Em ofício encaminhado ao Cade, ANP analisa medidas necessárias para promover a concorrência no mercado de gás natural e defende a implementação de um programa de gas release para assegurar uma transição progressiva.
O mercado de gás natural no Brasil passa por avanços importantes, mas ainda tímidos, no sentido de uma maior abertura à concorrência. É com bons olhos que iniciativas como a chamada pública da TBG, prevista para este mês de fevereiro, e a chamada pública para aquisição de gás natural promovida por algumas distribuidoras relevantes vêm sendo recebidas pelos agentes do setor.
Na sequência da publicação do decreto 9.616/18, nas últimas semanas de governo do ex-presidente Michel Temer, o ano de 2019 já começou com outra importante sinalização ao mercado. No início de janeiro, a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) divulgou nota técnica enviada ainda em 2018 ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) abordando a competitividade no mercado brasileiro de gás natural, atualmente marcado por um monopólio, e sugerindo que o órgão atue sobre o tema.
O ofício encaminhado ao Cade é mais uma das ações nas quais a agência tem investido para promover a concorrência na indústria de gás natural e que evidenciam o ativismo cada vez maior da ANP em avançar uma agenda de abertura. A nota técnica 14/18-SIM aborda o poder de mercado exercido pela Petrobras na indústria do gás natural de ponta a ponta, descrevendo a dinâmica presente nos diferentes segmentos (exploração e produção, escoamento, processamento, importação, transporte e comercialização e distribuição), e propõe medidas consideradas necessárias ao fomento da concorrência no setor.
Embora a iniciativa do Programa Gás para Crescer não tenha obtido o apoio necessário no Congresso Nacional, seu debate serviu ao menos para que a agência encontrasse ambiente favorável para avançar as discussões sobre o tema e elaborar a nota técnica encaminhada ao Cade. O documento foi concebido com uma abordagem concorrencial, e a agência se preocupou até mesmo em adotar os mesmos instrumentos de análise da autoridade antitruste, levantando questões como barreiras à entrada no mercado, economias de escala, novos ofertantes e garantia de acesso isonômico.
Na primeira parte do documento, a ANP traça um panorama da atuação da Petrobras no cenário atual, confrontando o interesse público e a eficiência econômica. Já na seção seguinte, analisa algumas ações que considera necessárias à promoção da concorrência na indústria. No contexto da decisão estratégica da Petrobras de vender parte de seus ativos no setor de gás e do potencial de abertura que isso representa, as propostas da agência incluem a garantia de acesso isonômico de terceiros a infraestruturas essenciais, a desverticalização dos monopólios naturais no transporte e na distribuição e a implementação de medidas que viabilizem novas ofertas de gás natural e concorrência via preço entre novos ofertantes.
Sobre a aplicação do princípio de livre acesso, a agência reguladora defende a obrigatoriedade do acesso de terceiros (agentes não proprietários de gasodutos) a infraestruturas consideradas essenciais: os gasodutos de escoamento, as Unidades de Processamento de Gás Natural (UPGNs) e os terminais de GNL, sempre de forma não discriminatória, transparente e compatível com a preferência inegável do proprietário. Considerando que a regulação não deve impor mera restrição, mas sim otimizar a utilização dos ativos por diversos agentes a fim de evitar um cenário de monopólio.
Para a desverticalização dos monopólios naturais no transporte e na distribuição, a agência propõe a separação e independência efetivas dos agentes de transporte em relação às demais atividades da cadeia, nos moldes da experiência europeia. Propõe também, em relação à distribuição, que se eliminem as transações comerciais não públicas entre partes relacionadas para atender ao mercado cativo, o que passaria por limitar ou coibir práticas de self-dealing e por promover a publicidade integral de contratos de venda de gás para distribuidoras.
Quanto à implementação de medidas para viabilizar novas ofertas e concorrência via preço, a ANP ressalta a importância de introduzir a competição e desconcentrar a oferta de gás via programas de gas release. Outras recomendações exploradas pela agência são a limitação da participação do agente monopolista no mercado, a restrição da recontratação de todo o volume de gás natural proveniente da Bolívia via Gasbol e a vedação à participação acionária de carregadores no capital votante de transportadores.
A nota técnica é rica em referências aos modelos europeus, explorando a experiência da diretiva 2009/73/EC da União Europeia, que deu origem aos três modelos de independência adotados pelos países europeus para o segmento de transporte, e a experiência dos britânicos com os programas de venda obrigatória de gás natural ou de “liberação de gás”, o chamado gas release. Desenhado para suplantar a ausência de acesso isonômico ao suprimento de gás ou à capacidade de transporte, esse tipo de regulamentação foi introduzido com sucesso no Reino Unido nos anos 1990 para dinamizar a concorrência na indústria de gás natural e, desde então, é adotada em diferentes países e regiões como medida transitória para enfrentar monopólios ou oligopólios bem estabelecidos no mercado de gás natural.
Segundo a ANP, as medidas visariam atingir no longo prazo objetivo único e primordial: caminhar no sentido da liberalização do mercado cativo de forma progressiva e planejada, promovendo a concorrência por meio de transações comerciais transparentes e a preços justos até que o produtor possa vender gás natural diretamente ao consumidor final a preços competitivos e equitativos. Apenas com mais oferta e um mercado efetivamente concorrencial e desconcentrado seria possível gerar mais benefícios para o mercado cativo.
Sem maiores avanços no âmbito legislativo, diante da paralisação do andamento do projeto de lei 6.407/13 (PL do Gás) na Câmara dos Deputados, ou qualquer outro desenvolvimento legal significativo até o momento , o ativismo da ANP é mais do que esperado, encontrando até mesmo uma indústria receptiva, que almeja que todo esse despertar de atividade regulatória e cooperativa com outros órgãos se intensifique, a fim de que ao menos no âmbito infralegal se faça progresso. A divulgação da nota técnica renova a confiança do setor, que prevê maior atividade regulatória e concorrencial no âmbito do Acordo de Cooperação Cade-ANP para os mercados de refino e, principalmente, de gás natural.
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*Maria Fernanda Soares é sócia de infraestrutura do Machado Meyer Advogados.
*Anna C. Joppert é advogada de infraestrutura do Machado Meyer Advogados.