro; ISSA, Rafael Hamze; SCHWIND, Rafael Wallbach. Lei de introdução às normas do direito brasileiro: anotada. São Paulo: Quartier Latin. 2019, Vol. II, p. 438-444, p. 443.
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*Guilherme Carvalho é doutor em Direito Administrativo e mestre em Direito e Políticas Públicas. Advogado e sócio do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados. Palestrante, professor e articulista.