A lei falimentar e o direito do trabalho
Manoel Carlos Toledo Filho*
A realidade cotidiana que historicamente norteou o mundo empresarial já nos indica claramente qual será o fim desta estória: o negócio não irá ser realizado. A concessionária não irá vender e o cidadão não irá comprar, porque, afinal, as coisas sempre se passaram nestes limites, dentro destes parâmetros.
Até agora.
Agora, com a atual Lei de falências (Lei n.º 11.101 - clique aqui), que está em vigor desde junho de 2005, é possível sim comprar um carro usado, a preço de carro usado, mas que será tão seguro quanto um carro zero.
Isto tem ficado cada dia mais claro no rumoroso caso da recuperação judicial da Varig, que, por envolver uma empresa antiga e de reconhecido prestígio internacional, está estampando na mídia o que o legislador de 2005 intentou fazer.
Os preceitos desta Lei que a nós interessa analisar aqui são o inciso II, e o parágrafo 2º, constantes do artigo 141, que têm o seguinte conteúdo:
“Art. 141. Na alienação conjunta ou separada de ativos, inclusive da empresa ou de suas filiais, promovida sob qualquer das modalidades de que trata este artigo:
...
II – o objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor, inclusive as de natureza tributária, as derivadas da legislação do trabalho e as decorrentes de acidentes de trabalho.
...
§ 2º Empregados do devedor contratados pelo arrematante serão admitidos mediante novos contratos de trabalho e o arrematante não responde por obrigações decorrentes do contrato anterior.”
O que do primeiro dispositivo dimana é que todo o “passivo” trabalhista da empresa ficará restrito aos seus antigos proprietários. Salários atrasados, férias vencidas, fundo de garantia não depositado, horas extras não pagas, verbas rescisórias em aberto, nada disso será problema do empresário que tenha assumido o negócio. Os empregados terão de se entender com a massa falida, ou seja, com seu antigo patrão. E se este não tiver patrimônio suficiente, o que é bastante provável – aliás, quase certo – eles simplesmente ficarão sem receber. Na melhor e mais otimista das hipóteses, receberão somente uma parte de seus haveres.
Já o dispositivo seguinte assinala que, além de não responder pelo passivo trabalhista, o arrematante /adquirente não estará vinculado às condições contratuais anteriores. Poderá fixar um novo conteúdo para os contratos daqueles empregados que acaso venham a seguir trabalhando ali. Vale lembrar que o contrato de trabalho é, fundamentalmente, um contrato de adesão: o trabalhador, a rigor, não negocia nada, ele aceita o que lhe ofereçam, ou, então, fica sem o emprego. Assim, ele poderá, por exemplo, ter seu salário reduzido à metade, continuando todavia a executar as mesmas tarefas, a desenvolver a mesma jornada, a possuir o mesmo grau de responsabilidade, a trabalhar na mesma máquina, a vestir o mesmo uniforme, tudo isto dentro do mesmo estabelecimento. Aliás, como se trata de um novo contrato, de um contrato zero quilômetro, ele poderá inclusive receber menos para trabalhar mais, além de ser compelido a executar atribuições mais complexas e desgastantes do que suas atividades originais.
Os preceitos acima, em suma, têm o efeito de, a um só tempo, aniquilar o passado funcional do empregado da empresa falida e destruir o futuro do contrato até então mantido. São disposições evidentes, contundentes e específicas, o que não deixa de ser uma surpresa em um país onde o legislador não costuma primar pela clareza.
Não se há de duvidar de que a perspectiva que influenciou o legislador foi a do chamado neoliberalismo, em que o suposto bem estar da economia se situa acima de tudo. Assim, se para uma empresa ser recuperada os seus empregados têm de ter seu patrimônio massacrado e sua vida de trabalho pulverizada, paciência. Este será apenas um mero efeito colateral dentro de um objetivo maior, que é o de preservar a pujança econômica, pois dela, cedo ou tarde, todos extrairão algum benefício, inclusive, pois aqueles trabalhadores que tiveram seus contratos chacinados.
Estaria tudo muito bem, não fosse a circunstância de que, ao proceder desta maneira, o legislador coloca o trabalhador em uma condição semelhante a uma ferramenta usada, a um utensílio descartável, a um material de carga, a um objeto de consumo. O empregado é transformado em coisa: se servir fica, mas fica do jeito que eu quiser; se não servir, vai embora, e não recebe nada, pelo menos não de mim.
É claro que sempre se poderá argumentar que, para um trabalhador, continuar empregado, ainda que em condições piores, será melhor do que ser despedido e não ter emprego algum; e que receber uma parte de seus direitos será melhor do que nada receber.
O problema com esta linha de raciocínio é que, no limite, ela justifica até a escravidão. Nesta, como se sabe, o trabalhador não tinha direitos, e os únicos “encargos” patronais eram comida e moradia. A escravidão representava, pois, um sistema de “flexibilização máxima”, no qual ademais a comida era feita de restos e a moradia era a senzala. Só que, afinal, comer restos era melhor do que nada ter para comer, assim como residir em uma senzala era melhor do que ficar ao relento.
O que se pretende enfim aqui registrar, é que com princípios e valores fundamentais não se pode transigir, sob pena de retornarmos todos à barbárie. Assim, se para eliminar o desemprego, a falta de ocupação, tivermos de reviver o regime de escravidão, será bem melhor que o desemprego continue; se para salvar uma empresa tivermos de desumanizar seus empregados, será bem melhor que a empresa quebre.
E, para aqueles que acaso não concordem com este nosso ponto de vista, fica aqui um desafio: convencer o dono da concessionária que vender um carro zero a preço de carro usado para aquele consumidor sui generis, será, afinal, melhor do que não lhe vender carro nenhum...
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*Juiz do Trabalho na 15ª Região. Bacharel, Mestre e Doutor em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo. Professor nos cursos de graduação e pós-graduação da Puccamp.
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