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O Brasil não precisa de um novo Código Comercial nem de novas regras sobre Direito Marítimo, mas de investimentos em transportes, logística e infraestrutura

Em outras palavras: o Brasil precisa urgentemente repensar seus valores e seus direcionamentos, sabendo eleger o que é prioritário e bom para todos.

18/2/2019

Já faz algum tempo que tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que visa a instituir um novo Código Comercial no Brasil.

O projeto de lei, de autoria do deputado federal Vicente Cândido (PT-SP), é considerado muito ruim por especialistas em Direito Empresarial e por um sem número de protagonistas do empreendedorismo no Brasil.

Dizem eles que se trata de um Código confuso, elaborado com péssima técnica legislativa e que, aprovado, já nascerá ultrapassado, fomentando apenas insegurança jurídica.

Concordo com quem pensa assim.

Interessa-me mais, contudo, a parte do projeto de lei que dispõe sobre o Direito Marítimo, ramo que se conecta em grande medida com a minha atuação profissional diária.

Essa parte foi introduzida no infeliz projeto por meio de uma emenda do antigo deputado federal fluminense, hoje presidiário, Eduardo Cunha.

Longe de mim atacar a emenda apenas por conta do seu autor, mas também não posso deixar de externar inegável desconforto por isso, até mesmo em homenagem ao princípio jurídico do “fruto da árvore envenenada” (algo com origem ruim possivelmente será ruim em seu todo, em seus “frutos”).

No entanto, a despeito da desconfortável origem, o fato é que a emenda prejudicará sensivelmente os importadores, exportadores, terminais e seguradores de carga brasileiros, refletindo negativamente em todo o tecido social.

Em outras palavras: todos os consumidores brasileiros, em maior ou em menor medida, serão diretamente prejudicados pela emenda, se o novo Código Comercial for aprovado e promulgado.

Entendo que somente armadores estrangeiros serão beneficiados com esse “Código dentro de um Código”, ou seja, com as regras de Direito Marítimo assim contidas no corpo do projeto de lei do novo Código Comercial.

Isso porque a emenda institui, como princípio, a limitação de responsabilidade do transportador marítimo de carga.

Eis aqui algo que fere de morte a ordem jurídica brasileira, incluindo a jurisprudência, que sempre refutou tal figura, porque nela vê algo de essencialmente injusto e prejudicial aos legítimos interesses econômicos dos donos e seguradores de carga brasileiros.

A limitação de responsabilidade é basicamente um salvo-conduto para a ineficiência operacional. O transportador poderá causar danos milionários, mas é obrigado a reparar civilmente apenas uma ínfima parte dos prejuízos.

Vivemos num tempo em que a alta tecnologia e a engenharia naval fazem da navegação algo cada vez mais seguro e lucrativo para os armadores, mas mesmo assim há quem defenda regras de proteção que não condizem com a realidade e que são manifestamente injustas.

Se a regra principiológica da limitação de responsabilidade for aprovada e entrar em vigor, intermináveis batalhas judiciais ocorrerão, inclusive com socorro ao STF e ao STJ, já que a reparação civil ampla e integral é garantia constitucional fundamental (presente no rol exemplificativo do art. 5º) e regra expressa do Código Civil (art. 944).

A reparação civil integral, mais do que norma constitucional e civil, é, antes de tudo, algo afeito ao campo da moral, do Direito Natural, que não pode ser desprezado de modo algum por quem quer que seja.

A firmeza na reparação integral do dano causado é elemento de calibragem das relações empresariais, investido de invulgar interesse social, já que seus benefícios se espraiam, ainda que indiretamente, a todas as gentes.

Confesso que já fui mais crítico ao conteúdo da emenda. Estudando-a melhor agora, passo a ver aspectos verdadeiramente positivos, mas não posso ainda deixar de enxergar de forma mui negativa a presença do princípio da limitação de responsabilidade, pois, diretamente, repito, prejudicará importadores, exportadores, terminais e seguradores de carga brasileiros e, indiretamente, a sociedade em geral.

Não se trata de discurso nacionalista, mas de perfeita consciência a respeito da gravidade do que se pretende instaurar no país, sob a duvidosa bandeira da modernidade, da adequação aos sistemas internacionais e da movimentação dinâmica dos negócios.

Negócios não são criados por regras legais, mas por políticas inteligentes e ambientes negociais favoráveis. O Brasil é um país com mais de 200 milhões de habitantes e ninguém deixará de negociar com o país por causa de suas regras comerciais.

Há, porém leis demais no Brasil e as regras atuais são mais do que suficientes para a boa disciplina das relações de negócios.

Em minhas viagens profissionais ao exterior, cansei de ouvir de colegas ingleses, italianos, alemães, argentinos, espanhóis, portugueses e outros que o Brasil tem, relativamente ao Direito Marítimo, um dos sistemas legais mais justos, equilibrados e eficientes do mundo.

Justamente porque nunca aderiu a qualquer Convenção Internacional de transporte marítimo, o país jamais aplicou normas injustas, assimétricas, e que beneficiam demasiadamente armadores e afretadores, isentando-os praticamente de qualquer responsabilidade por erros operacionais.

É preciso que tudo continue como está, porque o que é bom para todos não pode ser simplesmente alterado para benefício de alguns.

Enquanto perdurar a regra da limitação de responsabilidade no corpo do projeto de lei, impossível será lhe emprestar apoio, e por isso serei levado a continuar o trabalho de esclarecimento aos congressistas, ainda mais esperançoso, por acreditar que, na nova legislatura, mais qualificada que a anterior, haverá mais espaço para tanto.

Como já dito, o Brasil tem excesso de regras e não precisa de mais outras para temas que já se encontram muito bem regulados e corretamente orientados pela jurisprudência, como é o caso do Direito Marítimo.

A energia gasta à toa nesse projeto de lei deveria ser redirecionada e mais bem aproveitada para outras coisas, como as necessárias reformas da Previdência e do sistema tributário.

Vale a pena insistir: o que gera negócios e alarga as fronteiras do desenvolvimento não são novas leis, mas investimentos e políticas públicas inteligentes e estratégicas.

O Brasil não precisa de um Código Comercial novo, muito menos de regras de Direito Marítimo, mas de incentivos para a navegação de cabotagem, para o desenvolvimento do transporte ferroviário e para a efetiva modernização dos portos e dos aeroportos.

Em outras palavras: o Brasil precisa urgentemente repensar seus valores e seus direcionamentos, sabendo eleger o que é prioritário e bom para todos.

O projeto de lei do novo Código Comercial não é prioritário, muito menos bom para todos, razão pela qual espero em Deus que seja ele sepultado de vez no bom cemitério legislativo do Congresso Nacional.

O momento do país não é para novas leis, muito menos aquelas confusas e casuísticas, mas para a retomada urgente do crescimento econômico, o que exige muito trabalho e muita atenção ao que é concreto, substancial, robusto.

Termino enfatizando a importância de que se deixe de lado tal projeto de lei e de que toda a sociedade concentre energias no redesenho da infraestrutura nacional, priorizando a navegação de cabotagem e o transporte ferroviário.

Respeito as opiniões em contrário, ou seja, favoráveis ao novo projeto de lei e, em especial, ao “código” de Direito Marítimo, mas em boa-fé entendo e defendo que o melhor para o país seja abandoná-lo de vez, concentrando energias na logística, na infraestrutura e na reengenharia dos modos de transporte do país.

__________

*Paulo Henrique Cremoneze é advogado do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados com atuação nos ramos de Direito do Seguro e Direito dos Transportes, mestre em Direito Internacional, presidente do IDT, membro efetivo do IASP, vice-presidente da UJUCASP.

 

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