No último dia 26 de setembro de 2018, na parte da manhã, aconteceu um importante evento no auditório do STJ em Brasília, intitulado "O Agronegócio na Interpretação do STJ".
O auditório estava literalmente lotado de operadores do direito e profissionais do agronegócio, e quem ali não conseguiu lugar se distribuiu nas salas das Seções, que transmitiam as apresentações por vídeo, todos ansiosos para ouvir e refletir sobre a interpretação do Tribunal da Cidadania acerca de temas relevantíssimos ao agronegócio brasileiro.
Excluída a abertura e o encerramento, três painéis compunham a programação do evento: (i) o agronegócio brasileiro no cenário mundial, que não gera controvérsia, vez que o tema é meramente expositivo quanto aos números de tão importante nicho de nossa economia; (ii) o arrendamento rural, que possui farta jurisprudência, mais consolidada na Corte Superior; e (iii) no terceiro painel, a recuperação judicial ("RJ") dos produtores rurais, tema com pouquíssima jurisprudência da Corte Superior e que está fervilhando nas cortes estaduais, notadamente diante do recente período de crise econômica que gerou aumento exponencial dos pedidos de RJ.
Uma das discussões mais controvertidas e com maior destaque no terceiro painel foi a possibilidade do produtor rural, que exerceu atividade rural na condição de pessoa física a vida toda, obter a RJ. Dois aspectos nortearam o debate: (i) a necessidade do registro prévio do produtor rural como empresário na respectiva Junta Comercial Estadual por dois anos; e (ii) a natureza de tal registro, se declaratório ou constitutivo, para definição de quais negócios jurídicos se sujeitariam à respectiva RJ.
O referido terceiro painel foi presidido pela ministra Nancy Andrighi e os palestrantes foram o também ministro Moura Ribeiro e dois advogados, os drs. Antonio Augusto de Souza Coelho e Marcus Vinícius Furtado Coêlho, este último coordenador científico do evento juntamente com os ministros Moura Ribeiro, Luis Felipe Salomão e Paulo de Tarso Sanseverino.
Apesar da louvável iniciativa da corte superior em abrir o seu auditório e disponibilizar o tempo de diversos ministros para acompanhar e debater temas relevantes para o principal setor da economia brasileira, o sentimento ao final do terceiro painel foi de frustação já que, definitivamente, as conclusões dos palestrantes não refletem a interpretação do STJ sobre o tema.
Afinal, sequer há jurisprudência consolidada na corte, como bem destacado no julgamento do REsp 1.684.994/MT sobre a afetação ao rito do repetitivo: "(...) Diante da ausência de precedentes sobre a referida questão de direito e em homenagem ao princípio da segurança jurídica, deve-se aguardar, para fins de afetação ao rito previsto no art. 1.036 e seguintes do Código de Processo Civil, a formação de jurisprudência no Superior Tribunal de Justiça, orientação que vem sendo adotada pela Segunda Seção na afetação e análise de temas repetitivos".
Extrai-se da conclusão transcrita que os ministros do STJ ainda não tiveram a oportunidade de estudar profundamente e ponderar o seu entendimento sobre a matéria, no desenvolvimento de seu valioso dever proteção à legislação federal e uniformização da sua interpretação, que, sem dúvidas, definirão o rumo dos julgamentos nas cortes estaduais. Portanto, sequer é possível falar em "interpretação do STJ" sobre o tema.
Nesta linha, em que pese o respeito e reverência ao entendimento individual apresentado pelo ministro Moura Ribeiro, que defendeu expressamente a possibilidade da recuperação judicial do produtor rural que exerce atividade rural pessoa física e não possui registro na Junta Comercial, tal posicionamento, definitivamente, não representa o entendimento de uma corte colegiada, formada por trinta e três ministros. A fundamentação utilizada pelo ministro Moura Ribeiro em sua apresentação seriam alguns julgados esparsos do Tribunal de Justiça de São Paulo, um voto divergente e vencido da ministra Nancy Andrighi no REsp 1.193.115/MT e um julgamento – que curiosamente tem sentido diametralmente oposto ao defendido por ele, cuja relatoria foi do Ministro Raul Araújo, no REsp 1.478.001/ES.
No entanto, nas oportunidades que tiveram de enfrentar o tema, outros ministros do STJ concluíram que o deferimento da recuperação judicial requer a comprovação documental da qualidade de empresário e do exercício regular da atividade por pelo menos dois anos.
O voto do ministro Sidnei Beneti, relator para o fatídico acórdão do REsp 1.193.115/MT em que a ministra Nancy Andrighi foi voto vencido, reafirma a essencialidade do registro e observância do prazo, que não são "meros formalismos", mas, sim, expressões da função promocional do Direito1:
"O documento substancial comprobatório é exigência legal justificada. O processo de recuperação judicial necessita da formalização documental imediata, pois, caso contrário, estaria franqueado caminho para o ajuizamento sob menor cuidado preparatório, de modo a, nos casos de real configuração da situação de empresário, nele, no processo, vir a enxertar-se fase de comprovação dessa qualidade, com base em dilação probatória, juntada de documentos, perícias e eventualmente prova testemunhal, ensejando recursos e protelações.
Além disso, estaria aberta larga porta para tentativa de inserção, no regime de recuperação judicial, de situações fáticas de negócios nutridos da mais absoluta falta de formalidade comercial, com as notórias consequências do agir à margem da lei".
O ministro Paulo de Tarso Sanseverino concordou, acompanhado pelos ministros João Otávio de Noronha e Ricardo Villas Bôas Cueva:
"(...) A minha preocupação é com a formação de um precedente acerca dessa matéria, que inovaria substancialmente em relação ao quadro atual do Direito Brasileiro. O STJ tem como característica ser um 'tribunal de precedentes'. No momento em que admitíssemos a recuperação judicial de agricultores não inscritos, não registrados, abriríamos um precedente, realmente, enorme, em um País em que a agricultura tem um peso significativo na nossa economia. Deve-se estimular o registro e a regularização das empresas agrárias pelos agricultores brasileiros, como, aliás, é permitido no Código Civil de 2002, de modo, inclusive, a tornar mais profissional essa atividade fundamental para a economia brasileira (...)".
O REsp 1.193.115/MT não foi a única ocasião em que outros ministros do STJ externaram posição diversa daquela defendida pelo ministro Moura Ribeiro no evento de 26 de setembro de 2018. Por exemplo, em decisão monocrática proferida no âmbito da petição 11.460/MT, o ministro Marco Buzzi afirmou que:
"Como é sabido, o agricultor somente será equiparado, para os efeitos legais à figura de empresário, em atendimento às formalidades contidas no art. 968 do Código Civil, se requerer sua inscrição na Junta Comercial. Caso não o faça, por sua livre escolha, estará submetido ao regime jurídico comum do Código Civil e, ainda que exerça atividade rural com proveito econômico, não será considerado empresário (arts. 971 e 984 do CC/02). Repetiu, portanto, o mesmo tratamento anteriormente aplicado aos ruralistas pelo Código Civil de 1916 e pelo Código Comercial de 1850. (...) O empresário rural, cuja inscrição é facultativa, ao optar pelo assentamento de sua atividade junto ao Registro Público de Empresas Mercantis, passa a ser considerado legalmente empresário, alterando a partir deste ato seu status perante o ordenamento jurídico, logo, sua inscrição deve ser considerada como constitutiva e não declaratória, nos termos do Enunciado n.º 202, do Conselho da Justiça Federal, aprovado na III Jornada de Direito Civil ("O registro do empresário ou sociedade rural na Junta Comercial é facultativo e de natureza constitutiva, sujeitando-o ao regime jurídico empresarial"). Por sua vez, o artigo 48, caput, da Lei de Recuperação de Empresas, além de expressamente proibir o instituto da recuperação judicial aos empresários irregulares, fixa um período mínimo para aqueles que exercem regularmente a atividade de fomento econômico possam ter direito à referida benesse. Em face dessas exigências e amparando-se na interpretação sistemática dos referidos normativos, pode-se concluir que estão excluídos de requerer a recuperação judicial os denominados empresários irregulares ou simplesmente produtores rurais, mesmo que desempenhem suas atividades há mais de dois anos, em razão do caráter constitutivo de sua inscrição na Junta Comercial."
Além dos já citados, o tema também gerou manifestação divergente ao que fora defendido no evento pelo ministro Moura Ribeiro, por ocasião do julgamento do REsp 1.578.579/MT (Ministro Lázaro Guimarães), Petição 11.376/MT (Ministro Luís Felipe Salomão), e da medida cautelar 24.468/MT (Ministro Raul Araújo).
O mais curioso é que o próprio ministro Moura Ribeiro, em contradição com o que defendeu ao longo de sua exposição no evento, ignorou um precedente próprio em decisão monocrática do início de 2017 no REsp 1.568.429/MT. Na ocasião o próprio ministro Moura Ribeiro consignou que o registro prévio na Junta Comercial era requisito indispensável para produtores rurais obtivessem recuperação judicial, chegando a afirmar, inclusive, que esse seria o entendimento do STJ.
Diante de tudo isto, seria natural esperar que, num evento intitulado "O Agronegócio na Interpretação do STJ", a sequência da apresentação do ministro Moura Ribeiro fosse uma divergência à sua posição, como verdadeiro contraponto em tema tão complexo e de tamanha relevância ao principal setor da economia brasileira. Porém, surpreendentemente seguiram-se a ele dois advogados que, como excelentes profissionais, fizeram verdadeira sustentação oral, mas também de suas teses em favor da recuperação judicial de produtores rurais pessoas físicas e da natureza declaratória de seus registros.
O dr. Marcus Vinícius Furtado Coêlho iniciou sua palestra com agradecimentos e seguiu dizendo que sua "abordagem é rigorosamente idêntica à efetuada pelo ministro Moura Ribeiro", tratando o referido voto divergente e vencido da ministra Nancy Andrighi sobre a natureza declaratória do registro do produtor na Junta Comercial como um verdadeiro precedente do STJ, o que nos parece precipitado.
Já o ilustre advogado dr. Antonio Augusto de Souza Coelho, que brilhantemente advoga em favor de produtores rurais, apesar de trazer como exemplo na sua apresentação uma das mais relevantes RJs do agronegócio em curso no país, do Grupo Bom Jesus, não trouxe ao conhecimento do grande público o entendimento fundamentado do TJ/MT, neste mesmo caso, pela impossibilidade de extensão do pedido de recuperação judicial aos sócios pessoas físicas, na qualidade de produtores rurais e os fartos fundamentos jurídicos e econômicos que embasam este entendimento.
Ou seja, de forma surpreendente, diversas decisões judiciais das cortes estaduais em desfavor da tese defendida no terceiro painel, os votos vencedores do REsp 1.193.115/MT, pareceres de renomados professores e entendimentos de também renomados advogados foram todos ignorados e sonegados do público presente, de forma arriscada e nada democrática. Infelizmente, repita-se, não houve contraponto algum para reflexão, não sendo possível nas palavras introdutórias do ministro Marco Aurélio Bellizze "conhecer os problemas para poder melhor julgá-los".
Outra incongruência proeminente nos discursos do terceiro painel reside no fato de que o ministro Moura Ribeiro revestiu sua exposição com um tom de preocupação sobre a suposta vulnerabilidade econômica dos produtores rurais, reduzindo-os apenas aos agricultores familiares. No entanto, os dois discursos seguintes deixam claro que o foco da opinião era, na verdade, os interesses dos grandes produtores rurais. Nesse sentido, o último palestrante, o advogado dr. Antonio Augusto de Souza Coelho, trouxe para ilustrar a abordagem o caso da recuperação judicial do Grupo Bom Jesus, um dos maiores produtores de soja e algodão do país, cujo patrimônio bilionário em discussão está longe da realidade do pequeno produtor familiar.
O que se pretende aqui, além de obviamente enaltecer esse tipo de evento institucional, são dois alvos (i) chamar a atenção do importante papel do STJ, também no âmbito de referidos eventos, na defesa do contraditório, no compromisso de trazer à reflexão opiniões democraticamente divergentes e de estimular o diálogo cordial e técnico entre mensageiros de ideias antagônicas - tão esquecido nestes tempos de extrema polarização política - tudo isso em prol do desenvolvimento do país e amadurecimento das instituições; e (ii) trazer, então, o tal contraponto para reflexão, notadamente dos ilustres ministros que emprestaram seu nome para endossar tão cobiçado evento.
Um contraponto
Os defensores da possibilidade de recuperação judicial do produtor rural ("PJ produtor") defendem que a atividade empresarial não se constituiria mediante o registro na Junta Comercial, mas, sim, pelo mero exercício da atividade profissional de forma organizada, recorrente e com finalidade lucrativa. Logo, o registro na Junta Comercial seria uma mera faculdade do produtor rural, com natureza declaratória de uma condição pré-existente.
De outro lado, os credores de tais produtores rurais, por óbvio, não se conformam com a sujeição dos créditos à recuperação judicial, cujos planos comumente estabelecem deságios estrondosos (maiores que 50%), prazos de pagamento extremamente alongados (mais de 10 anos) e remuneração sobre o capital que não corresponde ao praticado em mercado (de 1% a 3% ao ano). Os credores defendem que:
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no Código Comercial de 1850 (artigo 4º), ninguém poderia ser comerciante sem o registro (antes matrícula) na Junta Comercial (antes Tribunais de Comércio). A finalidade de exigir o registro era diferenciar o regime jurídico aplicável àquele indivíduo ou àquela atividade, considerando os benefícios estabelecidos aos comerciantes por aquela legislação (e outras vindouras). Em suma, para fins jurídicos, exercer o comércio (de forma irregular) não era sinônimo de exercer atividade comercial (de forma regular);
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o Código Civil de 2002 optou por uma definição ampla de empresário, excluindo expressamente as atividades que não poderiam assim ser qualificadas (artigo 966, parágrafo único), donde decorre que, para o legislador de 2002, os termos empresa e empresário possuem significado idêntico aos termos comerciante e sociedade comercial do Código Comercial de 1850;
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logo, a despeito das modificações terminológicas, o Código Civil de 2002 manteve o mesmo regime do Código Comercial de 1850: o indivíduo pode exercer atividade sem o registro na Junta Comercial, sendo, para todos os fins, empresário irregular e não sujeito ao regime jurídico do Direito Comercial/Empresarial ou o indivíduo pode registrar a atividade na Junta Comercial, tornando-se empresário regular e se sujeitando ao regime jurídico do Direito Comercial/Empresarial;
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o registro não é mera formalidade que viabilizaria sua natureza declaratória da atividade empresarial, mas, sim, requisito para sua existência, com a finalidade de proteção de terceiros, segurança jurídica e, sobretudo, como expressão da função promocional do Direito. Afinal, num ordenamento promocional — como é o brasileiro —, importam os comportamentos desejáveis, sendo o seu encorajamento medida indireta pela qual o comportamento desejado torna-se mais fácil ou, uma vez realizado, gerador de consequências agradáveis;
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nesse contexto, embora o registro seja uma faculdade concedida pelo legislador ao produtor rural, como tudo, trata-se de uma escolha com consequências (artigo 971 do Código Civil). Se ele optar por se registrar, a partir de então estará inserido no regime jurídico empresarial, colhendo os bônus e ônus dessa condição; por outro lado, se ele optar por não se registrar, sua atividade estará sujeita ao regime jurídico geral (civil) até que ocorra o registro, cujos efeitos são ex nunc.
Em suma, os que negam a possibilidade de se conceder recuperação judicial à PJ produtor entendem que a atividade empresarial somente se constituiria com o registro na Junta Comercial, que possui, portanto, natureza constitutiva e efeitos ex nunc.
Logo, o imbróglio pode ser resumido pela resposta a um simples questionamento: qual a natureza jurídica do registro na Junta Comercial para fins de qualificação da natureza da atividade exercida pelo produtor rural?
Em pesquisa feita na jurisprudência de STJ, TJ/SP, TJ/MT, TJ/RS e TJ/MS2, dos 59 casos julgados, em apenas 19 (32,2%) a recuperação judicial da PJ produtor foi mantida. No STJ, dos 11 casos julgados, apenas dois (18,18%) tiveram a recuperação judicial mantida.
Na estatística atual, a negativa à recuperação judicial também compõe a maioria dos julgados no TJ/MT (90,47%), no TJ/RS (100%) e no TJ/MS (100%). Ou seja, a maior parte da jurisprudência se posiciona contra a recuperação judicial da PJ produtor.
Vale destacar o conteúdo decisório do TJ/MT, um dos mais relevantes estados na produção agropecuária nacional e que, consequentemente, enfrentou a maior parte dos complexos pedidos de RJ. Nas palavras da desembargadora Cleuci Terezinha Chagas Pereira da Silva, "se abrirmos uma frestinha da janela é extremamente temerário, porque os contratos devem ser elaborados diante de uma realidade e essa realidade deve permanecer durante o cumprimento dos contratos. As empresas não podem firmar contratos com pessoas físicas e, no dia seguinte, elas se transformam em pessoas jurídicas e entram com pedido de recuperação"3.
Cite-se, ainda, a ementa de recente acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça da Bahia em outra RJ expressiva do agronegócio, no agravo de instrumento 8003980-71.2018.8.05.0000:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. DEFERIMENTO DO PEDIDO DE PROCESSAMENTO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL. LITISPENDÊNCIA. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA PARA DECIDIR SOBRE A MATÉRIA. NATUREZA CONSTITUTIVA DO REGISTRO DO PRODUTOR RURAL NA JUNTA COMERCIAL. EFICÁCIA EX NUNC. IMPOSSIBILIDADE DE INTERPRETAÇÃO DO ART. 49, CAPUT, DA LEI DE FALÊNCIA, PARA INCLUIR NO PROCESSO DE RECUPERAÇÃO DÍVIDAS CONTRAÍDAS SOB O REGIME JURÍDICO DE DIREITO CIVIL. VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DA BOA-FÉ. ABUSO DE DIREITO. PREJUÍZO AOS CREDORES. QUEBRA DA CONFIANÇA. SUSPENSÃO DAS AÇÕES AJUIZADAS CONTRA TERCEIROS DEVEDORES SOLIDÁRIOS OU COOBRIGADOS EM GERAL, POR GARANTIA CAMBIAL, REAL OU FIDEJUSSÓRIA. VIOLAÇÃO AO ENTENDIMENTO DO STJ. AGRAVO INTERNO. PERDA DE OBJETO.
1. O magistrado de piso incorreu em erro ao deferir o pedido de processamento da recuperação judicial, formulado pelos agravados no processo nº. 8000715-82.2017.8.05.0069, haja vista a existência de litispendência com relação à ação recuperação judicial nº. 0000445-34.2016.805.0069. Ao fazê-lo, usurpou a competência da Terceira Câmara para decidir sobre a matéria, considerando a pendência dos agravos de instrumento nº. 0010899-86.2016.8.05.0000 e nº 0024775-11.2016.805.0000, interpostos por credores dos agravados contra a primeira decisão que deferiu o processamento da recuperação, no processo nº. 0000445-34.2016.805.0069.
2. Para o produtor rural, o registro na Junta Comercial tem natureza constitutiva, e não declaratória, razão pela qual aquele que deixar de realizá-lo não será considerado empresário e permanecerá regido pelas regras do direito civil, sendo-lhe vedada a aplicação dos institutos previstos na Lei de Falência, inclusive a recuperação judicial. Enunciados 201 e 202, da III Jornada de Direito Civil. Precedentes do STJ.
3. Não é possível interpretar o art. 49, caput, da Lei de Falência, de modo a abarcar, em processo de recuperação judicial, as dívidas contraídas pelo produtor rural submetido ao regime jurídico de direito civil, antes de sua inscrição na Junta Comercial como empresário, por se tratar de ato constitutivo, com eficácia ex nunc (prospectiva), o que inviabiliza a produção de efeitos retroativos.
4. Haveria clara violação ao princípio da segurança jurídica se o produtor rural pudesse celebrar contratos e contrair dívidas como pessoa física, para, em seguida, tornar-se empresário individual e buscar a aplicação dos benefícios previstos na Lei de Falência, obstando, assim, as ações individuais de execução ajuizadas por seus credores. Tal conduta atenta contra o princípio da boa-fé e caracteriza abuso de direito, por desvio de finalidade do instituto da recuperação judicial (arts. 187 e 422, do CC/02).
5. A inclusão, em processo de recuperação judicial, de dívidas contraídas pelo produtor rural submetido ao regime de direito civil, é capaz de fragilizar os direitos dos credores, violando as suas justas expectativas, afinal, ao contratar com pessoas naturais, e não com empresários, não poderiam vislumbrar a possibilidade de futura sujeitação de seus créditos a processo de recuperação judicial, fator que, se conhecido, poderia afetar as condições do negócio (a exemplo de garantias e encargos de mora) e até mesmo levar à decisão de não contratar.
6. Conforme a doutrina, a recuperação judicial impõe prejuízos e sacrifícios à sociedade como um todo, motivo pelo qual o Poder Judiciário deve promover uma análise cuidadosa acerca do cabimento e conveniência da medida, antes de deferir o pedido de processamento, o que não foi observado pelo Juízo a quo.
7. De acordo com o entendimento firmado pela Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, sob a sistemática do art. 543-C, do CPC/1973, “a recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das execuções nem induz suspensão ou extinção de ações ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória, pois não se lhes aplicam a suspensão prevista nos arts. 6º, caput, e 52, inciso III, ou a novação a que se refere o art. 59, caput, por força do que dispõe o art. 49, § 1º, todos da Lei n. 11.101/2005" (REsp 1333349/SP).
8. Diante do julgamento colegiado pelo provimento ao agravo de instrumento, resta prejudicado o agravo interno interposto pelos agravados contra a decisão monocrática que deferiu o pedido liminar, por perda de objeto, considerando a substituição do provimento monocrático precário pela decisão colegiada definitiva.
Agravo de instrumento provido. Decisão reformada. Agravo interno prejudicado.
De fato, ponderando os argumentos de ambos os lados, a posição da jurisprudência majoritária é de que a natureza do registro na Junta Comercial é constitutiva para atividade empresarial e a sujeição às normas de Direito Comercial/Empresarial, como a lei 11.101/05.
Seguindo o modelo italiano, o Código Civil de 2002 quebrou a concepção de que a exploração rural não teria caráter comercial e, portanto, estaria excluída da atividade empresarial, possibilitando a inclusão do agricultor na qualificação de empresário4.
No entanto, o legislador de 2002 manteve as mesmas restrições tradicionalmente impostas para que a atividade se tornasse efetivamente empresarial. Por isso, o artigo 971 previu que o produtor rural, mesmo preenchendo os requisitos do artigo 966, somente seria equiparado a empresário a partir do momento em que realizasse o registro na Junta Comercial.
O Enunciado 202 da III Jornada de Direito Civil realizada pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal diferenciou o regime jurídico a que se sujeitam os produtores rurais, utilizando o registro como critério de distinção: "O registro do empresário ou sociedade rural na Junta Comercial é facultativo e de natureza constitutiva, sujeitando-o ao regime jurídico empresarial. É inaplicável esse regime ao empresário ou sociedade rural que não exercer tal opção".
Cassio Cavalli e Luiz Roberto Ayoub são assertivos no sentido de que "o registro do produtor rural possui natureza constitutiva, conforme assentou o Enunciado 202 do Conselho de Justiça Federal, aprovado na III Jornada de Direito Civil (...)”5, de modo que, nas palavras de Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa, "o enquadramento da atividade rural fica condicionada a escolha do empresário, podendo ele optar pelo regime do Direito Civil (empresário civil ou sociedade civil não empresária) ou do Direito Comercial, adotando uma das formas próprias (NCC, arts. 971 e 984)"6.
Para Rachel Stajzn, o registro não é mero formalismo e sua exigência se justifica pelo aspecto promocional do Direito, não devendo ser analisado apenas pela perspectiva do produtor rural, mas, sobretudo, pela ótica de terceiros que com ele interagem. Por isso, para a autora, a intenção do legislador com o artigo 48 da lei 11.101/05 foi estimular ao registro da atividade rural e vedar oportunismo dos agentes econômicos:
O prazo de dois anos de regular exercício da atividade, que se demonstra mediante a apresentação de certidão do Registro Público de Empresa, tem como função evitar oportunismos, isto é, a obtenção de vantagem ou benefício por quem, aventurando-se e assumindo riscos, exerça atividade econômica sem, para tanto, estar devidamente matriculado, na forma do previsto no Código Civil para qualquer empresário, pessoa natural ou jurídica. Pode-se presumir que o prazo mínimo quanto ao exercício regular da atividade tenha que ver com análise empírica da realidade. (...)".7
É inegável que a ausência de pacificação do tema ainda gera insegurança, restringindo e, infelizmente, encarecendo o crédito no setor, o que, em última análise, prejudica os produtores rurais, inclusive aqueles que conseguiram, com competência e boa gestão, sobreviver à crise.
A expectativa e esperança do setor é que, em breve, ponderando adequadamente os dois lados da moeda, o STJ se posicione de forma definitiva sobre a RJ do produtor rural, orientando, definitivamente, o julgamento dos tribunais estaduais e suas comarcas sobre o tema.
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1 STJ, REsp 1.193.115/MT, rel. Min. Nancy Andrighi, rel. p/ acórdão Min. Sidnei Beneti, 3ª Turma, DJe 7/10/2013.
2 Pesquisa utilizando os seguintes argumentos: “recuperação judicial produtor rural registro”; “recuperação judicial produtor rural inscrição”; “recuperação judicial empresário rural registro”; e “recuperação judicial empresário rural inscrição”.
3 Ag 0100923-66.2014.8.11.0000, 3ª Câmara de Direito Privado, TJ-MT.
4 W. Bulgarelli, A teoria jurídica da empresa: análise jurídica da empresarialidade. Tese (Titularidade), Faculdade de Direito da USP, São Paulo, 1984, pp. 428-429.
5 AYOUB, Luiz Roberto. CAVALLI, Cassio. A construção jurisprudencial da recuperação judicial de empresas, ed. Forense. Rio de Janeiro, p. 32/33.
6 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de Direito Comercial. Vol. 1, 2ª edição, São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 208.
7 Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência, coordenadores Francisco Sátiro de Souza Júnior e Antônio Sérgio A. de Moraes itombo, 2ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 224-225
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