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Sonegação fiscal e o crime do colarinho branco: será que as coisas escureceram?

A esfera administrativa resguarda o direito de defesa em detrimento do tributo, do seu valor, exigibilidade, extinguindo-o pela prescrição ou decadência, mas o ato em si só se operacionaliza com o seu trânsito em julgado, assim é (deveria ser) o devido processo legal.

30/11/2018

Consoante se depreende na lei 8137/90 criada, à época, com uma série de delitos e os definiu contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, dando-lhe outras providências, principalmente, de espécie material, por atribuir um rol de condutas tipificadas quanto à supressão ou omissão, com fito de reduzir o tributo, noutros, utilizando crimes-meio ao falsificar para se conseguir tal empreitada, fraudar fiscalização tributária, falsificar notas e por aí vai.

Há muito intitulado de crime do colarinho branco, por espécie, em razão da tecnologia empregada, de difícil enquadramento, com autores ou partícipes de elevada qualificação, inclusive, com posição econômica privilegiada. De certo, que essa nomenclatura, no sítio da criminologia, foi definida com maestria, inicialmente, pelo norte-americano Edwin Sutherland, onde esses atores engravatados seriam pessoas respeitáveis, de alto status social, no mundo empresarial e corporativo, fraudavam, com informações privilegiadas, utilizando uma indumentária bastante peculiar, em meados de 1940, pela camisa com o colarinho branco.

No Brasil, tal definição toma quase o mesmo norte, pois é ato delituoso praticado, na maioria das vezes, por pessoa de elevada respeitabilidade, portando posição privilegiada sócio-econômica, sem violência ou grave ameaça, com ganhos consideráveis, ao se utilizarem de métodos sofisticados e transações comerciais complexas dificultando, assim, a persecução criminal, nos idos de 1986, com a lei 7.492, e porque não incluir a lei de sonegação fiscal?

Gerada numa ideologia pós Constituição Republicana, ganhou maior sentido ao salvaguardar a arrecadação tributária, sobretudo a fim de combater ações ilícitas lastreadas em meandros normativos onde operacionalizava grande dificuldade de investigação policial, pelo sigilo fiscal, princípio da dignidade da pessoa humana, complexidade das transações financeiras, sem o aparelhamento devido dos entes fiscalizadores, inclusive, por terem a obrigação de preservar informações ditas confidenciais.

Como é de conhecimento hodierno, o Estado se utiliza do Direito Penal como forma de arrecadar tributos ou reduzir a sua evasão, sonegação e desvio, aplicando a malsinada singelamente responsabilidade (objetiva) à pessoa física na condição de sócio constituído em contrato social, seja o diretor ou administrador, repreendendo o sujeito passivo, simplesmente, pela dívida e não comprovação efetiva de sua culpabilidade, inobstante fazer-se necessário o conhecimento e a intenção do agente em realizar o tipo penal, pois nem sempre uma inscrição de dívida ativa lastreia o ilícito penal e, para tanto, o nexo de causalidade da conduta ao resultado da ação.

As garantias constitucionais deverão sempre forrar os processos de conhecimento, inclusive os de ordem penal, face à busca incessante do Estado-Administração Pública em arrecadar cada vez mais, mesmo que indiretamente, tornando uma simples certidão de dívida ativa, seja por atropelos na gestão, por inexigibilidade de conduta diversa ou simplesmente a falta de pagamento dos tributos, em ato criminoso punido com extremo rigor, além de multa e juros exorbitantes, que não deverão ser contabilizados na aplicação da pena (STJ – HC 312205/PE, rel. ministro Joel Ilan Paciornik, 5ª T., DJe 2/3/18). Contra o Estado não tem vez!

A despeito disto, importante registrar a falta de interesse estatal em virtude do STJ ter equiparado a quantificação do valor (de R$ 20.000,00) ao máximo para incidência do princípio da bagatela, por revisão aos parâmetros fixados nas portarias 75 e 130 do Ministério da Fazenda, agora, por segurança jurídica, tal matéria está atrelada ao tema 157 (STJ – REsp 1688878/SP, rel. ministro Sebastião Reis Júnior, 3ª Seção, DJe 4/4/18) e consolidada.

De fato e de direito, para se facilitar o adimplemento, quando possível, dos tributos não quitados, o governo edita normas administrativas que asseguram o parcelamento, a exemplo do REFIS e PERT. Noutra banda, com a execução fiscal e encaminhamento dos autos para o autor da ação, Ministério Público, para fins penais, ao se recorrer o parcelamento, à luz do art. 9º1, da lei 10.684/03, o feito criminal até mesmo com a apresentação da denúncia, até pouco o Judiciário entendia assim, dever-se-ia ser sobrestado até a quitação do quantum estimado, além de extinguir a sua punibilidade pelo pagamento integral – isto não mudou -, nada mais sendo, esse meio criminológico, uma cobrança transversa (atualmente explícita).

Pois, face à reviravolta jurisprudencial, em recente decisão, sob a relatoria do min. Felix Fischer, o STJ sedimentou entendimento que a Lei 12.382/11 determina a suspensão da pretensão punitiva do Estado, desde que o parcelamento do débito tributário tenha sido formalizado antes do recebimento da denúncia" (STJ - AgRg no HC 439.362/PR, rel. ministro Felix Fischer, 5ª T., DJe 9/8/18). Está escurecendo aos que se utilizavam do processo penal como forma de defensa indireta, além de aguardar o seu resultado para tomada de decisão quanto ao crédito tributário.

Noutra linha, é de se recordar, com arrimo na súmula vinculante 24 do STF, a ação penal teria esbarro no seu nascedouro com a ausência do exaurimento do procedimento fiscal, atrelado à possibilidade de recursos e ao seu trânsito em julgado, para se efetivar a materialidade delitiva e assegurar esse pressuposto processual de admissibilidade. Nessa senda, a esfera administrativa resguarda o direito de defesa em detrimento do tributo, do seu valor, exigibilidade, extinguindo-o pela prescrição ou decadência, mas o ato em si só se operacionaliza com o seu trânsito em julgado, assim é (deveria ser) o devido processo legal.

In casu, existe uma série de benesses em contrapartida do parcelamento e pagamento dos impostos, supostamente, sonegados ao sujeito integrante do polo passivo, entretanto, com o advento da legislação (lei 9613/98) sobre o crime de lavagem de dinheiro, seu aspecto de crime parasitário, pelas alterações da lei 12.683/12, com penas muito mais severas e inexistindo a condição sine qua non de rol para os crimes-meio puníveis, aqui se insere a possibilidade direta e iminente da conjugação de normas, a fim de identificar para onde foram encaminhados os bens e valores e mesmo quitando o débito (sonegação) persistirá o crime fim (lavagem).

Além disto, senão fosse pior, o Tribunal da Cidadania, por decisão levada ao crivo da 3ª Seção (reunião das turmas com competência em matéria penal), no HC 399109, não unânime, sob a relatoria do min. Rogério Schietti Cruz, servindo de base para as procuradorias (estaduais e federais) realizarem cobranças constritivas de adimplemento de mero débito, estabeleceu que para a tipificação do art. 2º, II, da lei 8.317/90, bastar-se-á o mero inadimplemento da pessoa física ou jurídica, quando contribuinte informar o débito, e tal interpretação tem sido arvorada pelos agentes de cobrança como forma de coagir o adimplemento.

Diante disto, com a impossibilidade de parcelamento posterior à denúncia como forma de suspender a ação penal, o mero inadimplemento constituir crime, a desnecessidade do crime anterior para o delito de lavagem de dinheiro, será que o colarinho começou a mudar de cor? Creio que sim! As coisas escureceram.

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1 Art 9°: É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1° e 2° da lei 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168A e 337A do decreto-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento.

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*João Vieira Neto é advogado criminalista, sócio do escritório João Vieira Neto Advocacia Criminal.

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