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João: estupro ou violação sexual mediante fraude?

As provas dos autos são absolutas para determinar a tipificação dos fatos ou até mesmo a atipicidade das condutas.

21/12/2018

Os fatos relativos ao médium João de Deus eclodiram em âmbito nacional. Portanto, de conhecimento público e notório. Não nos cabe avaliar provas, pois fatos se provam nos autos do processo. Porém, debate-se, em tese, se os eventuais abusos, no campo da sexualidade, do referido médium configuram estupro ou violação sexual mediante fraude.

Desde que houve a reforma instituída pela lei 12.015/09, tenho sustentado a dispensabilidade do art. 215 do CP, pois a questão, uma vez concretizada, poderia ser resolvida na esfera civil, por meio de indenização por danos morais. E por quê? Pelo fato de que o ato libidinoso teria sido conseguido por meio de fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima. Uma situação de menor potencial ofensivo, em nossa visão. Ora, essa figura típica incriminadora abrangeria situações singelas, tais como, exemplificando, o exame ginecológico feito por um médico que, sub-repticiamente, auferisse prazer sexual, em lugar de agir, naquele momento, apenas profissionalmente. A vítima, em entrega para exame, tende até a ficar em dúvida se foi abusada ou não. A configuração desse delito não pode envolver qualquer espécie de ameaça ou intimidação, a ponto de dobrar a vontade de resistência da vítima. Registre-se: a pessoa ofendida concorda com o ato, porque está enganada.

Assim sendo, para afastar o referido art. 215 na composição da tipicidade incriminadora, pode-se apontar, em primeiro lugar, todo e qualquer ato libidinoso cometido contra menor de 14 anos. Incidiria o art. 217-A do CP, com ou sem consentimento da vítima. Por outro lado, também incorre nesse tipo penal o agente que domina a vítima que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato. E ainda mais finaliza o referido tipo do art. 217-A, § 1º: qualquer outra causa que leve a vítima a não oferecer resistência.

Iniciemos uma primeira análise, desde logo ilustrando: uma mulher, com doença grave, apresentando-se para ser curada, valendo-se da sua fé, ao ver-se dirigida, compulsoriamente, a um ato libidinoso não foi simplesmente fraudada, mas foi estuprada. Está frágil, regida pela fé – algo que movimenta ações e reações de milhares de pessoas –, em confiança absoluta, diante de um todo-poderoso médium – um veículo de comunicação de entidades espirituais superiores – tendo a sua mão segurada pelo algoz, levando-a ao seu pênis. Ela não está sendo fraudada, mas estuprada. Essa mulher se encontra em situação de absoluta vulnerabilidade. A ação descrita não configura fraude, mas violência presumida, agora incorporada no tipo penal do art. 217-A do CP.

Em tese, a violação sexual mediante fraude (art. 215, CP) poderia ocorrer se, exemplificando, num passe, o médium passasse as mãos, libidinosamente, nos seios da mulher, sentido prazer sexual. Entretanto, em sala privativa, com a vítima à mercê de seu poder espiritual (algo que limita qualquer reação por temor à divindade), se o algoz chega a ter toques libidinosos e atinge o orgasmo está, com a devida vênia, distante da fraude; atinge o ápice do estupro de vulnerável.

A ameaça presumida, constante hoje do tipo do art. 217-A, envolve qualquer espécie de subjugação. Ora, quem vai a esse médium glorificado internacionalmente não é pessoa saudável, que possa se defender de uma eventual fraude; muito mais que isso, significa a procura de salvação (vida em risco) em direção a um médium – que não age por si, mas por espíritos superiores – concretizando uma forma de envolvimento ameaçador, que retira a capacidade de resistência da vítima. Esta mulher, infeliz e fraca, não está sendo enganada pelo médium, quando este tem qualquer tipo de relacionamento sexual com ela; está rendida ao médium, pois que, se o procurou, é porque acredita em seus poderes transcendentais. A forma de uma ameaça é variável na vida das pessoas. Usar a fé para fins libidinosos tolhe a manifestação livre de vontade da vítima. Mas esta não está sendo ludibriada. De jeito nenhum. Está sendo estuprada e sente que nada pode fazer, pois seu algoz é uma entidade poderosa.

Utilizar a fé de pessoas crédulas é uma das piores e odiosas manifestações de seres humanos pérfidos para atingir seus desejos profanos. Mas essa utilização, repita-se, não é sinônimo de fraude, mas de grave ameaça. Como resistir a um enviado de Deus? A mulher deixa que a toque, permite diversos atos libidinosos porque está sendo coagida, está sendo obrigada a se calar em nome do bem maior, que é a sua saúde. Triste situação, porém verossímil.

O esteio na fé é um bordão brasileiro, um dos povos mais espiritualizados do mundo. Evidencia-se o controle absoluto que isto causa, quando se pode acompanhar um caso triste de uma mulher vitimada, em tese, pelo médium, tendo seu pai a poucos metros de distância, virado de costas, por ordem do algoz, rezando. Enquanto o genitor ora a Deus, o que faz o médium? Estupra sua filha, vulnerável e entregue à própria sorte. Não há fraude; há redução à incapacidade de resistência.

Sabe-se que existem pessoas doadoras de todos os seus bens a uma determinada igreja com fundamento em sua fé. O Estado respeita e prevê, na CF, o pleno direito à liberdade de consciência e de crença (art. 5º, VI). Mas isto ocorre porque a pessoa crente realmente quis doar. Se depois se arrepende, trata-se de outro panorama. Se o Estado reconhece a força da fé, torna-se mais que lógico reconhecer, igualmente, como a fé pode representar fator de diminuição da capacidade de resistência de alguém.

No caso da libidinagem, muitas mulheres que vão ao médium pretendem receber tratamento espiritual, jamais idealizando um abuso sexual. Quando este ocorre, também não se dá, em muitos casos, sob a esfera da fraude, mas, sim, do temor reverencial profundo instalado naquele momento entre vítima enferma e carente e agente agressor manipulador.

Retornando ao exemplo da fraude sexual, quando uma vítima é abusada na maca ginecológica, ela está aberta a um exame profissional, quando este se torna libidinoso. Eis o engano. Quando a vítima vai a um médium, não existe nenhuma referência a libidinagem. Quando esta ocorre, em grande parte das vezes, decorre de constrangimento ilegal, passível de configurar o estupro de pessoa vulnerável (art. 217-A, § 1º, CP).

Repiso, para finalizar, se o médium não oferece opção à mulher, dentro de um local fechado, de onde ela não pode fugir, pois crédula e carente, para, então, tocá-la libidinosamente e fazer com que a vítima o toque, de igual maneira, chegando, inclusive, a atingir o orgasmo visível e inescrupulosamente sentido pela pessoa ofendida, cuida-se de estupro de vulnerável.

Tratamos do tema em tese. As provas dos autos são absolutas para determinar a tipificação dos fatos ou até mesmo a atipicidade das condutas.

A Justiça saberá bem decidir.

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*Guilherme de Souza Nucci é jurista e magistrado brasileiro, conhecido por sua obra voltada ao direito penal e ao direito processual penal. Desembargador do TJ/SP.

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