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Startups e geração de negócios público-privados com inovação tecnológica

Os desafios atualmente existentes podem ser mitigados e mesmo superados por instrumentos diversos já existentes, sendo bem-vindas também alterações normativas que regulem de forma específica a participação de startups em licitações e contratações públicas.

20/2/2019

As contratações entre entes da Administração Pública (direta, indireta e fundacional) e a iniciativa privada se realizam, em regra, por meio de procedimentos licitatórios e os contratos deles decorrentes, denominados “administrativos”, têm características próprias em razão da natureza da parte contratante. 

Sendo as startups empresas privadas, para que estabeleçam relações negociais com a Administração Pública devem, a princípio, se submeter a licitações prévias. Todavia, sabe-se também que as startups, por sua própria natureza, apresentam peculiaridades que precisam ser consideradas ao se ponderar sobre modelos de negócios com entes administrativos, especialmente por serem empresas privadas iniciantes, cujo propósito é a geração de negócios de forma escalável e repetível, visando a expansão, num ambiente de riscos e incertezas quanto ao êxito duradouro da inovação tecnológica concebida.

Portanto, considerando tais circunstâncias, a realização de negócios entre as startups e a Administração Pública apresenta desafios e também atrativos, razão pela qual cabe a reflexão sobre como as startups poderiam atuar na geração de inovação tecnológica de forma eficiente, produtiva e com impacto público.

Há várias modalidades de licitação, regidas por leis diversas que compõem o marco regulatório dos certames públicos. A lei 8.666/93 é a referência principal e estabelece normas gerais aplicáveis para os modelos nela previstos (concorrência, tomada de preço, convite, concurso e leilão), bem como, ainda que subsidiariamente, para outros modelos estabelecidos em normas publicadas posteriormente (tais como pregão e RDC – Regime Diferenciado de Contratações).

Numa licitação, independentemente da modalidade ou do regime adotado, sempre existe, com maior ou menor flexibilidade, a fase da habilitação. Nesta fase, não se avaliam propostas de execução do escopo contratual, mas sim determinados atributos da empresa licitante, para verificar sua capacidade, regularidade e aptidão para executar futuramente o contrato. Geralmente essa qualificação tem os seguintes vieses: jurídico, fiscal, trabalhista, econômico-financeiro e técnico.

Quanto à regularidade jurídica, fiscal e trabalhista, não se vislumbram maiores dificuldades para empresas nascentes. Já em relação às exigências econômico-financeiras, podem ocorrer desafios para uma startup, podendo ser exigido no edital capital social ou patrimônio líquido mínimo, ou índices financeiros, que a empresa pode não ter capacidade de atender.

Por outro lado, no tocante à qualificação técnica, é bastante comum que se exijam atestados técnicos que demonstrem experiência anterior da licitante na execução de escopos similares, o que também pode configurar um desafio para empresas nascentes que ainda não constituíram seu acervo técnico.

No marco regulatório atualmente vigente, não existe um tratamento específico para startups que efetivamente considere suas peculiaridades de modo que sua participação em negócios públicos mediante licitação seja efetivada de forma competitiva e atrativa para todas as partes envolvidas.

De qualquer modo, a participação de startups pode ser viabilizada por meio da composição de consórcio com outras empresas, se assim permitido no edital. Assim será possível se utilizar do somatório de capacidades econômico-financeiras e técnicas - por ex., somatório de patrimônios líquidos ou apresentação de atestado técnico apenas por uma consorciada, aproveitando a todas.

Outro caminho de mitigação desses desafios são as hipóteses de contratação direta, nas quais a Administração Pública está dispensada de realizar certame licitatório, existindo, portanto, flexibilização das exigências a serem cumpridas. A legislação vigente prevê diversas possibilidades de dispensa de licitação, algumas delas relativas ao valor do contrato, outras a circunstâncias externas específicas, outras ao objeto contratual.

Algumas hipóteses que ora nos interessam especialmente dizem respeito a contratações que envolvem inovação tecnológica, merecendo destaque o inciso XXXI do artigo 24 da lei 8.666/93, que prevê dispensa de licitação nas contratações visando ao cumprimento do disposto nos arts. 3o, 4o, 5o e 20 da lei 10.973, de 2 de dezembro de 2004, observados os princípios gerais de contratação dela constantes. Note-se que exatamente a mesma hipótese de dispensa está prevista também na lei das Estatais (lei 13.303/16, art. 29, XIV).

A referida lei 10.973/04 dispõe sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo – é a conhecida lei de Inovação. Nos mencionados arts. 3o, 4o, 5o  e 20 está prevista a dispensa de licitação para contratar empresas para a realização de atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação que envolvam risco tecnológico, para solução de problema técnico específico ou obtenção de produto, serviço ou processo inovador, e também para o fornecimento, em escala ou não, do produto ou processo inovador resultante das atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação encomendadas.

Ou seja, duas contratações importantes para as startups podem ser realizadas diretamente, com dispensa de licitação: a “encomenda tecnológica” de uma solução inovadora e o fornecimento em si (“em escala ou não”) da solução inovadora anteriormente encomendada. Essas previsões legais estão plenamente vigentes e são ferramentas aptas a serem já utilizadas em negócios entre startups e entes da Administração Pública.

Outra reflexão a ser feita é a possibilidade de startups serem contratadas para parcerias público-privadas – as PPPs, que são contratos longos e complexos, que propiciam investimentos de monta e expressivas melhorias na prestação de serviços de impacto e interesse público.

O contrato de PPP deve ter um prazo entre 5 (cinco) e 35 (trinta e cinco) anos e deve envolver investimentos de, no mínimo, R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais), incluindo aquisição de equipamentos e/ou realização de obras, sendo que os bens e a infraestrutura vinculados ao serviço deverão reverter ao parceiro público ao término da PPP.

É possível conceber um contrato de PPP administrativa, p. ex., para a implantação e a gestão de determinada infraestrutura (como uma planta tecnológica), pela qual se proveria um serviço à Administração Pública, com impacto público direto ou indireto.

Cumpre notar, todavia, que para uma PPP é obrigatória a prévia licitação (inclusive, em sua modalidade mais complexa, a concorrência), não havendo hipótese aplicável de dispensa. Considerando a maior complexidade desses contratos, os requisitos de habilitação exigidos também podem ser mais rigorosos, sendo improvável que uma startup tivesse condição de participar de uma licitação desse porte isoladamente.

De qualquer modo, pode ser viável essa participação por meio de um consórcio com outras empresas, conforme já mencionado anteriormente, utilizando-se de somatório de capacidades econômico-financeiras e técnicas. Considerando também a necessidade de realização de investimentos em uma PPP, é relevante que haja investidores aptos como acionistas, que possam suportar a constituição da SPE (com aportes de capital e eventuais outros mecanismos).

Uma outra forma de atuação de startups que pode porventura gerar negócios com impacto público, mas sem envolver contratação com o Poder Público em si, é o estabelecimento de relações contratuais diretas com concessionárias privadas que agem por delegação da Administração Pública para a prestação de serviços de interesse público.

Há exemplos de concessionárias privadas nos mais diversos setores da infraestrutura (rodovias, mobilidade urbana, aeroportos, saneamento básico, hospitais, centros tecnológicos, entre outros). Essas concessionárias privadas, como delegatárias da Administração Pública, prestam serviços de interesse público, que alcançam milhares de pessoas. Sua relação jurídica com o contratante público (o poder concedente) é por meio de um contrato de natureza pública, celebrado após prévia licitação.

Por outro lado, as relações contratuais da concessionária privada com terceiros, que ela pode e deve estabelecer para a execução do seu objeto social, é de natureza privada, conforme expressamente previsto na lei 8.987/95, que rege as concessões em geral.

Ou seja, a concessionária privada pode contratar com terceiros com mais liberdade contratual, sem se submeter a prévia licitação. Assim, startups poderiam celebrar contratos privados com tais concessionárias, com maior flexibilidade de condições e negociação, e tendo por objeto contratual a realização de atividades correlatas aos serviços prestados pela concessionária, gerando, portanto, inovação tecnológica com impacto público direto ou indireto.

Vale mencionar, ainda, que a lei de Inovação prevê também a participação minoritária de entes federativos no capital social de empresas com o propósito de desenvolver produtos ou processos inovadores, desde que estejam em consonância com as diretrizes e prioridades das políticas de ciência, tecnologia, inovação e de desenvolvimento industrial de cada esfera de governo. Essa é uma outra forma de parceria que pode viabilizar atividades de impacto público por parte das startups.

Dessa forma, os desafios atualmente existentes podem ser mitigados e mesmo superados por instrumentos diversos já existentes, sendo bem-vindas também alterações normativas que regulem de forma específica a participação de startups em licitações e contratações públicas.

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*Vanessa Rosa é advogada do escritório Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich & Schoueri.

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