As audiências de custódia definitivamente significam um avanço na diminuição de prisões provisórias e consequentemente no número de pessoas ilegalmente presas no caótico sistema prisional brasileiro.
A implementação das audiências de custódia está prevista em pactos e tratados internacionais assinados pelo Brasil, como o pacto internacional de direitos civis e políticos e a convenção interamericana de direitos humanos, conhecida como pacto de San Jose da Costa Rica.
A partir de fevereiro de 2015, o Conselho Nacional de Justiça, em parceria com o Ministério da Justiça e os Tribunais de Justiça, lançou o projeto audiência de custódia, que consiste na garantia da rápida apresentação do preso a um juiz nos casos de prisões em flagrante, a fim de controlar a legalidade e a necessidade da prisão, bem como de resguardar a integridade física e psíquica do detido.
O site do CNJ informa que no Brasil até junho/17, foram realizadas 258.485 audiências de custódia, sendo que resultaram em liberdade 115.497 (44,68%), casos que resultaram em prisão preventiva: 142.988 (55,32%). Houve alegação de violência no ato da prisão em 12.665 (4,90%) e foi feito encaminhamento social/assistencial: 27.669 (10,70%).
Durante a audiência, o juiz analisa a prisão sob o aspecto da legalidade, da necessidade e da adequação da continuidade da prisão ou da eventual concessão de liberdade provisória, com ou sem a imposição de medidas cautelares diversas da prisão. O juiz poderá avaliar também eventuais ocorrências de ilegalidades, como tortura ou coação, entre outras irregularidades.
Obviamente é um instituto recente e que precisa de aprimoramento, não só pela necessária previsão no CPP como pelos próprios operadores do direito.
Em regra, o procedimento previsto pelos Tribunais de Justiça é o seguinte:
a) A autoridade policial providenciará a apresentação da pessoa detida, em até 24 horas após a sua prisão, ao juiz competente para presidir a audiência de custódia, devendo ser encaminhado o auto de prisão em flagrante, oportunidade em que será juntada a sua folha de antecedentes penais.
b) O preso, antes da audiência de custódia, poderá ter contato prévio, reservado e por tempo razoável com seu advogado ou com o defensor público.
c) Iniciada a audiência, o juiz ouvirá o preso acerca de sua qualificação, condições pessoais, tais como estado civil, nível de escolaridade, profissão ou meio de vida, fontes de renda, local de residência e de trabalho.
d) Depois de devidamente qualificado e informado pelo juiz do seu direito de permanecer calado, o preso será ouvido sobre as circunstâncias objetivas da sua prisão. Após proceder à oitiva, o juiz indagará do Ministério Público e da Defesa, se restou algum fato para ser esclarecido, formulando as perguntas correspondentes se entender pertinente e relevante. O juiz não admitirá perguntas que antecipem a instrução própria de eventual processo de conhecimento.
e) Ao término da audiência de custódia, o juiz dará a palavra ao Ministério Público e à defesa, e proferirá decisão nos termos do art 310 CPP, atentando para as possibilidades de substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar, conforme os termos do art. 318, e de deferimento das medidas cautelares alternativas, previstas no art. 319 CPP.
f) O juiz, com base nas informações colhidas na audiência de custódia, poderá determinar o encaminhamento do preso, mediante ofício, ao instituto médico legal – IML para a realização de exame de corpo de delito complementar e, se for o caso, oficiar à corregedoria da polícia civil ou militar e ao Ministério Público para a apuração de eventuais abusos ocorridos no momento da prisão.
g) De todo o ocorrido na audiência de custódia será lavrada ata circunstanciada, que conterá o inteiro teor da decisão proferida pelo juiz e a assinatura dos presentes.
Verifica-se que o objetivo da audiência é verificar a legalidade e necessidade da prisão, cabendo ao juiz relaxar a prisão ilegal. Nesse ponto, cabe observar fato cotidiano que sistematicamente ocorre nas audiências de todo o país e que por desconhecimento, comodidade ou lapso dos operadores do direito presentes, não é corrigido: o uso injustificado de algemas.
A súmula vinculante 11 do STF, prevê que: só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.
Evidente que se tratando das hipóteses excepcionais descritas na súmula: resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, devidamente justificada por escrito, não há que se falar em ilegalidade.
Entretanto, o que se observa sistematicamente é o uso de algemas em situações que definitivamente não se encaixam na descrita pela súmula e que sequer há uma justificativa para tanto.
Ora, o que justificaria o uso de algemas em casos de prisão pela prática de crimes sem violência, como furto, estelionato, embriaguez ao volante e drogas? E até mesmo de crimes passionais e de violência doméstica, em que passado o momento do fato, os envolvidos se acalmam, "recuperam-se" de eventual embriaguez ou alteração comportamental e, na grande maioria das vezes, se apresentam na audiência apáticos e até aparentemente arrependidos.
Nesses casos, muitos envolvendo pessoas primárias e sem antecedentes criminais, não se justifica o uso das algemas, cabendo ao defensor impugnar o uso indevido e uma vez não apresentada a justificativa por escrito, requerer o relaxamento da prisão.
Importante observar ainda que em inúmeras audiências, o uso das algemas sequer é mencionado pelo juiz ou defensor, ainda que conste expressamente nas atas de audiência (na tão corriqueira quanto odiosa prática do recorta e cola), o que obviamente traz prejuízos ao preso e impede futuras impugnações quanto à legalidade da prisão por conta de eventual preclusão.
Para aqueles que se perguntam: qual o prejuízo sofrido pelo preso por estar algemado? A resposta pode ser encontrada nos fundamentos do voto do ministro Marco Aurélio (STF HC 91.952): deve ser levado em conta o princípio da inocência. Ainda que presa, toda pessoa merece o tratamento devido aos humanos, aos que vivem em um Estado democrático de direito. E estes preceitos, por configurarem garantias dos brasileiros e dos estrangeiros residentes no país, repousam no inafastável tratamento humanitário do cidadão, na necessidade de lhe ser preservada a dignidade. Manter o acusado em audiência, com algema, sem que demonstrada, ante práticas anteriores, a periculosidade, significa colocar a defesa, antecipadamente, em patamar inferior, não bastasse a situação de todo degradante.
Assim, em homenagem aos princípios constitucionais da inocência e da ampla defesa, bem como pela dignidade da pessoa humana e da vedação de tratamento degradante, a inobservância da súmula gera prejuízo ao preso e deve ser consignada em ata para evitar qualquer alegação de preclusão.
É fato que o juiz pode relaxar a prisão e em seguida decretar a prisão preventiva, mas cabe aos operadores do direito zelar pela observância dos direitos individuais e em especial esta súmula, tão importante e cara ao exercício da defesa.
Ademais, só a impugnação reiterada do uso ilegal das algemas fará com que o procedimento correto seja implementado e a exceção arbitrária não se torne a regra.
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*Fernanda Maria Alves Gomes é mestre em Direito pela UFPe e professora de Direito.