Migalhas de Peso

Os custos da saúde, os reajustes dos planos e a culpa de todos nós

Não devemos, simploriamente, vilanizarmos os governos, os planos de saúde e a própria ANS, isoladamente. A problemática é conjuntural e, ao que mais interessa nesse artigo, também de índoles ética e jurídica.

21/11/2018

Ninguém quer pagar mais pelos planos de saúde, cujas mensalidades já subiram muito além da inflação. Esta, calculada pelo IPCA, está por volta dos 4,5% nos últimos 12 meses, enquanto alguns planos de saúde subiram em torno de 20% no mesmo período. E há relatos de planos que subiram muito mais do que isso. Para deixar barato, na média, os planos subiram mais de 400% acima da inflação.

Essa dissonância quanto ao aumento do preço da saúde, porém, não é exclusividade tupiniquim.

Para demonstrar que a problemática dos custos na área da saúde pública não é apanágio de países emergentes, como o Brasil, o pesquisador em temas de saúde, Daniel Wang, doutor em Direito pela Queen Mary University of London, traz que a Inglaterra, p. ex., não cobre cirurgia de mudança de sexo, nem fertilização in vitro. E há um limite instransponível que a coroa arca para cada cidadão. Além desse patamar, o próprio paciente ou seus familiares é que suportam os custos. No Canadá, o tempo médio para se submeter a uma cirurgia ortopédica é de 41 semanas. Sim, em média, por lá se demora mais do que uma gravidez nesse tipo de cirurgia. Na Noruega, um dos países com maior IDH do globo e o segundo com maior gasto na área da saúde, há uma ampla lista de procedimentos não cobertos, incluindo fisioterapias. E são países que investem quase 20% do PIB na área da saúde, diferentemente do Brasil, cujos investimentos na mesma área são de míseros 3,8% do PIB (dados da OMS de 2015), próximo ao percentual de Mianmar. E, para piorar, atualmente temos legislação que impôs um teto de gastos ao governo que, certamente, também impactará na questão da saúde.

Verdade, contudo, é que a visão paradisíaca da saúde integral, que pode tratar a todos, com a melhor tecnologia disponível, em tempo hábil e por preço módico, simplesmente inexiste.

O assunto é tão polêmico que chegou a ser, nos Estados Unidos, objeto da plataforma eleitoral do ex-presidente Barack Obama (o projeto, parcialmente implantado, ficou conhecido como Obama Care). E o resultado não agradou boa parte da população norte-americana que preferiu eleger Trump, contrário ao projeto de seu antecessor, porque os custos do modelo encareciam, demais, a saúde privada, especialmente para as empresas.

Na saúde suplementar o cenário é bastante gravoso.

Há 40 anos praticamente inexistia a figura do plano de saúde no Brasil. A saúde era barata. Sequer existia, p. ex., a denominação “Diagnóstico por Imagem”. Havia apenas exame de radiografia. Aos poucos, surgiram mais tecnologias. Chegou a ultrassonografia, tomografia computadorizada, ressonância nuclear magnética, mamografia. Vieram os exames genéticos, sem contar no aperfeiçoamento das órteses e próteses. Parte das modalidades das paraolimpíadas se ampliou por conta desse aperfeiçoamento. Veio a laparoscopia, os quimioterápicos ministrados por via oral, a imunoterapia, as cirurgias com auxílio de robôs, implante de stents que, por vezes, evitam cirurgias cardíacas mais arriscadas e invasivas, além de tantas outras novidades. Esse progresso é realmente maravilhoso.

Fato é, no entanto, que se por um lado é verdadeira a afirmação de que a saúde não tem preço, por outro lado é igualmente verdadeiro que ela tem um custo. E ele é alto.

Para piorar a base pagadora, a própria ANS informa que nos últimos 3 anos houve mais de 3 milhões de convênios desativados.

A agência ainda esclarece que, nos últimos 10 anos, os beneficiários idosos, com 80 anos ou mais, aumentaram em 62%. E essa faixa da população foi a única que cresceu nos últimos 3 anos na saúde suplementar. E, como sabemos, idosos usam mais os planos de saúde. Em 2030, segundo a ANS, haverá mais idosos do que crianças no Brasil, projeção esta que vaticina tempos vindouros ainda piores, em termos de custos da saúde e desbalanceamento com relação às fontes pagadoras.

Assim, não devemos, simploriamente, vilanizarmos os governos, os planos de saúde e a própria ANS, isoladamente. A problemática é conjuntural e, ao que mais interessa nesse artigo, também de índoles ética e jurídica.

A solução não é fácil, mas temos algumas hipóteses a sugerir.

Primeiramente, como diz o adágio popular, não existe jeito certo de fazer a coisa errada. Assim, devemos começar saneando as mazelas que encarecem a saúde, em especial as fraudes e os abusos.

Ponto de partida é impedir que haja indicação política para hospitais públicos, AMAs e, acima de tudo, para a ANS. Precisamos contar com técnicos na sua condução. O presidente da República e o Senado Federal devem chancelar o nome escolhido internamente, pelo estafe técnico da própria agência. A saúde não é uma questão de governo, mas sim de Estado. A sociedade não pode ficar à mercê do governante de plantão para cuidar desse tema, com mudança errática de rumo a cada mandato presidencial. Exemplo da desinteligência que isso traz é o percentual que a ANS tentou nos fazer engolir, por meio da resolução 433 editada em meados desse ano, de 40% a título de coparticipação (podendo ser majorado em caso de acordo coletivo), que acabou sendo rapidamente neutralizado por liminar concedida pela ministra Carmen Lúcia, do STF. A própria ANS acabou revogando a norma dias depois.

A propósito, diferentemente do que tratamos até aqui, esse percentual é algo bem brasileiro: uma verdadeira jabuticaba; e das grandes. Nos Estados Unidos há uma miríade de seguros-saúde que também preveem franquia e coparticipação, os quais, aliás, cobrem parcialmente custos com óculos de grau e aparelhos ortodônticos; mas os percentuais são diminutos quando comparados à fome gananciosa da ANS. O cidadão português paga meia dúzia de euros para realizar um exame de imagem. Caberia, ao menos, como sói de ser num mundo republicano, que a ANS trouxesse os cálculos atuariais que ensejam esses percentuais obscenos. Não é à toa que o TCU deliberou, em decisão plenária (acórdão 679/18) que a ANS se manifeste com relação aos cálculos dos percentuais de reajuste.

Outro aspecto, que também passa pela ANS, é a fiscalização; aliás, um de seus basilares deveres institucionais e, nesse tema, me debruço com mais vagar.

A CGU, em levantamento realizado de 2002 a 2015, detectou R$ 5,04 bilhões em desvios na saúde pública. Na saúde suplementar, essa cifra é ainda pior. A própria ANS admite, em seu site oficial, que os desvios e abusos cometidos – que foram por ela detectados – remontavam a R$ 22 bilhões (dados de 2015)! Pois é, leitor, essas cifras não são vistas apenas em operações da Polícia Federal e nas ações judiciais que delas desaguam, como a Lava Jato. Elas também permeiam a área da saúde, cujos protagonistas, neste caso de desvios dos planos de saúde, mais das vezes transcendem à figura dos agentes políticos ou dos servidores públicos, a quem gostamos de imputar toda a sorte de responsabilidade pelos revezes de nossa vida cotidiana. Nós, consumidores, médicos, fabricantes e importadores de próteses e de equipamentos, nós, empresários do ramo farmacêutico, nós mesmos, da sociedade civil, somos responsáveis em grande medida pelos custos da saúde, que culminam nas altas mensalidades dos planos.

Tenho escrito bastante sobre fraudes na área da saúde. Os exemplos são diversos, proporcionais à criatividade dos forjadores, partindo dos beneficiários que mentiram ao preencher questionários dos planos de saúde, dizendo não terem doença preexistente, quando sabiam ter, até aqueles que, em planos de livre escolha (que contam com reembolso posterior de consultas e exames), pedem ao médico (e este lamentavelmente lhes concede, também ilicitamente) dois recibos, com metade, cada qual, do valor da consulta, e com datas separadas por mais de um mês para não serem tratados como retorno do paciente ao médico (o retorno não pode ser cobrado), para que assim se simule que o preço da consulta seria apenas metade do verdadeiro, onerando o plano de saúde. Há, também, os usuários de planos mais antigos (os seguros-saúde) que contam apenas com cobertura para internações hospitalares. Esses usuários, não raras vezes, são internados sem necessidade (também em conluio com os seus médicos) apenas para realizarem exames, que, por si só, não seriam cobertos pelo plano se não estivessem internados, como não deveriam estar para fazê-los. Veja que aqui também incidem custos hospitalares desnecessários. E isso sem contar nos médicos que prescrevem próteses e órteses de um importador específico porque têm vantagens financeiras na indicação. E cirurgiões que falseiam informações, fazendo constar o comparecimento de mais profissionais em alguma cirurgia específica, apenas para aumentar ilicitamente o reembolso do plano de saúde do paciente. Há, também, médicos que prescrevem determinados medicamentos, fabricados ou importados por farmacêuticas que subsidiam suas passagens aéreas e estadias em congressos, por vezes extensivas aos seus familiares em períodos de férias. Recentemente, a mídia divulgou que um conhecido pesquisador e médico do exterior confessou receber vantagem financeira da indústria farmacêutica para preconizar uso de vitamina D como prevenção a diversas doenças crônicas, cujo uso cotidiano virou moda mundial. Esse mesmo médico, porém, tem relações com clínicas de bronzeamento artificial (porque os raios UVA e UVB ajudam na fabricação dessa vitamina pelo corpo). Seus estudos impulsionaram a indústria de vitaminas, de bronzeamento e de exames laboratoriais para a sua aferição. Ele confessou ter “forçado a barra” no seu estudo para incentivar o uso massivo da vitamina D. Não é incomum laboratórios farmacêuticos “fomentarem” trabalhos acadêmicos acerca da eficácia de um determinado medicamento. Aqui, há um fator deletério ainda maior, porque este trabalho acadêmico, de conteúdo questionável e base estatística parcial, induzirá a comunidade em geral – e a médica, em especial – a considerar que determinado medicamento teria um efeito superlativamente benéfico, mas que nem sempre possui. E muitas prescrições médicas e pleitos de advogados perante o Poder Judiciário serão manejados a fim de que esses medicamentos controversos, geralmente caríssimos, sejam fornecidos aos seus clientes, doentes, que contam com essa derradeira esperança, para se salvarem ou viverem um pouco mais e melhor. E, quanto a este último tema, reside outra torneira perdulária que impacta, sobremaneira, nos custos da saúde pública e suplementar: o Poder Judiciário.

No mundo todo há uma única porta, ainda que de duas folhas, para se adentrar na estreita sala da cobertura dos custos de saúde: é a porta bifurcada da lei e a do contrato celebrado com o plano de saúde. Aqui no Brasil temos o péssimo hábito de judicializar tudo o que não gostamos e simplesmente não aceitamos. Exemplo típico é o caso do paciente, idoso, com câncer terminal, que quer utilizar um medicamento controverso, inovador, prescrito pelo seu médico, às vezes de uso off label (ou seja, que sequer foi fabricado para tratar daquela patologia, mas algum estudo indicou que ele poderia ajudar no tratamento da doença, estranha àquela prevista na bula) com o qual poderá, potencialmente, até ganhar mais algumas poucas semanas de vida. Agora em setembro, aliás, o STJ obrigou um plano de saúde a fornecer um polêmico medicamento num caso desses (REsp 1721705). E é comum a Justiça obrigar o Estado a fornecer esse tipo de medicamento.

Já atuei, muito, como advogado, na defesa de pacientes cujos médicos receitavam medicamentos ou procedimentos caríssimos nesses casos extraordinários. E sempre me senti, ao patrocinar essas ações judiciais, no exercício de um dever humanitário. E o Judiciário quase que invariavelmente acolhia o meu pleito. No nosso meio, chamamos isso de “jurisprudência misericordiosa”. Os tais princípios fundamentais da Constituição – princípio à vida, à dignidade humana, à cobertura integral à saúde e por aí vai – com os quais consideramos que até Deus tenha a obrigação de salvar o nosso cliente/ paciente e, se existisse a possibilidade, certamente iríamos recorrer ao Monte Olimpo a fim de que o tratamento fosse coberto ao nosso assistido.

As perguntas que pairam em tudo isso: quem paga essa conta? E quem deve pagá-la? Não são apenas o paciente moribundo nem mesmo os seus parentes próximos que arcam com toda a parafernália que a medicina e farmacologia modernas oferecem, algumas vezes sem resultado efetivo claro. Os demais titulares do plano, pagantes desse custo, não deveriam ser ouvidos? Não seria mais razoável e equilibrado assimilar a finitude da vida em alguns casos, para mitigarmos os custos da saúde e, assim, alargarmos a abrangência de coberturas a mais pessoas, tornando-o mais social e tratando esses enfermos terminais com cuidados paliativos? O Judiciário tem legitimidade para, sumariamente, desconsiderar a lei, os contratos e os cálculos atuariais (porque, obviamente, os planos não têm como prever em seus orçamentos anuais o montante que o Poder Judiciário poderá vir a onerá-los com suas decisões, o mesmo valendo aos administradores públicos com relação a medicamentos que o Judiciário prosaicamente determina sejam fornecidos pelo Estado)?

Não são apenas outros países (e muitos deles desenvolvidos) que, como vimos, contrariam essa possibilidade de amparo judicial. Esse cenário chegou ao ponto do CNJ editar as resoluções 43/13 e 238/16, que visam, respectivamente, criar varas especializadas na área da saúde (poucas foram criadas até hoje, infelizmente) e Comitês Estaduais de Saúde para amparar o Poder Judiciário nessa ordem de assunto. Essa última resolução criou um sistema interessantíssimo, denominado de NAT-JUS (Núcleo de Apoio Técnico ao Judiciário) pelo qual os juízes deveriam, frente a um pleito liminar, antes de conceder a medida reclamada pelo usuário, consultar um banco de pareceres montados por profissionais da saúde de alto renome (incluindo médicos, farmacêuticos, biomédicos etc.), que analisam o real benefício dos procedimentos frente a diversas doenças, assim como a eficácia de medicamentos em casos específicos, em termos de melhoria de qualidade de vida e de longevidade ao paciente queixoso. Se ainda não houver parecer para aquele assunto específico, reclamado na ação judicial, o Comitê deve se reunir, ainda que virtualmente (hoje tudo ocorre pela internet) e remeter um parecer específico, em até 72 h, ao juiz que decidirá por conceder ou não o tratamento/ medicamento. No Estado de São Paulo, o NAT-JUS foi criado ano passado, por meio da portaria 9.469/17, editada pela Secretaria da Presidência do Tribunal de Justiça e, no mês de agosto, contou com a efetiva criação de varas mais focadas, ainda que não exclusivamente, na área da saúde, além de ter regulamentado, com mais minúcia, a aplicação do NAT-JUS.

Mas quem vigia o vigia? Na Região Sul do Brasil há uma ótima aderência do Poder Judiciário ao mecanismo criado pelo CNJ, em especial por parte do TRF4, cuja inciativa já fez diminuir o contingente de ações. E também por lá há forte atuação na mediação entre as partes (planos e usuários) e apoio da sociedade por essa iniciativa frutífera. Mas, Brasil afora, o uso do NAT-JUS é pífio. Alguns juízes e desembargadores próximos a mim sequer conhecem o sistema NAT-JUS (frise-se, criado pelo CNJ, órgão administrativo de Cúpula do Poder Judiciário, cujo presidente, aliás, é o mesmo que preside o STF). Em 5 de setembro último, ocorreu em Montevidéu o Sétimo Encontro Regional sobre Direito de Saúde e Sistemas de Saúde, com a presença do conselheiro Arnaldo Hossepian, que apresentou a plataforma digital do CNJ. Fato é, contudo, que atualmente o Poder Judiciário ainda concede, a rodo, medidas impactantes nos custos gerais da saúde pública e privada e que, às vezes, sequer trazem resultados efetivos aos pacientes. O CNJ divulgou que, em 9 de outubro, o ministro Dias Toffoli anunciou o pleno funcionamento do sistema e-NatJus. Vamos ver se agora vai... Há, nos tribunais superiores, recursos que estão sendo julgados para vincular a concessão de medidas judiciais a certas condicionantes, valendo ressaltar o REsp 1.657.156 (no STJ), o RE 56647 (fornecimento de medicamento a alto custo), este em trâmite perante o STF. O STJ, agora em novembro, julgou que os planos de saúde não são obrigados a custear medicamentos não aprovados pela Anvisa (REsp 1.712.163 e REsp 1.726.563). A última palavra, entretanto, ainda caberá ao Supremo, que já se debruça sobre esse exato tema no RE 657718.

O secretário de saúde paulista, David Uip informou que as medidas judiciais impactaram em R$ 1,2 bilhão o orçamento do Estado de SP em 2015, só com concessão de medicamentos. O então ministro Ricardo Barros esclareceu que as medidas judiciais impactaram os cofres da União, em 2016, no importe de R$ 7 bilhões, destroçando a previsão orçamentária para aquele ano; valores, aliás, bem superiores aos de 2012, que orbitavam R$ 1 bilhão ao ano, ao todo. Veja a repercussão que esse tipo de medida traz e a cadência de crescimento explosivo que está ocorrendo nos custos da saúde, impactados pelo Judiciário.

Cabe relembrar que, quando falamos em pedaladas fiscais e afins, há, também, esse tipo de ingrediente surpresa para o administrador público. Para a saúde suplementar, como vimos, os números impressionam ainda mais, e a conta, deficitária, leva o consumidor a suportá-la: justa ou injustamente.

Ainda quanto às ações judiciais, de 2010 a 2016 o número de processos atinentes a coberturas de procedimentos, internações e fornecimento de medicamentos aumentou 727% e, de 2000 a 2015, apenas os processos no STJ, aumentaram em 1.600% (dados ANADEM que, em outro estudo, trouxe 1.010%, no aumento dos custos por força da litigiosidade). Algo surreal e sem paralelo fora do Brasil.

O CNJ informa que, em 2016, tramitavam no Poder Judiciário de 1ª e 2ª instâncias, além do STJ e STF, nada menos do que 1.346.931 processos na temática da saúde. Dados recentes, de outubro de 2018 (14ª edição do relatório “Justiça em Números”, do CNJ) relevam um aumento de mais de 400 mil processos ativos de 2016 para 2017. Em dezembro de 2017 o CNJ confirma que 1.778.269 processos judiciais estão ativos no Brasil, nessa temática. É uma cifra assustadora, assim como o seu crescimento!

E aqui não vamos entrar no custo acessório para atender a tudo isso (tanto de pessoal do Judiciário – juízes, desembargadores e servidores públicos – quanto de investimento em tecnologia, local físico para acomodar toda essa gente, custos com advogados, defensores públicos, promotores de justiça, peritos médicos etc.). E mais de 92% das decisões concessivas de cobertura, pelos juízes singulares (de 1ª instância) são mantidas nos Tribunais. O Poder Judiciário, assim, faz aumentar, enormemente, o orçamento total da saúde no Brasil por conta de suas decisões. E estamos falando de um orçamento na ordem de R$ 3.5 trilhões para 2018. Qualquer percentual sobre essa cifra é, obviamente, bastante impactante.

Será que todas essas concessões de medidas judiciais são devidas? A resposta que tenho para esse cenário é simples. De duas, uma: ou o próprio Poder Judiciário está coonestando com práticas deletérias cometidas por agentes infratores ao não os punir exemplarmente, inclusive com ordens de prisão e afins, aplicadas a gestores de planos de saúde, diretores da ANS etc., ou está fazendo política pública sem mandato para tal. Afinal, os juízes não são eleitos pelo povo para fazê-lo. Não vislumbro uma terceira possibilidade.

Verdade é que essa torrente de ações judiciais e decisões misericordiosas exige enfrentamento e tratamento sistêmico. Ou vamos aceitar, humildemente, que o juiz possa se arvorar como dono e senhor da razão e continuará determinando, spontae propria, o que deva ser ou não coberto pelos planos (e até pelo Estado) – mesmo não havendo consenso médico para tal, nem orçamento prévio que preveja esses dispêndios, nem previsão legal e contratual de cobertura – ou é chegada a hora de tratarmos de forma séria e transparente o que desejamos para o Brasil em termos de saúde, tal qual ocorre em outros países que, bem ou mal, gerem de forma mais racional o seu sistema de saúde. Neles, não há cobertura integral e total para todos os procedimentos e medicamentos e isso não enseja, por lá, milhões de ações judiciais que visem a alterar essa realidade. Mas também não se nega, por lá, cobertura patentemente devida, como ocorre aqui.

Como resolver esse problema? Quanto ao aspecto financeiro, vamos retomar a ideia do ex-ministro Adib Jatene de criar um tributo (que acabou se convolando na extinta CPMF) específico para a saúde? Ou um aumento geral da tributação, em especial a quem pode pagar mais, já surtiria efeitos satisfatórios? Vamos nos impor alguns limites de cobertura, que exijam, por exemplo, pagamento adicional para se ter cobertura a novas tecnologias que surjam após a assinatura do contrato (afinal, quem hoje está com 80 anos não pagou o suficiente para remunerar tecnologias muito recentes, mas por ele eventualmente utilizadas), caso o interessado/usuário deseje cobertura a essa nova tecnologia? Vamos aceitar que os planos de saúde continuem a aumentar exponencialmente as mensalidades, coparticipações, franquias etc. e, quando não cobrirem tudo o que há de mais inovador, ainda que controverso, vamos continuar a nos socorrer do Judiciário exigindo que o Estado (leia-se: nós, os cidadãos) ou os planos de saúde (leia-se: nós, os demais beneficiários do plano) cubram o custo respectivo? Ou poderíamos pensar melhor e, de uma vez por todas, soterrar o sistema da saúde suplementar, passando, todos nós, a utilizarmos os serviços do SUS e aprimorá-lo, tornando-o, efetivamente, um Sistema Único de Saúde, que a propósito é a sua literal denominação?

Estudiosos já ventilam, inclusive, a possibilidade de se majorar o pagamento dos custos a quem não se cuida, vive de forma sedentária, fuma e se alimenta mal, é obeso e abusa de bebidas alcóolicas ou faz uso de drogas. Estudos que contam com quase unanimidade da comunidade médica elucidam que hipertensão (pressão arterial elevada), hiperlipidemia (excesso de gordura no sangue: colesterol e triglicérides elevados) e hiperglicemia (alta taxa de açúcar no sangue), em sua maior parte, se instalam por conta de maus hábitos. Só com relação ao diabetes, 80% dos pacientes com diabetes tipo 2 (a diabetes que é adquirida, geralmente na meia idade) morrem em decorrência de problemas cardiovasculares (em especial, infartos e AVCs). E 42% dos leitos hospitalares são ocupados por pacientes com complicações causadas pelo diabetes tipo 2. E aqui não vamos adentrar na seara dos problemas ortopédicos, decorrentes de excesso de peso e sedentarismo e também não vamos ventilar alguns estudos que especulam aumento da incidência câncer a quem possui esses hábitos. Fiquemos só no diabetes que, como constatado, já impacta financeiramente os custos da saúde, de forma surpreendente.

O Banco Mundial alerta que 80% dos problemas de saúde podem ser resolvidos na atenção básica, evitando a instalação das doenças. Seria, assim, o caso de se apenarem esses pacientes que foram malcomportados, fazendo incidir aumento nas suas mensalidades do plano de saúde (e nas coparticipações), para não serem suportadas por quem se cuida e, assim, onera menos o sistema de saúde e a coletividade? Onde reside a justiça em tudo isso?

São questões cujas respostas passam por aspectos ideológicos, econômicos, humanitários e, como dito, clamam por reflexão, atuação técnica de profissionais do direito, da saúde, sociólogos e contabilistas. E tudo isso a ser tratado num amplo debate coletivo e efetiva participação da sociedade civil.

Demonizar a própria ANS, ainda que com suas episódicas traquinices normativas e evidente aparelhamento político, assim como os planos de saúde, os médicos, o Poder Judiciário ou os próprios beneficiários não irá resolver o problema, até porque, pelo que tudo indica – e as estatísticas confirmam – todos esses personagens têm alguma culpa no cartório. Alguns mais, outros menos. E há questões cujas respostas não são simplesmente binárias: certo ou errado.

Para concluir, trago sugestão de quatro atuações: (i) comecemos moralizando o sistema, desaparelhando as agências. A condução da ANS deve se dar por técnicos, eleitos pelo próprio corpo interno da agência e não por políticos, o mesmo em se tratando de direção de AMAs e hospitais públicos; (ii) que haja ampla investigação e apenamento aos fraudadores, aqui se incluindo agentes públicos, empresários da indústria farmacêutica e de equipamentos médicos, gestores de planos de saúde, médicos e também consumidores. Já será um enorme passo, talvez o mais importante deles. Polícia, Ministério Público e Judiciário precisam caminhar juntos nisso, com amplo aparato de inteligência investigativa. É uma iniciativa, aliás, que parece se encaixar ao perfil do atual Governo, cujo foco anunciado em campanha é o combate à corrupção. Está aí um bom nicho de atuação, que trará frutos a todos; (iii) que o Poder Judiciário utilize os mecanismos do NAT-JUS, criado por seu Órgão de Cúpula, o CNJ. A concessão de decisões judiciais nesse tema deve ter prévio amparo médico, em evidências científicas consagradas e não com base numa única prescrição médica particular ou em algum estudo isolado, por vezes de credibilidade e independência duvidosas, ainda que o médico do paciente haja com boa-fé, assim como os advogados do paciente, ao buscarem coberturas de tratamento junto ao Poder Judiciário, que foram negadas pelo Estado ou pelo plano de saúde. Por fim, (iv) que tenhamos consciência de que precisamos melhorar os nossos hábitos. Somos, em grande parte, responsáveis pelos problemas de saúde que nos atingem e por seus ônus, incluindo os financeiros, estes também arcados por terceiros, alheios ao nosso convívio e ao nosso mau comportamento.

A iniciativa nesses poucos pontos não tem contraindicação e já deverá trazer um impacto saneador formidável, majorando o acesso à saúde, incluindo a suplementar. Depois, vemos quem tem razão e qual será a modelagem que prevalecerá quanto aos rumos básicos da saúde que desejamos ver implantados no nosso país. A toda evidência, a mera inciativa dessas quatro medidas já será profundamente civilizatória e nos dará, antes de partirmos para discussões mais acaloradas, uma boa sobrevida, inclusive financeira, para a qual estamos todos bastante carentes.

 

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*Gilberto Alonso Júnior é advogado, formado pela Faculdade de Direito da USP, onde se especializou em Direito Empresarial. É sócio do escritório Urbano Vitalino Advogados de São Paulo e Membro da AASP.

 

 

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