Migalhas de Peso

(In)comunicabilidade de haveres societários

Caso essas cotas societárias se valorizem no curso do tempo, de forma contemporânea com a união estável, tais acréscimos alcançariam ou não o patrimônio do companheiro? Em outras palavras, são passíveis de comunicabilidade?

4/1/2019

O presente artigo trata da possibilidade de comunicar haveres de participações societárias entre os companheiros e cônjuges. Esta análise será subdividida em duas etapas: a) a primeira, vinculada à participação societária que “sofre” valorização pelo decurso do tempo, ou seja, por fatores alheios à vontade ou esforço dos sócios; e, logo em seguida, b) uma segunda, afeta à hipótese em que há um reinvestimento de lucros na sociedade. Em outras palavras, os sócios capitalizam sua participação, promovendo uma injeção de recursos financeiros com o próprio resultado auferido de suas quotas ou ações, deixando de usufruir de tais recursos.

Via de regra, sabe-se que os bens tidos como “particulares” não se comunicam entre os companheiros e cônjuges. Assim, uma participação societária adquirida anteriormente à constância da relação ou de forma gratuita (por herança ou doação), não se comunicam, ressalvada a hipótese de os companheiros elegerem o regime da comunhão universal de bens, naturalmente. Logo, a dúvida acerca da comunicabilidade desses haveres se restringe ao regime da comunhão parcial de bens.

Em princípio, essa constatação não gera dúvidas. Há, entretanto, uma questão que tem trazido debates. Caso essas cotas societárias se valorizem no curso do tempo, de forma contemporânea com a união estável, tais acréscimos alcançariam ou não o patrimônio do companheiro? Em outras palavras, são passíveis de comunicabilidade?

Para Dimas Messias de Carvalho (apud CARVALHO, 2014, p. 55), essas participações são “[...] incomunicáveis, privativas, entretanto, pela regra da acessão empresarial, os acréscimos ingressam no patrimônio comum”. E o autor explica o porquê do seu raciocínio, aderido por Newton Teixeira Carvalho:

Todo o crescimento da empresa ou alterações que agregam valor, incluindo aumento do capital, de cotas, mudança de endereço ou de ramo, abertura de filiais, comunica-se. Os ganhos obtidos na atividade comercial de um dos cônjuges integram o patrimônio comum. (CARVALHO, 2014, p. 8).

Ou seja, a cota, ainda que devidamente atualizada, em si, é incomunicável, mas os frutos, por essa linha, seriam comunicáveis. Esse é o posicionamento do TJRS citado pelo autor:

AÇÃO DECLARATÓRIA DE EXISTÊNCIA E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL. PARTILHA DE BENS. FILIAL DE EMPRESA CONSTITUÍDA DURANTE A UNIÃO ESTÁVEL. DIVISÃO DAS QUOTAS SOCIAIS OU DO CRESCIMENTO PATRIMONIAL. Mesmo que as quotas sociais da empresa constituída, antes da união estável, sob o regime patrimonial da comunhão parcial de bens, não se submetam à partilha, o mesmo inocorre com a filial criada durante a relação, devendo ser dividido o valor equivalente às quotas sociais e o respectivo crescimento patrimonial. Recurso da autora provido. Apelação do requerido improvida. (RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. AC n. 70.021.219.589 Relator: Desembargador Claudir Fidelis Faccenda – 8ª Câmara Civel).

Também por analogia, pode-se chegar a tal dedução. Nos termos do art. 39 da lei 9.610/98, “Os direitos patrimoniais do autor, excetuados os rendimentos resultantes de sua exploração, não se comunicam, salvo pacto antenupcial em contrário”. (BRASIL. 1998). Logo, em vista dessa regra, percebe-se uma confirmação dessa proposição de dar tratamento distinto entre o bem particular e os frutos dele advindos.

Essa, contudo, não foi a compreensão do STJ ao examinar o mesmo assunto. No julgamento do agravo interno em agravo em REsp 236.955/RS, sob o fundamento de que tal valorização das cotas se deve a um “fenômeno econômico”, não se podendo atribuir a um esforço comum dos companheiros. Assim, foi afastada a comunicabilidade do fruto da valorização das cotas:

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL. VALORIZAÇÃO DE COTAS SOCIAIS ADQUIRIDAS PELO CONVIVENTE VARÃO ANTES DA UNIÃO ESTÁVEL. EXCLUSÃO DA PARTILHA. DECISÃO MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. 1. Segundo o entendimento do STJ, a valorização patrimonial das cotas sociais adquiridas antes do casamento ou da união estável não deve integrar o patrimônio comum a ser partilhado, por ser decorrência de um fenômeno econômico que dispensa a comunhão de esforços do casal. 2. Agravo interno não provido. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AREsp 236.955/RS. Relator: Ministro Lázaro Guimarães [Desembargador Convocado do TRF 5ª Região] – Quarta Turma).

Antes mesmo dessa referida decisão, há um outro precedente (REsp 1.173.931/RS), de relatoria da lavra do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, em que foi salientada a ausência do esforço comum (laboral), porque houve também a atribuição da valorização das cotas a um fenômeno econômico:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. UNIÃO ESTÁVEL. REGIME DE BENS. COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. VALORIZAÇÃO DE COTAS SOCIAIS. 1. O regime de bens aplicável às uniões estáveis é o da comunhão parcial, comunicando-se, mesmo por presunção, os bens adquiridos pelo esforço comum dos companheiros. 2. A valorização patrimonial das cotas sociais de sociedade limitada, adquiridas antes do início do período de convivência, decorrente de mero fenômeno econômico, e não do esforço comum dos companheiros, não se comunica. 3. Recurso especial provido. (BRASIL. STJ. REsp 1173931/RS. Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino – Terceira Turma).

Neste julgamento, o voto do Relator destacou que inexistiu qualquer acréscimo ou injeção no patrimônio capaz de provocar a valorização das cotas, mas simplesmente houve uma “evolução normal”, que acarretou aumento de valor daquele bem. Por esta razão, não haveria motivação para se impor a comunicabilidade desse fruto da participação.

Maria Berenice Dias adere a esse posicionamento, afirmando que se “[...] a valorização das cotas for decorrência de mero fenômeno econômico e não do esforço comum dos companheiros, esta não se comunica” (DIAS, 2016, p. 345).

Some-se a esse argumento a fala do Desembargador Francisco Loureiro, ao julgar Recurso de Apelação 0628423-40.2008.8.26.0001 do TJ/SP, em 25/07/13, em causa em que se discutiu exatamente a pretensão de uma companheira para que houvesse a partilha dos haveres societários de participações particulares do outro companheiro, valorizados ao longo da relação: “A valorização real de bens próprios não altera a sua natureza, para convertê-los em bens comuns”. (SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Recurso de Apelação 0628423-40.2008.8.26.0001. Relator: Desembargador Francisco Loureiro).

Não se pode esquecer que, se houvesse prejuízo, decerto que a meação seria preservada, na forma do art. 674, §2º, I do CPC/2015, mediante o oferecimento de Embargos de Terceiro. Logo, por corolário lógico, deve ser deduzida a incomunicabilidade da valorização das cotas. E ainda que tivesse havido um sobrepreço, essa valorização não transcende o mesmo bem, além de independer de qualquer contribuição do companheiro ou cônjuge para que a tanto chegasse.

A par da dialética exposta, a prova desse esforço incumbirá a quem alegá-lo, consoante art. 373 do CPC/15, não cabendo a aplicação de presunção. Analogamente, esse foi o entendimento do TJ/MG ao examinar pleito equivalente:

UNIÃO ESTÁVEL. RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO. PARTILHA. VALORIZAÇÃO DE BEM IMÓVEL. INDEFERIMENTO. PROVA.A partilha, em razão da dissolução da união estável, pressupõe a prova da existência de bens comuns e da aquisição deles ao tempo da convivência do casal. É improcedente o pedido de partilha, como formulado pelo autor, quando não se prova, efetivamente, sua contribuição para a valorização do imóvel de propriedade exclusiva da ré. Nega-se provimento à apelação. (MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Apelação Cível 1.0232.06.011586-1/001. Relator: Desembargador Almeida Melo – 4ª Câmara Cível).

Enquanto uma primeira corrente caminhou num sentido protetivo do Direito de Família, a favor da comunicabilidade dos haveres, a segunda corrente, baseada no posicionamento do STJ, seguiu sentido oposto, pela incomunicabilidade, à luz do Direito Empresarial, estabelecendo-se a controvérsia, dividindo o entendimento dos Tribunais pátrios.

Dentre os Tribunais que enfrentaram a questão, salta aos olhos a divergência do Gaúcho, que se mostra dividido. Na verdade, ao analisar os seus julgados, verifica-se que após o julgamento do REsp 1173931/RS pelo STJ, houve um “divisor de águas” naquele Tribunal Estadual, que passou a adotar, de 2013 em diante, o entendimento do Tribunal Superior, no sentido de afastar a comunicabilidade dos haveres societários entre os companheiros.

Em vista dessa divergência e das razões apresentadas por ambas as correntes, parecenos mais adequada a tese de incomunicabilidade dos haveres (frutos) societários, seja porque derivados de um bem particular, seja porque a valorização, como justificado nos fundamentos dos acórdãos citados, não se deve a um esforço ou uma dedicação dos companheiros sócios, mas a um evento independente, um “fenômeno econômico”, que, por sua vez, poderia ter sido negativo e gerado prejuízos – o que não implicaria, por si só, responsabilização patrimonial do outro companheiro, mesmo na hipótese de reduzir a valorização dessas cotas.

Se a hipótese anterior leva em consideração apenas o fenômeno econômico, ou seja, a valorização “involuntária” das cotas societárias, merece ser examinada se o mesmo resultado e discussão há para a possibilidade de o companheiro, enquanto sócio, reinvestir o lucro que lhe couber na vigência da união estável.

Em outras palavras, estrategicamente, ao invés de promover retiradas, o sócio companheiro, com o propósito de alavancar projetos, melhorar a performance da empresa ou capitalizar a sociedade empresária, deixa de fazer as retiradas periódicas dos lucros proporcionais às participações que detém.

No curso do tempo, o efeito dessa iniciativa pode acabar sendo também de valorização das cotas e, inequivocamente, essa hipótese é distinta da tratada anteriormente. Resta, então, saber, se o tratamento legal desta, no que concerne à comunicabilidade entre os companheiros sofre alguma modificação ou é abordada sob a mesma perspectiva.

Antes de se adentrar ao punctum saliens, importa trazer o conceito de lucro, enquadrando-se a discussão. Para Sacha Calmon Navarro Coêlho (2005, p. 528), mais especificamente, “O lucro nas operações sociais normais é denominado lucro operacional, formado pela diferença entre a receita bruta operacional e os valores dela dedutíveis, a saber: custos, despesas operacionais, encargos, provisões e perdas”.

Ao enfrentar a matéria, em sede de REsp (1.595.775/AP), o STJ firmou seu posicionamento. A 3ª turma, em unanimidade de votos, acompanhou o relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, que entendeu não configurar como fruto esse efeito do reinvestimento do lucro, no critério do art. 1.660, inciso V do CC/02:

As quotas ou ações recebidas em decorrência da capitalização de reservas e lucros constituem produto da sociedade empresarial e aumentam o seu capital social com o remanejamento dos valores contábeis da própria empresa, consequência da própria atividade empresarial. Assim, tal reserva não se caracteriza como fruto, à luz do art. 1660, V, do Código Civil, apto a integrar o rol de bens comunicáveis ante a dissolução da sociedade familiar. Assim, não havendo redistribuição dos lucros da sociedade empresária aos sócios, porquanto retidos na empresa para reinvestimento, não há como reconhecer o alegado acréscimo do patrimônio do casal, motivo pelo qual não há falar em incidência do art. 1.660, V, do CC/02. (BRASIL. STJ. REsp 1.595.775/AP. Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva – 3ª turma).

Nesse representativo voto, o Relator ainda destacou que, mesmo que tenha havido recebimento de novas cotas, decorrentes dessa redistribuição de lucros – o que poderia ser interpretado como um fato novo –, não se comunicaria a participação societária entre os companheiros, porquanto são reservas, reforços da sociedade empresarial e a estas pertencem (e não aos sócios):

As quotas ou ações recebidas em decorrência da capitalização de reservas e lucros constituem produto da sociedade empresarial, pois incrementam o capital social com o remanejamento dos valores contábeis da empresa, em consequência da própria atividade empresarial. Portanto, não constituem frutos do bem particular do consorte, motivo pela qual, não integram o rol de bens comunicáveis quando da dissolução da sociedade familiar. Assim, esse aumento do capital social não constitui fruto do sócio, mas, sim, produto da sociedade empresarial, que com o sócio não se confunde, como dito alhures, e, por isso, não se comunica (Sérgio Gischkow Pereira, Direito de família: aspectos do casamento, sua eficácia, separação, divórcio, parentesco, filiação, regime de bens, alimentos, bem de família, união estável, tutela e curatela, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2007. pág. 231). (BRASIL. STJ. Recurso Especial 1.595.775/AP. Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva – 3ª turma).

Partindo-se desse ponto, traçado no julgamento acima, há uma questão, por sua vez, estanque: os lucros efetivamente distribuídos durante a vigência da união estável inequivocamente são comunicáveis.

A propósito, vale lembrar que, à luz do art. 197, I do CC, “não corre prescrição entre cônjuges, na constância da sociedade conjugal”. Logo, subentende-se que, numa interpretação constitucionalmente extensiva, reconhecida pela jurisprudência, pela garantia da isonomia, o mesmo se aplicaria aos companheiros, razão pela qual tais verbas seriam, durante a relação, se comunicáveis, imprescritíveis.

Maria Berenice Dias apenas pondera a aplicabilidade do disposto no art. 1.027 do CC, no sentido de que não há direito de exigir o recebimento em caráter imediato dessa participação sobre os dividendos devidos ao companheiro, “[...] concorrendo somente com a divisão periódica dos lucros até a dissolução da sociedade”. (DIAS, 2016, p. 345).

A fim de dar vazão a tal iniciativa, o companheiro está resguardado, nos termos do parágrafo único do art. 600 do CPC/15, segundo o qual “O cônjuge ou companheiro do sócio cujo casamento, união estável ou convivência terminou poderá requerer a apuração de seus haveres na sociedade, que serão pagos à conta da quota social titulada por este sócio”, seguindo-se o rito disposto no art. 604. (BRASIL, 2015).

Uma vez admitida a comunicabilidade dos frutos da participação societária, tem-se que não cabe ao ex-companheiro pleitear o ingresso na sociedade, mas, como destaca Alfredo de Assis Gonçalves Neto, ao tratar do ex-cônjuge, quanto à cota social, mutatis mutandis, este detém tão-somente “[...] os direitos patrimoniais contidos nessa parte”, em outas palavras, “[...] não tem direito de se tornar sócio [...], a não ser que o consintam os demais sócios, tendo direito à liquidação da quota ou das quotas sociais havidas na partilha dos bens do casal”. (GONÇALVES NETO, 2016, p. 466).

Outro ponto que merece atenção nessa questão societária em órbita à esfera familiar, trazida por Paulo Nader (2016, p. 416), é disregard doctrine às avessas. O autor explica a hipótese de ação fraudulenta do cônjuge ou companheiro que utiliza a pessoa jurídica da qual é sócio para desviar recursos do patrimônio familiar. Nesse caso, a orientação apresentada é de “[...] quebra do princípio da incomunicabilidade dos bens sociais e particulares”, o que deverá ser processado através de um incidente, nos moldes do art. 133 e seguintes do CPC/2015, que se enquadrou num paradigma constitucional do Estado Democrático de Direito, evitando-se decisões surpresas, nos moldes dos artigos 9º e 10 do mesmo diploma processual, que privilegiam o princípio do contraditório, sob pena de nulidade, ressalvadas as raras exceções. Essa medida, explica Paulo Nader, útil em divórcios, ações de alimentos, por exemplo, visa “[...] recambiar para o acervo familiar os bens dele subtraídos ou não incorporados”. (NADER, 2016, p. 416)

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*Bernardo José Drumond Gonçalves é sócio de Homero Costa Advogados e coordenador do Departamento Empresarial.

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