Boa-fé e contrato de trabalho
Almir Pazzianotto Pinto*
Em comentário ao Código, publicado pelo Estado na edição de 21 de junho, o emérito jurista assinala que em todo ordenamento jurídico ''há artigos-chaves, isto é, normas fundamentais que dão sentido às demais, sintetizando diretrizes válidas para todo o sistema''. Na lição de Miguel Reale, o artigo-chave do Código Civil é o 113, cujo texto diz: ''Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração''. Prosseguindo, registra o eminente civilista que a boa-fé ''é o cerne ou matriz da eticidade, a qual não existe sem a intentio, sem o elemento psicológico da intencionalidade ou do propósito de guardar fidelidade ou lealdade ao passado''. Boa-fé, prossegue o mestre Reale, ''é uma das condições essenciais da atividade ética, nela incluída a jurídica, caracterizando-se pela sinceridade e probidade dos que dela participam, em virtude do que se pode esperar que será cumprido o pactuado sem distorções ou tergiversações, máxime se dolosas, tendo-se sempre em vista o adimplemento do fim visado ou declarado como tal pelas partes''.
A Consolidação das Leis do Trabalho não se refere uma única vez à boa-fé. Na CLT, o artigo-chave é o 9º, que diz: ''Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação''. Aparentemente simples, o dispositivo se reveste, entretanto, de notável complexidade e ilimitado alcance, pois tanto se presta para corrigir atos fraudulentos e contrários à lei como para transformar contrato civil em trabalhista, mesmo quando celebrado e praticado em harmonia com o que fora pactuado e obedecidas as exigências legais. É o dispositivo que faculta ao juiz do Trabalho aplicar o princípio do ''contrato realidade'', em benefício do prestador de serviços e para surpresa do tomador de serviços, que repentinamente se vê transformado em patrão, com os encargos que essa qualificação atrai.
Ao contrário do que fizera o Código Civil de 1916, e do que faz o Código de 2002, a CLT ignorou a boa-fé e a má-fé em favor do ''hipossuficiente'' e do ''contrato realidade''. Visando à proteção dos empregados, entre os quais não reconheceu diferenças relativas a espécie de emprego e a condição do trabalhador nem entre o trabalho intelectual, técnico e manual, a CLT adotou a regra do art. 9º, do qual é decorrência o art. 468, que admite alteração contratual por mútuo consentimento, desde, porém, que não provoque, direta ou indiretamente, prejuízo ao assalariado, sob pena de nulidade da cláusula.
Solicitado a investigar alegação de fraude, o juiz do Trabalho se limitará, na maioria dos casos, a verificar se o tomador de serviços corresponde ao perfil do artigo 2º da CLT, e se o prestador de serviços preenche o modelo desenhado pelo artigo 3º. Havendo indícios de dependência ou subordinação, a probabilidade é de que ocorra o reconhecimento de relação de emprego, independente de se investigar se houve ou não má-fé quando da celebração do contrato de natureza não trabalhista, como, por exemplo, o de prestação de serviços, previsto pelo Código Civil.
É óbvio que empregadores ou tomadores de serviços também cometem atos de má-fé, deixando, por exemplo, de registrar alguém que contratavam como empregado. Nesse caso, porém, presente já se encontrava o contrato tácito ou ajustado verbalmente. Não me refiro a essa situação, comum em um país onde o mercado informal, por razões que aqui não cabe examinar, é maior do que o mercado estruturado. Preocupa-me que sob a cobertura do contrato realidade se multipliquem condutas nas quais a má-fé não é coibida em nome de duvidosa necessidade de proteção a alguém que não corresponde ao modelo de hipossuficiente. É o caso do artista que celebra contrato de imagem. Ora, quem é hipossuficiente não reúne condições de auferir renda com contrato de imagem. Isso somente se dá quando a pessoa tem notoriedade e o seu nome, ou fotografia ou voz, adquire valor susceptível de exploração pela mídia.
Na revisão da legislação material do trabalho dever-se-á abrigar, em algum dispositivo, o princípio da boa-fé, por oposição à má-fé, proclamando-se, como no Código Civil, que nas relações entre empregadores e empregados os contratos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos e costumes no local da celebração.
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* Advogado, ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho, aposentado
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