O Brasil, com anos de atraso cultural em relação às políticas liberais de administração do próprio ser, finalmente traz para debate em seara jurídica a adoção de modelos de resolução de conflitos penais moldados pelo já conhecido plea bargain.
Em tal modelo algumas características fundamentais do nosso sistema processual são profundamente alteradas, a saber:
A - Na plea bargaining vigora inteiramente o princípio da oportunidade da ação penal pública, cabendo ao MP e acusado decidirem, em um espaço de consenso, se existirá – ou não – persecução criminal em juízo – sendo que a colaboração premiada já estipula esse mesmo panorama ao prever a "não denúncia";
B – Sendo espaço de consenso, e em havendo concurso de crimes, o parquet pode excluir da acusação algum ou alguns delitos, processando somente aqueles nos quais o consenso com o acusado não foi satisfeito;
C - No plea bargaining o MP e a defesa podem transacionar amplamente sobre a conduta, fatos, adequação típica e pena (acordo penal amplo), como, por exemplo, concordar sobre o tipo penal, se simples ou qualificado, o que não é permitido na proposta de aplicação de pena mais leve.
D - O plea bargaining é aplicável a qualquer delito, ao contrário do que ocorre com a nossa transação, que tem incidência restrita.
E - No plea bargaining o acordo pode e deve ser feito fora do espaço do Poder Judiciário, devendo apenas ser homologado em sua validade após sua realização – mais uma vez, a teor do que já ocorre na colaboração premiada;
Ao ampliar o espaço de consenso dentro do processo penal, o debate sobre a importação deste novo modelo de resolução de conflitos nasce acalorado tanto por sua natureza quanto pelo momento no qual surge – posse de um novo governo Federal que, dentre outras políticas, promete "endurecer" o tratamento dado pelo Estado à delinquência em geral e, especificamente, à delinquência de colarinho branco.
Quanto à natureza do instituto, seus prós, contras, sua possibilidade de aplicação em solo brasileiro etc., vemos – por diversos e variados motivos – a negociação da culpa e do processo em esfera penal como uma excelente novidade. Se não fosse excelente, ainda assim seria inevitável.
No tocante ao momento e origem de sua apresentação ao cenário jurídico, se observa, em verdade, a supremacia do liberalismo enquanto corrente ideológica de Estado sobre todas as demais alternativas testadas no século XX e início de século XXI – notadamente sobre correntes de esquerda paternalista onde caberia ao Estado a superproteção dos hipossuficientes.
Por aqui que se inicia.
II - O liberalismo e a tecnologia – um novo e inevitável panorama de gestão social
Parafraseando Roberto Campos, o excesso de garantias fornecido pelo Estado a seus cidadãos é "compensado" pelo seu diminuto número de destinatários.
O que se percebeu desde 1988, com a promulgação da Carta Constitucional, foi a intenção do Estado brasileiro em dar uma resposta ideológica e panfletária aos anos de regime militar, criando uma superestrutura de garantias legais que, na prática, jamais se concretizariam.
A primeira crítica que se faz a tal operação é que regra alguma supre cultura e ética social; de nada adiantam garantias como "presunção de inocência" se em nosso cotidiano a "interpretação" de tal conceito permite prisões preventivas sem prazo de duração, medidas invasivas sem contraditório diferido e cumprimento de penas em condições sub-humanas.
Enfim, garantias individuais surgem da educação, e não da Constituição.
A segunda crítica, por sua vez, nasce do inevitável descompasso que um Estado paternalista enfrenta quando confrontado com uma realidade de instantaneidade que a tecnologia impõe a todos no globo, indistintamente.
O famoso "tempo do processo" - que deveria servir como espaço de reflexão para a reconstrução histórica do ocorrido - já não existe da maneira pela qual foi gerado pelos processualistas dos séculos XIX e XX, e deixará de existir por completo – gostem ou não – em realidades digitais onde a vida se resolve em cliques.
A cultura da "uberização" – que nada mais é do que o reflexo concreto de um liberalismo total de mercado que afasta intermediários e (pretensamente) devolve ao indivíduo o poder de definir o que, quando e como deseja determinado produto - transforma nosso pensar, nosso agir e, consequentemente, nossas decisões.
A junção dos itens acima – falta das garantias em concreto e velocidade/determinação individual sobre o futuro – transforma o Poder Judiciário em um paquiderme de movimentos extremamente lentos em uma sociedade que reage aos fatos em velocidade descomunal, além de extremamente injusto por trabalhar com uma seletividade de público que coloca como destinatário final das normas apenas aqueles que não conseguem bons advogados.
É o jogo do "perde-perde", pois a grande massa é injustiçada por ausência de garantias, a sociedade é injustiçada pela impunidade (pois excesso de presos nas cadeias não significa que a impunidade deixou de existir, apenas ressaltando o quão incompetentes somos em lidar com o problema carcerário penal) e todos juntos continuam abraçados acreditando na "garantia legal" como pedra fundadora da proteção individual - quando em verdade a eventual solução ou minimização do problema seria (será?) uma agilidade comunicacional e uma ampla liberdade negocial entre Instituições (MP/DP/OAB) e cidadão.
Voltemos, portanto, ao liberalismo; que se forneça ao cidadão um profissional habilitado e a liberdade de decidir seu próprio destino, pois garantias constitucionais sem resultado prático servem apenas para gerar mais páginas em lindos livros que debatem o inexistente.
III - O paradigma negocial como futuro inevitável
Uma segunda questão merecedora de destaque é a inevitabilidade da evolução. Se em todos os setores da vida social o indivíduo se empodera através de instrumentos tecnológicos, o fruto deste empoderamento é a maior consciência de si, de seus atos e, consequentemente, de sua liberdade em decidir "sozinho" aquilo que melhor lhe apetece.
Se no século XX o paternalismo estatal ainda era uma opção de resguardo das minorias, a internet e a comunicação em tempo real trouxeram aos cidadãos do globo uma nova postura sobre seus direitos, deveres e possibilidades, algo impossível de se ignorar no panorama jurídico penal.
Esse é o poder da informação permeando e transformando nossas vidas. Se nas décadas de 80 e 90 ainda se debatia a relação entre "bebida X direção", concedendo-se o "benefício" da culpa consciente àquele que atropelava alguém sob influência do álcool, nos tempos atuais uma criança em idade escolar já é "sufocada" por propagandas e vídeos de WhatsApp mostrando o risco inadmissível de se dirigir embriagado.
Esse nosso "pequeno debatedor de dez anos" já é um ser consciente de que beber e dirigir é crime, e quando adulto for saberá com maior precisão e adequação pessoal escolher suas ações em qualquer campo de sua vida – inclusive o negocial-penal.
No campo da ilicitude e de suas consequências o poder da informação traz o liberalismo como forma principal na resolução de conflitos: praticamente todo e qualquer cidadão pode acessar o que é ou não ilícito em qualquer país do globo mediante um simples acesso ao Google (fulminando o artigo 21 do CP e a excludente de culpabilidade baseada na ausência de potencial conhecimento do ilícito, diga-se de passagem), assim como acessar informações sobre decisões do Poder Judiciário em relação a delitos "a" ou "b"; com base em tais dados, legitimo será o poder de definir se prefere um acordo ou uma demanda.
O que se marca aqui, enfim, é que nada nem ninguém consegue opor obstáculos verdadeiros à evolução social, seja ela qual for. Assim como as locomotivas, carros e aviões foram primeiro refutados para, depois, se tornarem realidades, a velocidade da informação e a alteração que isso produziu em nossas vidas e cultura faz com que todos os paradigmas de resolução de conflitos pessoais se transformem; se nos acostumamos a definir nossa existência cotidiana sem intermediários e na velocidade de "um clique", lei alguma conseguirá evitar que essa mesma realidade invada o cenário penal e produza seus efeitos.
Em outras palavras, o plea bargain, enquanto retrato da vontade individual de assumir a gestão do próprio destino veio para ficar, gostemos ou não. E se vai ficar, o que nos cabe é adequá-lo aos melhores propósitos possíveis. Não é muito, mas está longe de ser pouco.
IV - Conclusão
O novo cenário negocial penal – já adotado em processos cíveis, trabalhistas e de consumidor – veio para ficar. Ainda que demore para sair do papel, sua semente está lançada e irá germinar.
Diante da inevitável realidade, caberá a todos os que influenciam o mundo jurídico estarem aptos à exerce-lo de maneira competente.
Sejam os cursos de direito ensinando um pouco mais do que leis, seja a OAB fiscalizando a competência dos negociadores e legitimidade das negociações, seja o MP avaliando com menos paixão e maior pragmatismo social os casos que lhe chegam, seja o Judiciário fiscalizando de forma efetiva os acordos, seja o que for, teremos que mudar.
Como sempre defendeu Vera Regina Pereira Andrade, o que caiu por terra nos últimos anos – e isso através do poder da informação que a tecnologia a todos disponibilizou – foi a "ilusão da segurança jurídica". Ou, como diria LaSalle, restou claro que uma Constituição que nega os vetores de poder de uma determinada sociedade em um determinado recorte temporal nada mais é que "mero pedaço de papel".
Somos – nos tornamos – uma sociedade comunicacional com "hiperconsciência" de nossos atos e suas respectivas consequências, o que nos coloca em lado oposto da hipossuficiência que marcou o século XX e a gerou um processo penal estanque, imutável e, infelizmente, jamais respeitado.
A isso nos adaptaremos, mais uma vez. Mas não custa lembrar o ditado: toda conversa é, ao fundo, uma negociação.
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