Migalhas de Peso

A desburocratização como promessa eleitoral

Os sinais dados pelos brasileiros no sentido da renovação política são um alerta para a necessidade de dar os saltos exigidos para acabar com situações que não são somente vergonhosas para uma das maiores economias do mundo, mas também são obscenas na sua pior acepção.

13/11/2018

Os anos eleitorais são especialmente importantes para o tema da desburocratização, considerando a perspectiva de sua inclusão cada vez mais representativa nos debates e nos compromissos assumidos pelos eleitos.

Pode-se dizer que em 2018 os desafios para a simplificação da vida do brasileiro atingiram o auge de sua relevância. De fato, independentemente do posicionamento ideológico, todos os candidatos à presidência trataram do tema – específica ou genericamente – no seu plano de governo, assim como tivemos número expressivo de parlamentares eleitos com plataformas centradas em críticas à burocracia e na necessidade de melhorar o ambiente de negócios e a vida das pessoas.

Em eleições marcadas por anseios de mudança contra o sistema político tradicional e a corrupção, que mostraram brasileiros cansados do “mais do mesmo”, isso pode ser perfeitamente entendido.

É que o desgaste ocasionado ao eleitor pela falta de empenho em reduzir a burocracia, aqui entendido como ausência de determinação política (do poder) de combater efetivamente as mazelas que dificultam a vida dos cidadãos – enfrentando de verdade a resistência de corporações e interesses econômicos plantados no status quo – chegou ao seu limite.

Leis e decretos não mudam a realidade por si mesmos, ter a regra não basta sem vontade política de fazer com que ela seja cumprida. Como lembra Daniel Bogéa, desde o regime militar, o único presidente que não expediu decreto sobre a desburocratização foi Itamar Franco (Desburocratização e Cidadania: Um Projeto de Revitalização Democrática), o que não resultou na consolidação de uma agenda permanente, como o Simplex em Portugal, país que está a anos-luz do nosso estágio, apesar de sua tradição cartorial que como a nossa sempre foi usada como desculpa para fazer pouco, fazer lentamente ou fazer nada.

Afora avanços pontuais representativos, não há entregas estruturais que o brasileiro quer e precisa. No fim das contas, o combate à irracionalidade vive de espasmos de voluntarismo dessa ou daquela liderança técnica ou política sem garantia de continuidade.

Em tempos de mudanças tecnológicas cada vez mais rápidas, ainda convivemos com uma luta de anos para transformar propostas em regras e outros muitos para implantação e cumprimento delas, com constante resistência ativa e passiva dentro e fora do Estado.

Estamos há 40 anos para acabar com exigência de reconhecimento de firma. Nos últimos dois anos, foram aprovadas duas leis para tratar novamente disso: a lei 13.460/17, e a lei 13.726/18. O argumento para as novas leis é a necessidade de vincular todos os poderes e estados e municípios, mas alguém duvida que podemos estar no curso de outras décadas até cumprir essa medida?

Além disso, continuamos vendo agendamentos eletrônicos de atendimento, que deveriam servir para melhorar a qualidade e a satisfação do usuário do serviço público, prestando-se somente a transformar a fila física em fila virtual, desmaterializando o escândalo do pouco caso com o cidadão. Servindo para “organizar” a barafunda e tirar a pressão presencial pela solução dos problemas do cidadão, no mais das vezes ligados a ter acesso a recursos para o fundamental direito ao alimento e a demais bens da vida.

E os jornais não cansam de jogar luz a cada dia sobre novos e impensáveis escândalos da burocracia insana: hoje são quilombolas obrigados injustificadamente a tentar conseguir licença para suas roças de subsistência, missão dificílima ou quase impossível; ontem foram produtores agrícolas desesperados por lavouras destruídas tendo que “solicitar” autorização para controle e manejo de javalis; anteontem, a denúncia de que estamos apenas substituindo a burocracia física pela digital com a proliferação de documentos eletrônicos de identificação do cidadão, federais e estaduais, e de aplicativos para serviços de reduzido uso, tudo de forma a multiplicar custos para o cidadão e o Estado.

Há muita resistência. É, como se diz atualmente, um ecossistema de interesses nefastos que trabalha contra a modernização e a racionalização porque elas desmontam esquemas de poder e de corrupção que se alimentam de dificuldades e de favores.

O eleitor, digo o cidadão, não aguenta mais esperar por uma solução consistente, por um caminho que signifique a mais rasa e simples racionalidade: o cidadão é um só e assim deve ser tratado pelo Estado, queiram ou não os donos de bancos de dados, de sinecuras e quejandos.

Com a sociedade mobilizada e agora cobrando o preço da inércia das lideranças políticas nas urnas, ao que parece temos um ambiente mais propício para avançar no essencial e no necessário: fazer da desburocratização uma agenda permanente e prioritária.

Os sinais dados pelos brasileiros no sentido da renovação política são um alerta para a necessidade de dar os saltos exigidos para acabar com situações que não são somente vergonhosas para uma das maiores economias do mundo, mas também são obscenas na sua pior acepção. Não precisamos mais de diagnósticos e de regras, mas sim de ação.

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*José Constantino Bastos Jr. é advogado e ex-secretário nacional de racionalização e simplificação.

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