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A sucessão na união estável após o julgamento dos embargos de declaração pelo STF: o companheiro não se tornou herdeiro necessário

Não compete à doutrina ou à jurisprudência, regulamentar a união estável a ponto de atribuir-lhe direta e autoritariamente os efeitos da sociedade conjugal, o que implica, na prática, transformar a união estável em casamento contra a vontade dos conviventes.

14/11/2018

Como se sabe, os limites da decisão proferida pelo STF, ao declarar a inconstitucionalidade da diferenciação das regras de concorrência sucessória entre cônjuge e companheiro (CC, art. 1.790), mandando aplicar à união estável o regime da sucessão do cônjuge, tem sido motivo de acerba controvérsia.

Umas das celeumas mais severas refere-se à qualificação (ou não) do companheiro como herdeiro necessário. Na tentativa de espancar o mar de dúvidas que se instaurou na doutrina e na jurisprudência, o IBDFAM opôs embargos de declaração no RE 878.694, onde questionou a aplicabilidade, às uniões estáveis, do art. 1.845 e de outros dispositivos do Código Civil que conformam o regime sucessório dos cônjuges.

No julgamento dos aclaratórios, a Suprema Corte foi expressa e categórica ao aduzir que a repercussão geral reconhecida no acórdão embargado dizia respeito apenas à aplicabilidade do art. 1.829 do CC às uniões estáveis, não existindo qualquer omissão a respeito da aplicabilidade de outros dispositivos a tais casos. Para o ministro Luis Roberto Barroso, “não há que se falar em omissão do acórdão embargado por ausência de manifestação com relação ao art. 1.845 ou qualquer outro dispositivo do CC, pois o objeto da repercussão geral reconhecida não os abrangeu. Não houve discussão a respeito da integração do companheiro ao rol de herdeiros necessários, de forma que inexiste omissão a ser sanada”.

A decisão, com o devido respeito aos que pensam de modo diverso, reforça aquilo que venho sustentando em diversos outros escritos, no sentido de que o STF em momento algum transformou o companheiro em herdeiro necessário. Sustento que pretensão de se estender a designação legitimária do art. 1.845 ao companheiro sobrevivente toma como base um “isonomismo” jamais imaginado quer pelo constituinte de 1988, quer pelo próprio STF.

A decisão prolatada nos embargos de declaração vai ao encontro das minhas manifestações doutrinárias anteriores, na linha de que o companheiro não se tornou herdeiro necessário, pois o STF não se manifestou, em momento algum, sobre a aplicação do art. 1.845 à sucessão da união estável. Os debates travados durante o julgamento me levam a concluir que o STF, não só não quis assegurar esse status ao companheiro, como expressamente ressalvou a prevalência da liberdade do testador, na sucessão da UE. É o que esclarecem, agora, os embargos rejeitados pela Suprema Corte.

Acrescente-se que as leis gozam de presunção de legitimidade e de constitucionalidade. Se o STF não se manifestou sobre o art. 1.845, que exclui o companheiro sobrevivente do elenco de herdeiros necessários, presume-se a sua constitucionalidade. Logo, não se pode, em absoluto, supor ou pressupor a sua inconstitucionalidade, a partir da ratio decidendi dos votos proferidos no acórdão embargado, para fins de afastar a sua vigência. Até que o STF volte a se manifestar sobre o tema, especificamente no que tange ao art. 1.845, a qualidade de herdeiro necessário, no nosso ordenamento jurídico, permanece restrita aos descendentes, aos ascendentes e ao cônjuge. O companheiro, por ora, está fora desse rol.

A qualificação de cônjuge ou de companheiro decorre do atendimento ou não de formalidades ou de exigências exigidas por lei. E o art. 1.845 é nítida norma restritiva de direitos. O direito fundamental à herança não pode ser visto apenas sob a ótica do herdeiro, mas deve se pautar também pelos interesses do autor da herança, pois o exercício da autonomia privada integra o núcleo da dignidade da pessoa humana.

A designação legitimária é dever imposto ao autor da sucessão de reservar parte de seus bens a determinados herdeiros. A norma institui restrição ao livre exercício da autonomia privada, restringe, sem dúvida, a sua liberdade de disposição, constituindo, por isso, exceção no ordenamento jurídico e, conforme as regras ancestrais de hermenêutica, não se pode dar interpretação ampliativa à norma restritiva. Normas restritivas de direitos devem ser interpretadas sempre de forma também restrita. O rol do art. 1.845, portanto, é taxativo! Da mesma forma que só a lei pode retirar qualquer herdeiro daquele elenco, somente a lei pode ampliar o seu conteúdo, não sendo permitido ao intérprete fazê-lo.

A recente decisão do STF mostra-se adequada e consentânea com as aspirações da sociedade. Restringir a liberdade testamentária do autor da herança, no caso da união estável, mostraria um absoluto descompasso com a realidade social, marcada pela interinidade dos vínculos conjugais. Notadamente nas uniões informais, que se formam e se dissolvem mais facilmente que o casamento. Sem falar na insegurança jurídica que resultaria da necessidade de reconhecimento judicial pos mortem da UE, muitas vezes em relação de simultaneamente com um casamento válido, como se dá em grande parte das famílias recompostas.

Em suma, a tutela estatal abrangente das entidades familiares típicas e atípicas não implica plena e completa equiparação da respectiva moldura normativa, posto que em sendo diversas as suas características, imperioso reconhecer a diversidade de regimes legais, sem que se incorra no equívoco da hierarquização. Não existem famílias mais ou menos importantes, mais ou menos reconhecidas, famílias de primeira ou de segunda classe, mas, simplesmente, famílias diferentes, cada qual a seu modo, e, por isso mesmo, mais ou menos reguladas.

A orientação jurisprudencial e doutrinária pelo igualitarismo das entidades familiares resulta em sobreposição à própria liberdade daqueles que optaram pela relação informal, exatamente por não desejarem se submeter ao regime formal do casamento.

Não compete à doutrina ou à jurisprudência, regulamentar a união estável a ponto de atribuir-lhe direta e autoritariamente os efeitos da sociedade conjugal, o que implica, na prática, transformar a união estável em casamento contra a vontade dos conviventes. A regulação infraconstitucional não pode anular a liberdade daqueles que não desejaram se submeter ao regime típico de casamento.

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*Mário Luiz Delgado é doutor em Direito Civil pela USP e mestre em Direito Civil comparado pela PUC-SP. Sócio do escritório MLD – Mário Luiz Delgado Sociedade de Advogados.

 

 

 

 

 

 

 

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