No dia 22 de novembro de 2018 foi publicado o decreto 9.571, de 21 de novembro de 2018, que estabelece as diretrizes nacionais sobre empresas e Direitos Humanos (“diretrizes”), para médias e grandes empresas, incluídas as empresas multinacionais com atividades no País1. A norma faculta, ainda, nos termos do disposto na LC 123, de 14 de dezembro de 2006, às microempresas e as empresas de pequeno porte, na medida de suas capacidades, a possibilidade de cumprir as diretrizes de que trata o decreto, observado o disposto no art. 179 da Constituição2.
A novel legislação estabelece que as diretrizes tem natureza facultativa, ou seja, podem ser implementadas voluntariamente pelas empresas, sendo que aquelas que efetivarem referida adesão poderão receber o selo “Empresa e Direitos Humanos”, destinado às empresas que voluntariamente implementarem as diretrizes de que trata o decreto. Este selo deverá ser, ainda, instituído por ato do ministro de Estado dos Direitos Humanos.
Precipuamente identificamos e alertamos que a norma, muito mais do que simples normativa principiológica, visa efetivamente alocar direitos e deveres tanto para a esfera pública quanto privada. Ao Estado atribui diversas obrigações de fomento, divulgação e cobrança de cumprimento de normas e diretrizes de direitos humanos. Para as empresas, são criadas inúmeras novas obrigações e regras para acompanhamento e cumprimento da responsabilidade social e de direitos humanos.
A norma tem as seguintes orientações para as diretrizes: a) obrigação do Estado com a proteção dos direitos humanos em atividades empresariais; b) responsabilidade das empresas com o respeito aos direitos humanos; c) acesso aos mecanismos de reparação e remediação para aqueles que, nesse âmbito, tenham seus direitos afetados; e d) implementação, o monitoramento e a avaliação das diretrizes (art. 2º).
São pautadas diversas diretrizes para orientação e conduta relacionadas à responsabilidade do Estado com a proteção dos direitos humanos em atividades empresariais, todas elencadas no art. 3º da norma, dentre as quais podemos destacar: a) a capacitação dos recursos humanos da administração pública para o tratamento das violações aos direitos humanos em contexto empresarial, de seus riscos e de seus impactos, b) implementação de políticas, normas e incentivos à conduta das empresas quanto aos direitos humanos, até mesmo por meio de estímulo ao estabelecimento de canais de denúncia para os colaboradores, os fornecedores e a comunidade; c) prioridade de setores com alto potencial de impacto em direitos humanos, tais como os setores extrativo, de varejo e bens de consumo, de infraestrutura, químico e farmacêutico, entre outros; d) desenvolvimento de políticas públicas e realização de alterações no ordenamento jurídico; e) orientação da incorporação dos direitos humanos à gestão de riscos de negócios e de parcerias que venha a estabelecer, de modo a subsidiar processos decisórios; e f) promoção e apoio às medidas de inclusão e de não discriminação, com criação de programas de incentivos para contratação de grupos vulneráveis.
Já com relação à responsabilidade das empresas com o respeito aos direitos humanos, a norma estabelece entre os arts. 4º e 12 inúmeras regras e condicionantes. É atribuído às empresas o respeito aos direitos humanos protegidos nos tratados internacionais dos quais o seu Estado de incorporação ou de controle sejam signatários; e aos direitos e às garantias fundamentais previstos na CF.
Às empresas é estabelecida a responsabilidade de não violação dos direitos de sua força de trabalho, de seus clientes e das comunidades, mediante o controle de riscos, bem como o dever de enfrentar os impactos adversos em direitos humanos com os quais tenham algum envolvimento (art. 9º)
Nesta esteira, compete às empresas, a) o monitoramento do respeito aos direitos humanos na cadeia produtiva vinculada à empresa; b) a divulgação internamente dos instrumentos internacionais de responsabilidade social e de direitos humanos, tais como: (i) os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos da ONU; (ii) as diretrizes para Multinacionais da OCDE; e (iii) as Convenções da OIT; c) a implementação de atividades educativas em direitos humanos para seus recursos humanos e seus colaboradores, com disseminação da legislação nacional e dos parâmetros internacionais, com foco nas normas relevantes para a prática dos indivíduos e os riscos para os direitos humanos; d) a utilização de mecanismos de educação, de conscientização e de treinamento, tais como cursos, palestras e avaliações de aprendizagem, para que seus dirigentes, empregados, colaboradores, distribuidores, parceiros comerciais e terceiros conheçam os valores, as normas e as políticas da empresa e conheçam seu papel para o sucesso dos programas; e e) a imposição da redação de um código de conduta publicamente acessível, aprovado pela alta administração da empresa, que conterá os seus engajamentos e as suas políticas de implementação dos direitos humanos na atividade empresarial.
Estes pontos fixados no art. 5º, indicados no parágrafo anterior, podem implicar forte responsabilização da empresa. Isso porque, por exemplo, o monitoramento do respeito aos direitos humanos na cadeia produtiva vinculada à empresa, além de envolver uma responsabilidade indefinida (monitorar), pode implicar uma longa cadeira de terceiros, com os quais a empresa não necessariamente possui ingerência, ou mesmo não tem qualquer poder de investigação ou força, seja por estar em outra jurisdição / país, seja por ser um fornecedor global e a empresa representar uma pequena parcela no todo.
Além disso, as empresas devem garantir condições decentes de trabalho, por meio de ambiente produtivo, com remuneração adequada, em condições de liberdade, equidade e segurança, com diversas iniciativas estabelecidas no art. 7º do decreto 9.571/18. A norma fixa, inclusive, que a inexistência de certeza científica absoluta não será invocada como argumento para adiar a adoção de medidas, e novamente indica que as medidas de prevenção e precaução a violações aos direitos humanos devem ser adotadas em toda a cadeia de produção dos grupos empresariais (o que carece de indicação se envolverá terceiros ou não).
As empresas devem combater a discriminação nas relações de trabalho, promover a valorização e o respeito da diversidade em suas áreas e hierarquias (art. 8º) e identificar os riscos de impacto e a violação a direitos humanos no contexto de suas operações, com a adoção de ações de prevenção e de controle adequadas e efetivas (art. 9º), bem como estabelecer mecanismos operacionais de denúncia e de reclamação que permitam identificar os riscos e os impactos e reparar as violações, quando couber (art. 10).
São impostas responsabilidades e obrigações para que a empresa adote medidas de garantia de transparência ativa, com divulgação de informações relevantes, de documentos acessíveis às partes interessadas, quanto aos mecanismos de proteção de direitos humanos e de prevenção e de reparação de violações de direitos humanos na cadeia produtiva (art. 11), além de ter obrigação de adotar iniciativas para a sustentabilidade ambiental (art. 12).
No tocante aos mecanismos de reparação e remediação para aqueles que, no âmbito do decreto 9.571/18, tenham seus direitos afetados, a novel regulação estabelece que deve o Estado manter mecanismos de denúncia e reparação judiciais e não judiciais existentes e seus obstáculos e lacunas legais, práticos e outros que possam dificultar o acesso aos mecanismos de reparação, de modo a produzir levantamento técnico sobre mecanismos estatais de reparação das violações de direitos humanos relacionadas com empresas (art. 13). Tais mecanismos, validos tanto para a esfera pública quanto para a iniciativa privada, incluem desde a capacitação de recursos humanos e prover assistência e informações, em linguagem clara, para as pessoas que queiram exigir seus direitos a partir do acesso e do uso de mecanismos de denúncia e reparação judiciais e extrajudiciais, até o incentivo da adoção por parte das empresas e a utilização por parte das vítimas, de medidas de reparação como: a) compensações pecuniárias e não pecuniárias; b) desculpas públicas; c) restituição de direitos; e d) garantias de não repetição. Inclusive, a norma determina que compete à administração pública a iniciativa de incentivar que as empresas estabeleçam ou participem de mecanismos de denúncia e reparação efetivos e eficazes, que permitam propor reclamações e reparar violações dos direitos humanos relacionadas com atividades empresariais (art. 14).
Resta, ainda, a necessidade de implementação, o monitoramento e a avaliação das diretrizes (art. 16 e ss.), a Administração Pública, por meio do Ministério dos Direitos Humanos, instituirá o Comitê de Acompanhamento e Monitoramento das diretrizes nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos, com as atribuições de implementar, monitorar e avaliar a execução e o cumprimento do disposto no decreto. E para tanto, ato do ministro de Estado dos Direitos Humanos disporá sobre as regras e os procedimentos de seleção das entidades que representaram a sociedade civil no referido Comitê (art. 18).
Por fim, não obstante o complexo emaranhado de obrigações trazidas pelo novo decreto Federal, lembramos que para termos uma sociedade mais justa e mais humana é imprescindível assegurar “os valores fundamentais da dignidade humana e da liberdade” tutelando os direitos e valores ”de forma justa e igualitária”3.
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1 Decreto 9.571, de 21 de novembro de 2018. Estabelece as diretrizes nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos. Disponível em: Clique aqui. Acesso em 28.nov.2018
2 Constituição Federal de 1988. “Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.”. Disponível em: Clique aqui. Acesso em 28.nov.2018
3 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Ciência e Experiência do Direito Penal. pág. 12. Disponível em: Clique aqui . Acesso em 5.out.2018
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*Luís Rodolfo Cruz e Creuz é advogado e consultor em SP. Sócio de Cruz & Creuz Advogados.