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A letra financeira subordinada perpétua

A letra financeira perpétua subordinada, que consistiu no propósito específico deste texto, poderá preencher uma lacuna no mercado, proporcionando o atendimento de interesses que até então não encontravam um suporte econômico e jurídico. As questões de direito que possam surgir deverão ser resolvidas à luz da teoria geral do direito cambiário, para das normas específicas, estabelecidas pelo legislador.

17/1/2019

Notícias recentes da imprensa especializada dão conta do expressivo crescimento das letras financeiras subordinadas perpétuas, já contadas na casa de alguns bilhões de reais, destacando-se a informação de que este fato se deve a uma demanda provocada por gestores de fundos de investimento à procura de papéis com prazo maior de vencimento e retorno mais bem remunerado1.

 

Como pode ser inferido em vista da procura por nova opção para investimento pelos interessados, existe elevadíssimo nível de recursos que formam uma poupança em busca de aplicação dos recursos correspondente, aplicada em fundos de investimento. E estes, por seus gestores, têm entendido que uma alternativa aceitável se encontra nas letras financeiras, especialmente as subordinadas perpétuas.

 

No mercado em geral e no brasileiro em particular não existe uma aplicação perenemente classificada como a melhor entre todas as disponíveis. Tudo depende do momento econômico macro em que se encontre determinado mercado. O fato de que, em dadas circunstâncias, um determinado tipo de investimento se mostre como o queridinho do momento, isto não significa dizer que mais adiante no tempo ele não seja traído por outro namorado mais atraente. Os fatores em jogo são diversos, tais como inflação, taxa do dólar, nível econômico, taxa de desemprego, risco político, segurança, presidentes Trump e Maduro, etc. Investidores pesarão todos eles para se decidir em favor de uma operação mais segura e que pague menos, ou outra do tipo pule da ponte e veja o que acontece: lá embaixo encontrará a morte ou um baú de esmeraldas.

 

Façamos uma comparação. Quanto à caderneta de poupança, ela permite a realização de operações de longo prazo, tendo sido entre nós a fonte principal do financiamento imobiliário. Isto porque, ainda que o corpo de depositantes se altere ao longo do tempo, a massa de recursos tente a aumentar ou, no mínimo, manter certa estabilidade no seu volume, conforme se tem verificado historicamente. O exame dos saldos anuais em aplicações dessa espécie mostra que, como todos os tipos de problemas da economia brasileira, somente em dois exercícios dos governos do PT o resgate foi maior do que os depósitos.

 

No tocante às letras financeiras elas já nascem com prazo mínimo de vencimento de um ano2. Destacamos aqui as perpétuas, isto é, sem vencimento designado, vindo a extinguir-se por exemplo, como veremos, pela própria extinção do emissor. E quanto a este, sendo um banco, a questão que se coloca está na dúvida sobre sua existência ao longo das eventuais décadas de maturação das letras financeiras por eles emitidas, atuantes em um mercado dotado de elevada instabilidade. Por melhores que sejam as análises sobre as perspectivas da economia, o futuro a Deus pertence, como costumava dizer alguém. Lembre-se de que há pouco mais de dez anos ninguém imaginava que podia surgir uma crise financeira global capaz de quebrar bancos grandes demais para quebrar.

 

Em todo o caso, tem-se como estabelecido que o mercado financeiro brasileiro se encontra em estado de grande estabilidade e que os bancos de maior parte que desapareceram na década de oitenta tiveram como causa desmandos praticados pelos controladores, o que certamente não acontecerá com as instituições de grande porte em funcionamento no Brasil na atualidade.

 

Abrindo parênteses, sabe-se que na velha city londrina foram realizados investimentos de até cem anos de prazo. Afinal de contas, de acordo com os enciclopedistas, o conhecimento humano havia chegado ao seu auge e a estabilidade britânica do Império sobre o Qual o Sol Jamais se punha permitia esperar que as circunstâncias econômicas permanecessem quase eternas, permitindo operações que poderiam ser hoje consideradas como matusalenianas.

Voltando ao nosso tema, é notório que sempre haverá ao mesmo tempo todo o tipo de investidores, afirmando-se desde logo que, pelas características da letra financeira, que ela não se prestará ao dinheirinho da vovozinha que vive da pensão do falecido. Neste caso nada melhor do que a velha e conhecida caderneta de poupança.

 

Vejamos como foi estabelecida a regulamentação da letra financeira e qual é a sua natureza jurídica, para o fim de tirarmos algumas conclusões sobre as obrigações e direitos dos participantes da cadeia de sua criação, emissão e aquisição.

 

Tais títulos foram criados inicialmente pela medida provisória 472, de 15/12/09 convertida na lei 12.249, de 11/6/10. Posteriormente sobreveio a MP 608, convertida na 12.838, de 9/7/13. O art. 10 desta, por sua vez, deu nova redação à lei 12.249, de 11/6/10, na qual se estipulou o tratamento da letra financeira (esta última lei foi o resultado da conversão da MP 472/09.

 

Os elementos essenciais da LF são (arts. 38 a 43 da lei 12.249):

 

(i) Título de crédito nominativo, transferível e de livre negociação;

 

(ii) Emissão exclusivamente sob a forma escritural, mediante registro em sistema de registro e de liquidação financeira de ativos autorizado pelo BCB, com as seguintes características:

 

(a) denominação letra financeira;

 

(b) o nome da instituição financeira emitente;

 

(c) o número de ordem, o local e a data de emissão;

 

(d) o valor nominal;

 

(e) a taxa de juros, fixa ou flutuante, admitida a capitalização;

 

(f) a cláusula de correção pela variação cambial, quando houver;

 

(g) outras formas de remuneração, inclusive baseadas em índices ou taxas de conhecimento público, quando houver;

 

(h) a cláusula de subordinação, quando houver;

 

(i) a data ou as condições de vencimento;

 

(j) o local de pagamento;

 

(k) o nome da pessoa a quem se deve pagar;

 

(l) a descrição da garantia real ou fidejussória, quando houver;

 

(m) a cláusula de pagamento periódico, quando houver;

 

(n) a cláusula de suspensão de pagamento da remuneração estipulada, quando houver;

 

(o) a cláusula de extinção do direito de crédito representado pela letra;

 

(p) Financeira em ações da instituição emitente, quando houver.

 

 

(iii) Natureza de título executivo extrajudicial, que pode ser executado independentemente de protesto, com base em certidão de inteiro teor dos dados informados no registro, emitida pela entidade administrativa do sistema correspondente.

 

Na dependência dos critérios de remuneração, pode gerar valor de resgate inferior ao valor de sua emissão.

 

A transferência de titularidade da letra financeira efetiva-se por meio do sistema autorizado pelo BCB, que manterá registro da sequência histórica das negociações. Esse registro deverá conter todas as características mencionadas acima e as condições negociais que disciplinarão sua conversão, caso emitida com a cláusula relativa à extinção do crédito a ela referente.

 

Uma questão se apresenta em relação à qual as normas aplicáveis à letra financeira são silentes. É o caso de que, como título de crédito nominal a sua transferência somente se operaria mediante endosso feito pelo titular, como ocorre com qualquer título de crédito, da mesma forma como o endosso próprio para o fim de utilizar-se a letra financeira como garantia. Neste sentido, o registro de que fala a lei teria tão somente o efeito do estabelecimento de um contrato quanto ao histórico das negociações para efeito de segurança quanto à sua circulação do mercado.

 

Poderá ser estabelecido como condições de vencimento da letra financeira, o inadimplemento da obrigação de pagar a remuneração ou a dissolução da instituição emitente, caso em que ambas as condições deverão constar no título.

 

Será considerada extinta a remuneração referente ao período da suspensão do pagamento levada a efeito pela cláusula de suspensão do pagamento.

 

A conversão em ações não poderá decorrer de iniciativa do titular ou da instituição emitente da letra financeira. Essa conversão torna-se uma opção interessante para o investidor que, ao lado de eventuais vantagens econômicas proporcionadas por uma empresa sólida que distribui bons dividendos, ele adquire direitos políticos que antes não tinha.

 

A distribuição pública de letra financeira observará o disposto pela Comissão de Valores Mobiliários.

 

A letra financeira pode ser emitida com cláusula de subordinação aos credores quirografários, preferindo apenas aos acionistas no ativo remanescente, se houver, na hipótese de liquidação ou falência da instituição emissora. Os efeitos econômicos e jurídicos neste caso são extremamente importantes. Isto porque em caso de liquidação do emissor antes do pagamento dos titulares da letra financeira serão pagos todos os credores acima de sua categoria, incluindo os quirografários (ou seja, o povão dos credores da instituição financeira emitente). Assim, a letra financeira somente se coloca acima dos acionistas, que receberão se e quando sobrar alguma coisa do patrimônio do emitente.

 

O fator acima é um dos componentes do risco da letra financeira, o que justifica o pagamento de uma remuneração maior do que a de outros investidores dotados de maior segurança, razão da sua escolha pelos aplicadores em tal título. Comparando-se com a emissão de ações pelo emitente, neste caso o dispêndio de recursos somente se dará se o balanço apresentar lucros. Se isto não acontecer em determinados exercícios, o investimento terá se revelado estéril em tais circunstâncias. Neste caso, se o acionista resolver vender as suas ações ele diminuir as suas perdas segundo a diferença entre o preço de emissão que ele pagou ao ingressar no corpo societário e o do valor obtido na sua saída.

 

Comparando-se, agora, a ação com a letra financeira subordinada perpétua, nesta os juros devem ser pagos por todo o tempo de sua vida e o risco está no inadimplemento do emitente, vindo o investidor a perder o valor pago na sua aquisição, diminuído do que já recebeu ao longo do tempo o que, algumas vezes, poderá ter correspondido à recuperação do investimento efetuado a par de algum lucro.

 

Do lado do emitente, trata-se de uma opção de capitalização pelo prazo de duração da letra financeira e, quando se cuida da subordinada perpétua isto representa um custo de carregação permanente da remuneração estabelecida, fator a ser pesado na sua escolha. Em acréscimo, a letra financeira subordinada pode ser utilizada pelo emitente para fins de composição do patrimônio de referência da instituição emitente, nas condições especificadas pelo CMN. A esse respeito a resolução CMN 4.192/13 determinou que esse patrimônio é o resultado do somatório dos níveis I e II nela estabelecidos. Essa exigência eleva o nível de segurança das instituições financeiras. Isto porque, como se sabe, se os bancos em tese apresentam menos risco de quebra do que as empresas comuns, dado que estão subordinados a fiscalização permanente pelo BCB, de outro a sua inadimplência pode acarretar risco sistêmico, a afetar toda a economia nacional e/ou internacional.

 

Conforme se verifica, esse título economicamente faz as vezes da debênture, que não pode ser emitida por instituições financeiras.

 

De outra forma, as normas editadas pelo CMN poderão estabelecer ordem de preferência no pagamento dos titulares da letra financeira, de acordo com as características do título, o que corresponde ao estabelecimento de categorias internas para tal finalidade.

 

Por outro lado, incumbe ao CMN a disciplina das condições de emissão da letra financeira, em especial os seguintes aspectos:

 

I - o tipo de instituição autorizada à sua emissão;

 

II - a utilização de índices, taxas ou metodologias de remuneração;

 

III - o prazo de vencimento, não inferior a 1 (um) ano;

 

IV - as condições de resgate antecipado do título, que somente poderá ocorrer em ambiente de negociação competitivo, observado o prazo mínimo de vencimento; e

 

V - os limites de emissão, considerados em função do tipo de instituição

 

VI - as condições de vencimento;

 

VII - as situações durante as quais ocorrerá a suspensão do pagamento da remuneração estipulada; e

 

VIII - as situações em que ocorrerá a extinção do direito de crédito ou a conversão do título em ações da instituição emitente.

 

Aplica-se à letra financeira, no que não contrariar o disposto na lei 12.249/10, a legislação cambial. Isto significa dizer que ela tem a natureza jurídica de ordem de pagamento, na forma estabelecido pelos demais elementos de sua literalidade.

 

O Banco Central do Brasil produzirá e divulgará, para acesso público por meio da internet, relatório anual sobre a negociação de letras financeiras, com informações sobre os mercados primário e secundário do título, condições financeiras de negociação, prazos, perfil dos investidores e indicadores de risco, quando houver.

 

As instituições financeiras podem emitir Certificado de Operações Estruturadas, representativo de operações realizadas com base em instrumentos financeiros derivativos, nas condições especificadas em regulamento do CMN.

Comentando as características desse título segundo o enfoque dado a este texto, verificamos que a opção de remuneração segundo taxas de conhecimento público se dará, por exemplo, a SELIC, o CDI, IOC, etc, expressamente incluídos em sua literalidade.

 

Enfim, a letra financeira perpétua subordinada, que consistiu no propósito específico deste texto, poderá preencher uma lacuna no mercado, proporcionando o atendimento de interesses que até então não encontravam um suporte econômico e jurídico. As questões de direito que possam surgir deverão ser resolvidas à luz da teoria geral do direito cambiário, para das normas específicas, estabelecidas pelo legislador.

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1 Cf. Valor Econômico de 9/1/19, in “Bancos Emitem Papel perpétuo no Mercado Local”.

2 Evidentemente não será dentro desse período de um ano que os bancos financiarão operações longo prazo. Aliás, devido às condições históricas de nossa economia, o prazo de um ano é aqui considerado longo, uma verdadeira deturpação do conceito.

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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio de Duclerc Verçosa Advogados Associados.

*Rachel Sztajn é professora sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Advogada em São Paulo.

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