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Inspeção da ONU

Mesmo aqueles que nutrem total antipatia pelo Poder Judiciário reconhecem que se trata de um Poder independente e que suas decisões incomodam os "poderosos do dia". Incomodam, principalmente, o Poder Executivo, haja vista que por força constitucional e em face do sistema de freios e contrapesos, o Judiciário tem sido uma barreira para impedir os desmandos e as arbitrariedades emanadas daquele Poder que acha que tudo pode.

23/10/2003

 

Inspeção da ONU

 

Ernani Vieira de Souza*

 

Mesmo aqueles que nutrem total antipatia pelo Poder Judiciário reconhecem que se trata de um Poder independente e que suas decisões incomodam os "poderosos do dia". Incomodam, principalmente, o Poder Executivo, haja vista que por força constitucional e em face do sistema de freios e contrapesos, o Judiciário tem sido uma barreira para impedir os desmandos e as arbitrariedades emanadas daquele Poder que acha que tudo pode.

 

Não pode. Todas as vezes que o Executivo praticar desvios de conduta ou arbitrariedades contra os cidadãos, o Judiciário sempre irá falar "BASTA". E aí lançam sobre nós o epíteto de fabricantes de liminares, muito embora saibam que a fábrica está no próprio Executivo que produz os atos ilegais ou arbitrários que obrigam o juiz a, através de liminares, garantir o direito violado.

 

Por isso o Poder Executivo aplaudiu (ou sugeriu) a iniciativa daquela senhora, representante da ONU, de recomendar uma inspeção no Poder Judiciário, como se este Poder fosse o responsável pelos atentados aos direitos humanos, pelo crime organizado e pela violência que ceifa vidas diariamente, crimes estes que ficam, quase sempre, impunes, haja vista que o Judiciário somente age quando provocado pela denúncia do Ministério Público que, por sua vez, depende do inquérito policial para oferece-la. E quantas vezes esses inquéritos são propositadamente mal feitos para obrigar o juiz a conceder habeas corpus. E diante disso a imprensa proclama: “a polícia prende e a justiça manda soltar”.

 

E quase sempre não podemos punir porque leis frouxas protegem os bandidos. Condena-se a oito anos e dois anos depois, ou menos, os bandidos já estão na rua. O Judiciário não faz as leis, nem as sanciona.

 

Se essa senhora, cheia de boas intenções, passasse mais tempo em nosso país, sem dúvida entenderia que o combate ao crime organizado e à violação dos direitos humanos é atribuição do Poder Executivo. Perceberia, também, que grande parte da violência que hoje nos atinge, gerada pela corrupção desmedida, é praticada por pessoas intimamente ligadas ao Poder Executivo. Exemplo recente foi a tortura e morte daquele chinês, naturalizado brasileiro, crime este que chocou o mundo. Centenas de outros exemplos poderiam ser aqui elencados, desde o tráfico de drogas até a violência urbana.

 

Como se vê, o "companheiro Lula", ao invés de regozijar-se com a proposta de intervenção internacional no Judiciário, melhor faria se protestasse contra ela, porque, afinal, o Judiciário nada mais é do que um dos três poderes que governam o país e, assim, qualquer intromissão internacional em suas atividades não deixa de ser um atentado à soberania nacional.

 

O fato de anularmos processos de desapropriação para reforma agrária, dolosamente manipulados para lesarem os proprietários da terra, não deve servir de júbilo e de desculpa para o Executivo, através de seus agentes, culparem o Judiciário de todas as mazelas que ocorrem no país, como o fez, recentemente, o atual presidente do INCRA para justificar sua inoperância.

 

Todos sabemos dos defeitos que atribulam o Judiciário. Nós, os juízes, temos sido os primeiros a aponta-los. Mas a solução não depende só de nós. Elas virão do Legislativo, através de uma legislação que permita procedimentos mais céleres, bem como de leis que punam adequadamente os criminosos, impedindo-os de se libertarem logo depois de condenados.

 

A solução virá, também, do Executivo, através de recursos que permitam a criação de tantas varas e comarcas, suficientes para atender bem a população. Já demonstramos, ao longo dos anos, que a carência de juizes é crônica, fato este que, inevitavelmente, faz com que a solução de uma lide demore alguns anos, por força do volume crescente de processos.

 

O que temos visto, porém, é a constante má vontade de ambos os Poderes para com a solução dos reais problemas do Judiciário. Vez ou outra, quando interesses maiores são contrariados, ameaçam-nos com uma reforma para manietar-nos. A mais recente ameaça veio do presidente do Congresso, ao reagir contra uma decisão judicial que impediu seu protegido de assumir um cargo de conselheiro do TCU e agora o Min. Thomas Bastos afirma aos jornais que “este não é o Judiciário de nossos sonhos”, para justificar a tal intervenção da ONU e reiterar a necessidade de mudanças.

 

Façamos uma reforma. Mas uma reforma honesta. Aliás, façamos uma reforma também no Legislativo e no Executivo para que a corrupção, em todos os níveis e em todos os poderes, seja, pelo menos, diminuída e controlada. Uma reforma para que a polícia proteja as pessoas de bem ao invés de intimida-las; para que o trânsito não continue matando; para que a violência no campo deixe de existir; para que a fome e a miséria não sirvam de palanque para políticos inescrupulosos.

 

Façamos uma reforma que impeça o emperramento da justiça causado pelo excessivo número de recursos tão bem manipulados pelos advogados do Estado para procrastinarem o cumprimento das obrigações. Façamos uma reforma que acabe com a excrescência dos precatórios, criados para que o Estado não pague suas dívidas. Acabe-se, também, com os processos de execução, haja vista que não têm sentido, a não ser para proteger os maus pagadores, propor uma outra ação para que se faça cumprir uma sentença transitada em julgado. Anote-se, ainda, que quase oitenta por cento dos recursos julgados pelos tribunais são interpostos pelo Estado, muito embora as questões não sejam controvertidas.

 

Façamos, enfim, uma reforma para impedir que continuemos reféns do FMI, cujos tentáculos agora tentam esmagar o Judiciário, depois de terem já sob controle os demais poderes que tentam reformar a Constituição nos moldes por ele, FMI, sugeridos.

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*Desembargador do TJMT e presidente da AMAM - Associação Mato-Grossense de Magistrados.

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