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Importunação sexual: a tipificação da dignidade da mulher

O novo tipo penal da importunação sexual trazido pela lei 13.718/18 é, sem dúvidas, um grande passo na luta das mulheres pela proteção de seus direitos e suas dignidades.

9/11/2018

No dia 24 de setembro de 2018 sancionou-se a lei 13.718, que vinha tramitando no Congresso Nacional como Projeto de Lei desde 2016, elaborado pela senadora Vanessa Grazziotin. As justificativas por ela apresentadas acerca da revogação da importunação ofensiva ao pudor – antes previsto na lei das Contravenções Penais (decreto-lei 3.688/41), pautaram-se nos abusos sexuais cometidos nos meios de transportes públicos em todo o país, diante da ocorrência de casos repetidos em um curto lapso temporal.1

A nova lei dispõe dos tipos penais de importunação sexual e de divulgação de cena de estupro; torna pública incondicionada a natureza da ação penal dos crimes contra a liberdade sexual e dos crimes sexuais contra vulnerável; estabelece causas de aumento de pena para esses crimes e define como causas de aumento de pena o estupro coletivo e o estupro corretivo.2

O enfoque do presente artigo é a primeira parte da alteração legislativa supracitada. Ao revogar o artigo da lei das Contravenções Penais (decreto-lei 3.688/41) sobre importunar alguém, em lugar público, de modo ofensivo ao pudor, cuja pena era apenas pecuniária, a nova lei tipifica o crime de importunação sexual, que passa a ser aplicado aos casos de abusos cometidos em transporte ou outro ambiente público. O Código Penal passou a dispor, em seu artigo 215-A, o delito de “praticar contra alguém e sem anuência, ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro.”, com reclusão de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave.

Até o momento, não havia previsão legal específica para as condutas praticadas contra a dignidade sexual das vítimas, sendo elas, na maioria esmagadora dos casos, mulheres. Diante das denúncias deste tipo de conduta, sobretudo aquelas praticadas em transportes públicos, nas ruas ou qualquer outro ambiente fora da esfera privada, criou-se uma verdadeira confusão jurídica: a jurisprudência analisava as circunstâncias de cada caso em concreto e se dividia para enquadrar estes atos entre o crime de estupro, previsto no art. 213 do Código Penal, e a importunação ofensiva ao pudor, antes previsto na lei das Contravenções Penais e agora revogado pela lei 13.718/18.

É evidente que, a não criminalização das condutas de cunho sexual que ofendem a dignidade das mulheres nos transportes – e outros ambientes públicos, possui mais de uma causa e, ainda, uma infinidade de consequências. As mulheres, quando deixam de denunciar os assédios sexuais, não o fazem por vergonha ou por receio dos assediadores não serem punidos? Seria pela ausência de instrução de como devem agir em situações de assédio, ou por não possuírem segurança jurídica suficiente para realizar a denúncia? Certamente, uma união de todos estes fatores. Neste cenário, sabe-se que a ausência de denúncia leva à impunidade, causando ainda o aumento do número de episódios e de condutas violentas contra a dignidade sexual das mulheres. Isto tudo influencia diretamente na autodeterminação destas em meio à sociedade e, claro, em suas liberdades de ir e vir nos espaços públicos.

O novo tipo penal da importunação sexual trazido pela lei 13.718/18 é, sem dúvidas, um grande passo na luta das mulheres pela proteção de seus direitos e suas dignidades. Isto porque, embora o texto legal não exija o gênero feminino como sujeito passivo do crime, é sabido que as mulheres são as principais vítimas das condutas de cunho sexual em transportes públicos, por exemplo, por serem estes o meio de locomoção mais utilizado pela população brasileira, principalmente nas grandes metrópoles como São Paulo. Há, portanto, uma concentração considerável de mulheres nestes ambientes que, consequentemente, tornam-se vítimas mais “acessíveis” para aqueles que praticam a importunação sexual. Em uma linguagem um tanto quanto primitiva, pode-se afirmar que as mulheres tornam-se “presas fáceis” para os importunadores dentro dos transportes públicos.

Em matéria publicada em 20/5/16, pela repórter Heloisa Cristaldo da Agência Brasil de Brasília, acerca do transporte público exclusivo para mulheres como uma das políticas públicas necessárias para proteção de suas dignidades sexuais, muito se mostra sobre a realidade do dia-a-dia delas. Entre as formas de assédios sofridos em público pelas brasileiras, a pesquisa mostrou que o assobio é o mais comum (77%), seguido por olhares insistentes (74%), comentários de cunho sexual (57%) e xingamentos (39%). Metade das mulheres entrevistadas no Brasil disse que já foi seguida nas ruas, 44% tiveram seus corpos tocados, 37% disseram que homens se exibiram para elas e 8% foram estupradas em espaços públicos.3

Vale acrescentar, ainda, um dos casos que gerou imensa repercussão na sociedade, bem como no âmbito do Poder Público: um sujeito chamado Diego Ferreira Novais, de 27 anos, que ejaculou em uma mulher dentro de um ônibus no Centro de São Paulo há pouco mais de um ano, em meados de setembro de 2017. Dias depois, o agente, solto, repetiu a conduta contra outra vítima. O caso foi publicado em inúmeros jornais e outros meios de propagação de informação, gerando revolta nas redes sociais e posicionamentos dos movimentos feministas e outras organizações sociais. Este é o exemplo concreto da confusão jurídica citada há pouco.

A polêmica se deu porque o homem, preso em flagrante após o ocorrido, foi solto no dia seguinte após o juiz responsável José Eugenio do Amaral Souza Neto declarar que não se tratava de crime de estupro, mas sim de uma contravenção penal: a Importunação Ofensiva ao Pudor, anteriormente prevista no art. 61 da lei de Contravenções Penais. A decisão do MM. Juiz causou revolta na população, que acompanhou o caso nos noticiários de São Paulo e de todo o país, gerando enorme repercussão nacional. O que a grande maioria das pessoas não entende, é que o juiz somente cumpre seu papel de aplicação da lei, garantindo sua imparcialidade diante do caso por ele julgado, e em respeito aos princípios in dubio pro societate – adotado pelo Código de Processo Penal, e in dubio pro reo – adotado pela Constituição Federal.

Cabia, portanto, aos legisladores encontrarem uma solução concreta para a confusão jurídica acerca do enquadramento das condutas de cunho sexual praticada nas ruas. Ora, ao entrar em vigor, a lei 13.718/18 demonstra a influência da repercussão social e da opinião pública sobre o Poder Legislativo. Não é segredo que o legislador criou o tipo penal da importunação sexual em resposta aos inúmeros episódios que vieram à tona na sociedade brasileira ao longo do último ano, mesmo porque, há muito a insegurança jurídica pairava entre as vítimas de assédio nas ruas, sobretudo diante da impunidade dos agentes que o praticavam.

Posto isso, é certo que a tipificação do crime de importunação sexual tende a diminuir os níveis de impunidade no Brasil, contudo, não se pode afirmar que o problema da violência contra as mulheres, que representam a grande maioria das vítimas deste crime, chegou ao fim. Mesmo porque, trata-se de um fenômeno complexo, envolvendo não só as lacunas legislativas ou a omissão do Estado, como também o problema da discriminação de gênero presente em nossa sociedade.

Por ora, é evidente que o Poder Público ganha um pequeno “fôlego” da população, antes insatisfeita e indignada com sua inércia diante dos inúmeros casos de assédio praticados nos transportes e ambientes públicos. Entretanto, espera-se que daqui para frente os órgãos públicos assumam uma postura mais rígida e eficaz diante das falhas legislativas que se tornarem evidente em nosso ordenamento, a fim de cumprir as demandas da população e cumprir seu papel principal na sociedade, que nada mais é do que a proteção jurídica dos brasileiros.

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1 Projeto de lei 5452/16. Acesso em 21 maio 2018.

 

2 Art. 1º, da lei 13.718, de 24 de setembro de 2018. Acesso em 10 de outubro de 2018.

 

3 BRASIL. Empresa Brasileira de Comunicação. Pesquisa mostra que 86% das mulheres brasileiras sofreram assédio em público. Acesso em: 10 de outubro de 2018.

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*Marina Castilho é advogada criminalista.

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