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Primeiras linhas sobre a restituição ao consumidor das quantias pagas ao incorporador em caso de desfazimento do vínculo contratual na lei 13.786/18

Talvez o tempo demonstre que a nova lei é uma norma afugentadora desses contratos de aquisição de imóveis, havendo a necessidade de sua correta interpretação, de acordo com a nossa realidade jurídica, para que a lei tenha a esperada efetividade social.

7/1/2019

A lei 13.786, de 27 de dezembro de 2018, incluiu o artigo 67-A na lei 4.591/64, que disciplina o regramento das incorporações imobiliárias, com o objetivo de supostamente estabelecer um maior nível de segurança jurídica na apuração das perdas e danos do consumidor, promitente comprador de imóvel junto às incorporadoras.

Nessa linha, o adquirente que der causa ao desfazimento do vínculo negocial fará jus à restituição do que houver pago diretamente ao incorporador, com atualização monetária, deduzindo-se o valor que fora pago a título de comissão de corretagem e à pena convencional, que não poderá exceder 25% da quantia desembolsada. Como se pode perceber, a nova lei, nesse ponto, não inovou em relação ao que vinha sendo praticado pela jurisprudência nacional, que continuará oscilando entre 10, 15, 20 e 25% da possibilidade de perda, analisando-se o caso concreto e reduzindo-se a penalidade, conforme critérios como a valorização superveniente do imóvel, o atraso na entrega e as causas justificadas para o inadimplemento, como doença, desemprego, entre outros fatores.

Nessa linha, a propósito, a afirmação 6 constante da edição 110 da ferramenta Jurisprudência em Teses, do STJ, a saber: “no caso de rescisão de contratos envolvendo compra e venda de imóveis por culpa do comprador, é razoável ao vendedor que a retenção seja arbitrada entre 10% e 25% dos valores pagos, conforme as circunstâncias de cada caso, avaliando-se os prejuízos suportados”. A edição é dedicada ao compromisso de compra e venda de imóveis, tendo sido publicada pelo Tribunal em outubro de 2018, com a citação dos seguintes precedentes: ag. int. no AREsp. 1.200.273/DF, rel. ministro Marco Buzzi, quarta turma, julgado em 19/6/18, DJE 26/6/18; ag. int. no REsp. 1.395.252/SP, rel. ministro Moura Ribeiro, terceira turma, julgado em 5/6/18, DJE 15/6/18; ag. int. no REsp. 1.692.346/DF, rel. ministro Antonio Carlos Ferreira, quarta turma, julgado em 19/4/18, DJE 26/4/18; ag. int. no AREsp. 1.121.909/SP, rel. ministro Lázaro Guimarães (desembargador convocado do TRF 5ª Região), quarta turma, julgado em 20/2/18, DJE 28/2/18; ag. int. no AREsp. 1.140.299/SP, rel. ministro Marco Aurélio Bellizze, terceira turma, julgado em 5/12/17, DJE 19/12/17 e ag. int. no AREsp. 1.062.082/AM, rel. ministro Luis Felipe Salomão, quarta turma, julgado em 18/5/17, DJE 23/5/17.

Também fica mantida a possibilidade de perda de um valor à semelhança de um aluguel se a unidade autônoma for disponibilizada regularmente para o adquirente, além das despesas de natureza propter rem que incidirem sobre o imóvel. Na forma da nova lei, deverão ser assumidos pelo promitente comprador, à luz do § 2º do artigo 67-A da lei 4.591/64, os valores referentes a “I – quantias correspondentes aos impostos reais incidentes sobre o imóvel; II – cotas de condomínio e contribuições devidas a associações de moradores; III – valor correspondente à fruição do imóvel, equivalente a 0,5% (cinco décimos por cento) sobre o valor atualizado do contrato, pro rata die; IV – demais encargos incidentes sobre o imóvel e despesas previstas no contrato”. Essa previsão também se encontra em consonância com o pensamento majoritário da doutrina e jurisprudência até a edição da norma emergente.

Porém, causa-nos enorme estranheza, senão perplexidade, a penalidade prevista para os casos de incorporação imobiliária submetida a patrimônio de afetação, que o § 5º do artigo 67-A da lei 4.591/64 passa a estabelecer no patamar máximo de até 50%. A ideia parece ter sido a de fomentar a utilização dessa importante garantia para o complexo negócio de incorporação imobiliária. Entretanto, esse fundamento não pode servir para transformar a extinção do contrato em uma fonte de enriquecimento sem causa. Uma pena de perda da metade do que se gastou, acrescida de outros valores, como a própria indenização pela utilização do imóvel, não se sustenta juridicamente, em nossa opinião doutrinária.

No mundo dos fatos, por essa previsão legal, o promitente comprador poderá perder até mais de cinquenta por cento do que foi pago, pois, não raro, autorizado pela tese fixada em recurso repetitivo no STJ, é transmitido a ele o pagamento da comissão de corretagem, desde que previamente informado o preço total da aquisição da unidade autônoma e com o destaque quanto a esse montante pago ao corretor (STJ, REsp. 1.599.511/SP, rel. ministro Paulo de Tarso Sanseverino, segunda seção, julgado em 24/8/16, DJe 6/9/16).

Cremos que as decisões judiciais, com a prudência necessária exigida na arte de julgar, hão de manter o patamar médio de dez por cento de perda, podendo, excepcionalmente, chegar a 25%, aplicando-se o verbete sumular 543 do próprio STJ, aprovado na segunda seção do colendo Tribunal em 31 de agosto de 2015, in verbis: “Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador – integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento”. No nosso entender, essa súmula jurisprudencial não se encontra superada pela nova lei, o que será objeto de aprofundamentos em outros escritos.

Note-se que a lei fala em até cinquenta por cento, cabendo aos atores jurídicos não permitir essa disparatada perda aos consumidores, bastando, para tanto, reduzir o montante da penalidade, corrigindo o abuso e a desproporção que a aplicação desse patamar traduziria. Releve-se que, mesmo o artigo 413 do Código Civil, que, por sua natureza, rege relações paritárias como regra geral, contém dispositivo que determina ao julgador reduzir a cláusula penal quando “o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio”. A nossa opinião é que esse dispositivo aplica-se à nova lei e às relações de consumo, sem qualquer limitação, até porque não há qualquer previsão nela que o exclui.

E, mesmo se houvesse, vale lembrar que há tempos tem-se entendido que se trata de uma norma cogente ou de ordem pública, que não pode ser afastada, por exemplo, diante do acordo entre as partes ou previsão contratual. Nesse sentido, da recente jurisprudência superior: “a despeito de a cláusula penal ser pacto acessório oriundo de convenção entre os contratantes, a sua fixação não fica circunscrita ao poder da vontade das partes contratantes, pois o ordenamento jurídico estatui normas cogentes para o seu controle” (STJ, ag. int. nos EDcl. no REsp. 1.517.702/SP, rel. ministro Paulo de Tarso Sanseverino, terceira turma, julgado em 28/8/18, DJe 5/9/18). Ou, ainda, explicando os fundamentos do art. 413 do CC, que conta com o nosso total apoio: “o controle judicial da cláusula penal abusiva exsurgiu, portanto, como norma de ordem pública, objetivando a concretização do princípio da equidade – mediante a preservação da equivalência material do pacto – e a imposição do paradigma da eticidade aos negócios jurídicos. Nessa perspectiva, uma vez constatado o caráter manifestamente excessivo da pena contratada, deverá o magistrado, independentemente de requerimento do devedor, proceder à sua redução, a fim de fazer o ajuste necessário para que se alcance um montante razoável, o qual, malgrado seu conteúdo sancionatório, não poderá resultar em vedado enriquecimento sem causa. (...). Assim, figurando a redução da cláusula penal como norma de ordem pública, cognoscível de ofício pelo magistrado, ante sua relevância social decorrente dos escopos de preservação do equilíbrio material dos contratos e de repressão ao enriquecimento sem causa, não há falar em inobservância ao princípio da adstrição (o chamado vício de julgamento extra petita), em preclusão consumativa ou em desrespeito aos limites devolutivos da apelação” (STJ, REsp. 1.447.247/SP, rel. ministro Luis Felipe Salomão, quarta turma, julgado em 19/4/18, DJe 4/6/18).

Sem embargo dessa argumentação, em se tratando de relações de consumo, que, em regra, estão presentes nas aquisições imobiliárias, com muito maior razão a convicção pela redução equitativa da cláusula penal está presente, pois o artigo 53 da lei 8.078/90 enuncia como sendo nula de pleno direito a cláusula de perdimento das prestações pagas em razão daquelas que deixou de pagar. É verdade que a perda não é total, mas devolver o imóvel e perder cinquenta por cento ou até mais sobre o que se pagou é algo que extrapola os limites do razoável e do desejado equilíbrio contratual.

Imagine-se, a título de exemplo, um consumidor que investe todas as suas economias para a compra de um imóvel, visando a sua moradia e de sua família, com o desembolso de uma entrada de valor considerável, correspondente a cerca de metade do valor do bem. Logo em seguida, fica ele desempregado, não podendo mais arcar com o pagamento das parcelas que assumiu. Haverá a perda de metade do que pagou? Entendemos que não, sendo necessário aplicar, nessa hipótese fática, a redução equitativa da cláusula penal que consta do art. 413 do Código Civil, podendo a penalidade ser reduzida ao patamar de 10% do montante pago, na linha do entendimento jurisprudencial anterior, aqui citado.

Necessário lembrar que não se encontra revogado – e nem poderia, por se tratar de cláusula pétrea – o princípio maior que norteia as relações de consumo, de reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor (art. 4º, inc. I, do CDC), sem embargo da afirmação de ser o Código de Defesa do Consumidor uma norma principiológica, com fundamento constitucional (arts. 5º, inc. XXXII, e 170, inc. V, da CF/98). Além disso, nas relações de consumo, o risco do empreendimento é do fornecedor, e qualquer tentativa legal de transferi-lo ao consumidor pode ser atacada com o argumento de inconstitucionalidade.

Como palavras finais, indaga-se: será que as publicidades nas vendas de imóveis em incorporação imobiliária vão advertir com transparência as consequências de eventual inadimplemento no pagamento das prestações? Será que teremos, nos mais diversos canais de comunicação relativos à venda de imóveis na planta, um aviso com a seguinte dicção: “Atenção: a falta de pagamento das parcelas do contrato gera a perda da metade do que você pagar”? Por óbvio que, se essa advertência constar – e deveria constar, pela lógica informativa adotada pelo CDC –, a maioria das pessoas não celebrará esses negócios. Talvez o tempo demonstre que a nova lei é uma norma afugentadora desses contratos de aquisição de imóveis, havendo a necessidade de sua correta interpretação, de acordo com a nossa realidade jurídica, para que a lei tenha a esperada efetividade social.

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*Marco Aurélio Bezerra de Melo é doutor em Direito pela UNESA. Professor da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro e do IBMEC/RJ. Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

*Flávio Tartuce é doutor em Direito Civil pela USP. Professor da FADISP e da Escola Paulista de Direito. Advogado e consultor jurídico.

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