Sem citar nomes, que já estão públicos nas redes sociais e em outros meios de comunicação, temos tido uma sequência infeliz, desde o início de 2019, de inadimplementos contratuais na entrega de energia elétrica por parte de empresas comercializadoras.
Essas empresas venderam energia elétrica futura às empresas/clientes (consumidores livres que podem ser indústrias, shoppings centers, centros comerciais ou edifícios comerciais, entre outros), que aderiram ao mercado livre, por um preço fixo, para posteriormente comprá-la no mercado, dos geradores, a preços baixos.
Contudo, a “aposta” no clima não foi certeira (nunca o é; o que se fazem são estudos bem abalizados, mas que não dão resultados matemáticos perfeitos) e essas comercializadoras acabaram não se dando tão bem assim, pois, com a queda do regime pluviométrico, os preços de liquidação da energia elétrica se elevaram no início deste ano. Quebra de mercado visível e exposição do mesmo em milhões.
Destaque-se que, para quem não está afeto ao tema, o mercado de trading de energia elétrica já vem de longa data, desde a época de Fernando Henrique, quando, com as necessidades de racionamento de energia elétrica, abriu-se a brecha para a implantação do mercado livre de energia, sendo as comercializadoras as intermediárias entre produtores e consumidores1.
Infelizmente, ainda não temos estoques de energia elétrica para venda, o que faz com que o mercado trabalhe com riscos, basicamente, climáticos para a produção desse bem, vez que nossas matrizes são hidrelétricas e eólicas (as fotovoltaicas estão engatinhando, tema sobre o qual já falei quando tratei da geração distribuída).
Essas variações são carregadas para um necessário ajuste de preços que é feito, semanalmente, junto à Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), por meio de uma transação financeira balizada pelo Preço da Liquidação das Diferenças (PLD).
Em suma, o risco nesse mercado é gigante, sendo que os adquirentes da energia elétrica devem avaliar o crédito das comercializadoras, e só deveriam fechar contratos com quem tem demonstrações financeiras robustas para resistirem a momentos de escassez ou estresse na geração/produção do bem energia elétrica.
A regulação existente não exige qualquer tipo de garantias financeiras para que as comercializadoras operem, e entendo que isso não deveria mesmo estar regulado, porque estamos tratando de uma relação negocial de cunho privado, que não deve ter interferência nesse nível por parte do governo. De certa forma, pode-se afirmar e concordar que o mercado deve se autorregular.
Alguns representantes de comercializadoras defendem que seria missão impossível fazer com que as intermediárias se quedassem a ofertar garantias firmes da entrega da energia elétrica sob a forma de, em não se gerando a energia vendida, que existissem instrumentos financeiros por detrás que garantissem a diferença, pois isso levaria os valores dessas garantias a cifras estratosféricas, que inviabilizariam o mercado.
Pode ser, sim, que num primeiro momento, garantias usuais ou de mercado padrão não servissem, mas deve haver um esforço conjunto do mercado (dos entes privados e não do governo) para desenhar cláusulas e instrumentos de garantia, assim como sói ocorrer em grandes operações privadas de negociação de bens, em especial, aqueles que terão entrega futura (alienação fiduciária de ativos, por exemplo).
E nessa seara, trazendo o tema para o campo do Direito Civil, onde quase não é explorado, visto que a energia elétrica é extremamente usada, tratada e visualizada sob os aspectos do Direito Administrativo e Regulatório, basta pensarmos nos contratos de compra para entrega futura de safras agrícolas, que são contratos aleatórios e que trazem ínsitas as vicissitudes desse mercado.
Assim, os tribunais já entendem que períodos prolongados de estiagem, fortes chuvas, pragas na lavoura, por exemplo, não configuram acontecimentos extraordinários aptos a justificar o inadimplemento contratual, pois são situações previsíveis e até esperadas na agricultura, devendo ser levadas em consideração pelos agricultores antes do plantio, em especial quando contratam a venda para entrega futura com preço certo. Dessa forma, não evidenciados o desequilíbrio contratual e a onerosidade excessiva, pelo que não se pode aceitar a rescisão do contrato2.
No caso da compra e venda de energia elétrica, como já apontado, os riscos na geração desse bem são enormes, podendo não ser previstos no ato das contratações (quase sempre não o são), mas previsíveis, a ponto de não se poder alegar teoria da imprevisão para rompimento contratual.
Os contratos de entrega de safras futuras têm vários tipos de garantias firmadas entre as partes, justamente por conta dessa dificuldade em prever eventos que podem ocorre sim, apenas não se sabe quando e em que montante. Se vale para tais contratos, devemos pensar em instrumentos de garantia equivalentes, redesenhados para o mercado da energia elétrica, pois estamos na seara do Direito Civil, contrato que tem um bem jurídico envolvido e que deve ser adimplido.
Contudo, entendo que há comutatividade contratual sui generis no contrato de comercialização de energia elétrica no ambiente livre, que não é medida pela disponibilidade física da mesma, mas, antes, pela econômica. Existe uma álea natural na efetiva entrega física, mas que, como visto, não é parte integrante de tal contrato, não o tornando um contrato puramente aleatório, visto que as partes pactuam montantes, prazos e preços, e a energia elétrica será efetivamente gerada em algum ponto e consumida pelo adquirente em outro (centro de gravidade do recebimento da energia). Trata-se de um modelo híbrido, visto que o contrato permite a alocação de riscos pelas partes na sua formatação3.
Podem e devem ser desenhadas cláusulas de garantia financeiras robustas no contrato de compra e venda, que remetam a instrumentos de garantia financeira e/ou assecuratória (seguro-fiança ou carta fiança, por exemplo), que serão executados nas hipóteses que vêm ocorrendo no mercado.
Os juristas são criativos e devem se valer de modelos contratuais outros, ou até mesmo de externos, como os europeus, para criar proteções contratuais que assegurem o adimplemento, ainda que por compensação, e execução adequada dos contratos de compra e venda de energia, pois não se pode deixar que um mercado tão importante como esse seja maculado por situações de inadimplemento contratual totalmente previsível.
O mercado livre vem ao encontro de temas afetos à geração da energia, como a própria geração distribuída, que tem por foco a energia solar fotovoltaica, em produção que se pode chamar de “pequena escala”, em virtude de painéis instalados em residências ou pequenos comércios e que em muito incrementaram o mercado de geração, levando-o na mão da sustentabilidade e da opção do consumidor na aquisição da própria energia.
É papel dos juristas, em especial aqueles que atuam nos ramos de negociações empresariais e contratos mercantis, inovar, trazer à luz conceitos do Direito que podem e devem ser aplicados a este mercado tão rico e imprescindível ao nosso tão almejado desenvolvimento sustentável.
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1 Lei Federal 10.848, de 15/3/04, dispõe sobre a comercialização de energia elétrica no mercado cativo e n mercado livre.
2 Acórdão 760466, 20120111252472APC, Relatora: SIMONE LUCINDO, Revisor: ALFEU MACHADO, 1ª Turma Cível, Data de Julgamento: 12/2/14, Publicado no DJE: 19/2/14. Pág.: 86.
3 UEDA, Andréa Silva Rasga. Os contratos de comercialização de energia elétrica: uma análise sob o prisma do Direito Civil. São Carlos: Editora De Castro, 2018, p. 226.
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*Andréa Silva Rasga Ueda é doutora e mestre em Direito Civil pela USP.