Migalhas de Peso

O novo delito de importunação sexual: um avanço relativo

A prática de ato libidinoso contra alguém, havendo ou não violência ou grave ameaça, tipifica o novo delito de importunação sexual, de modo que as penas de reclusão de um a cinco anos alcançarão o agente independentemente do modus operandi e da idade da vítima.

2/10/2018

Publicada no dia 25 de setembro de 2018, a lei 13.718 alterou dispositivos do Código Penal brasileiro referentes aos delitos contra a dignidade sexual. Pouco mais de nove anos após contundente modificação no bojo dos delitos dessa natureza – à época, denominados crimes contra os costumes –, o legislador, ao que parece, influenciado novamente pelos "gestores atípicos da moral"1 – se para o bem ou para o mal, só o tempo dirá – e em razão disso, agindo açodadamente, tentou construir uma via adequada para que o judiciário, em última instância, pudesse resolver de maneira mais adequada problemas que vêm afligindo a sociedade de maneira crescente, oriundos de práticas de cunho libidinoso levadas a efeito por pessoas acometidas de alguma espécie de distúrbio mental. Afinal de contas, muitos se recordam dos casos ocorridos recentemente (2017 e 2018), de indivíduos que, no interior do ônibus, esfregavam o pênis e/ou se masturbavam e ejaculavam sobre os passageiros.

 

Casos como os supracitados, juridicamente, acabavam encontrando as seguintes soluções: a) eram considerados delitos de estupro (CP, art. 213 ou 217-A); b) configuravam apenas a contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor (LCP, art. 61); c) eventualmente, caracterizam o delito de constrangimento ilegal (CP, art. 146); d) não constituíam infração penal, ou seja, o fato era considerado atípico. Logo, inexistia uma subsunção precisa para as situações em testilha e seus similares.

 

De acordo com o novel art. 215-A, configura o delito de importunação sexual a conduta de "praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro", para a qual o legislador previu pena de reclusão, de um a cinco anos, desde que o fato não constitua crime mais grave.

 

Sob o ponto de vista teórico, a nova tipificação abarca uma considerável série de condutas do mundo fenomênico que antes poderiam ser enquadradas, juridicamente, como delito de estupro ou contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor, a qual, aliás, foi expressamente revogada, nos termos do art. 3º, inc. II, da lei 13.718/18. Houve aqui, de fato, abolitio criminis. E não se diga que ocorreu continuidade normativo-típica, tal como se deu no caso do delito de atentado violento ao pudor em relação ao delito de estupro2, pois incorreu migração de seu conteúdo para o tipo penal em comento3.

 

É perceptível um avanço importante na legislação penal sexual com o advento do delito de importunação sexual. Determinadas condutas, que outrora ensejariam apenas a reprimenda pecuniária, passarão a infligir ao seu autor pena de reclusão, de um a cinco anos. Criou-se, assim, um delito de mediano potencial ofensivo. Este pode ser entendido como um avanço em atenção ao princípio da proporcionalidade, na medida em que o legislador estabeleceu para esses comportamentos uma pena intermediária entre o delito de estupro e à (revogada) contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor.

 

Ocorre, porém, que o mesmo legislador pecou ao não atentar à regra oriunda do princípio da legalidade, na sua vertente da taxatividade, quando inseriu no tipo a expressão "praticar contra", observando a racionalidade legislativa dos delitos contra a dignidade sexual que, costumeiramente, utilizam a palavra "com". Isto, por si só, ensejará entendimentos distintos no tocante ao direcionamento do ato libidinoso cometido, ou seja, se o mesmo deverá ou não recair sobre o corpo da vítima; se haverá ou não exigência de que ela adote uma postura passiva ou ativa; se o contato físico entre autor e vítima será imprescindível ou não.

 

Além disso, o legislador não fez constar do tipo os meios executórios para se importunar sexualmente alguém. O fato de o agente praticar ato libidinoso contra a vítima "sem a sua anuência" traz à baila dúvidas se o constrangimento causado com a conduta deve ou não vir acompanhado ao menos de grave ameaça, que em conjunto com a violência constituem elementos fundamentais ao desenvolvimento de parâmetros proporcionais de graduação da pena em função do meio executório menos ou mais gravoso utilizado no caso concreto. A elementar "sem a sua anuência", indicativo, em princípio, de que se trata de delito cuja conduta assume a forma livre, servirá, isto sim, para afastar a tipicidade nas hipóteses em que o sujeito passivo concordar com o ato sexual praticado pelo agente.

 

Inobstante tais questões, o mais grave da criação do delito de importunação sexual é que o legislador teve mais uma oportunidade4 de colmatar o vácuo jurídico existente entre as condutas conformadoras do delito de estupro ou da contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor – revogada, repise-se, pelo delito de importunação sexual. Na verdade, mais que isso: o legislador não teve a ousadia (ou a coragem, quem sabe) de enfrentar essa questão de conformidade com os ditames dos princípios penais constitucionais.

 

Em outras palavras, o legislador ignorou o princípio da taxatividade e agiu irracionalmente (sob o ponto de vista da técnica jurídica) ao não delimitar o alcance dos delitos contra a dignidade sexual em tela – estupro e importunação sexual –, haja vista ele não ter reservado ao delito mais grave (estupro) as categorias de atos libidinosos inspiradoras de maior juízo de reprovação. Em razão disso, permitiu que a reprovabilidade penal imputada à conjunção carnal prossiga sendo equiparada, muitas vezes, a qualquer outro ato libidinoso que possa vir a ostentar reprovabilidade social sensivelmente inferior. E, como consequência, ignorou o princípio da proporcionalidade ao também permitir a aplicação das mesmas penas a casos que ensejam reprovações diametralmente opostas.

 

O que igualmente causa consternação é que o legislador poderia ter se apropriado dos tipos penais já delineados no anteprojeto de Código Penal brasileiro – projeto de lei do senado, 236, de 2012, e não o fez. Nele estão previstas três condutas típicas, contendo, cada qual, três ações nucleares distintas, que implicam a tipificação de três diferentes delitos, a saber: a) estupro – prática de ato vaginal, anal ou oral; b) manipulação e introdução sexual de objetos – introdução de objetos nas vias vaginal ou anal; c) molestamento sexual – prática de ato sexual diverso do estupro vaginal, anal e oral.

 

Destarte, o projeto 236/12 propõe a manutenção do delito de estupro, restringindo, contudo, a esse universo típico somente os atos sexuais vaginais, anais ou orais, considerados pelo legislador como os mais graves atentados à dignidade sexual do ser humano. Com isso, afasta da subsunção ao referido tipo penal os atos sexuais mais brandos, menos reprováveis, mas que, por se tratarem igualmente de atos libidinosos, justificam a intervenção do direito penal, ainda que de maneira menos intensa em relação àqueles casos5. E para tanto, tipificou o crime de molestamento sexual.

 

De acordo com o referido projeto, o delito de molestamento sexual tem a seguinte redação:

 

Ar. 182. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou se aproveitando de situação que dificulte a defesa da vítima, à prática de ato libidinoso diverso do estupro vaginal, anal e oral: pena – prisão, de dois a seis anos.

 

A proposta vem ao encontro da racionalidade legislativa no tocante aos princípios penais constitucionais da taxatividade e da proporcionalidade, porquanto o legislador faz a cisão das condutas libidinosas e, em cada caso, preceitua uma reprovação penal específica de maneira balanceada com a gravidade de cada tipo de injusto e com vistas ao delito com o colorido jurídico mais grave, ou seja, o estupro.

 

Tem-se com isso, que a prática de ato libidinoso contra alguém, havendo ou não violência ou grave ameaça, tipifica o novo delito de importunação sexual, de modo que as penas de reclusão de um a cinco anos alcançarão o agente independentemente do modus operandi e da idade da vítima. Por se tratar de um delito expressamente subsidiário, nos termos de seu preceito secundário, somente permitirão a subsunção ao delito de estupro (simples ou de vulnerável) aquelas condutas consideradas mais graves, as quais devem partir da conjunção carnal, fixada como fórmula casuística nos tipos dos arts. 213 e 217-A, respeitando-se uma interpretação analógica das normas penais em vigor.

 

Importante reiterar, que a prática dos demais atos libidinosos diversos da conjunção carnal e seus similares de mesmo grau de lesividade (coito anal ou oral), mesmo que praticados com pessoa menor de 14 anos não devem implicar na tipificação do artigo 217-A, pelo fato de este tipo penal – a exemplo do delito de estupro, no art. 213 – apresentar característica aberta, reveladora de imprecisão e insegurança jurídicas. Entendimento diverso caminha de encontro aos princípios da taxatividade e proporcionalidade, de modo que não devem ser admitidos por um direito penal alinhavado com o Estado social e democrático de direito.

 

Pode-se pensar em uma série de casos concretos que, longe da subsunção típica ao delito de estupro, passam a configurar o novo delito de importunação sexual, além dos já citados, tais como: agente que esfrega seu órgão genital nas nádegas ou na genitália da vítima; agente que faz carícias nas partes íntimas da vítima; agente que desnuda a vítima; agente que faz a vítima sentar em seu colo, acariciando suas zonas erógenas; etc.

 

Evidentemente que muitas contribuições haverão de pulular no cenário jurídico acerca das interpretações em torno dos delitos sexuais, agora com novos contornos legais. Tomara que o legislativo e o judiciário passem a se entender e comunicar melhor, para o bem de todos!

__________

1 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La expansión del derecho penal. 2. ed. Madrid: Civitas, 2001, p. 67.

 

2 No caso, "houve fusão daquelas duas condutas até então previstas em dispositivos penais distintos". MARTINS, José Renato. O delito de estupro após o advento da lei 12.015/09: questões controvertidas em face das garantias constitucionais. Anais do X Simpósio de direito constitucional da ABDConst. Curitiba: ABDConst, 2013, p. 30.

 

3 A importunação consiste em incomodar, molestar alguém, de maneira consistente ou persistente, por meio de pedidos inoportunos, desagradáveis, causando-lhe aborrecimento e/ou desconforto. O delito de importunação sexual tem como ação nuclear "praticar", isto é, levar a efeito, realizar, pôr em prática, exercitar alguma coisa, sendo tais ações, portanto, distintas entre si. Além disso, a contravenção continha um elemento normativo, de modo que a importunação deveria apresentar uma característica própria: ser ofensiva ao pudor. De modo diverso, o novo delito contém um elemento interno, ausente no primeiro, sem o qual o fato se torna atípico.

 

4 Levando-se em consideração as grandes Reformas dos Delitos Sexuais promovidas no Código Penal brasileiro, a primeira oportunidade ocorreu em 2005, com a lei 11.106 e a segunda, em 2009, com a lei 12.015.

 

5 MARTINS, José Renato. O delito de estupro no Código Penal brasileiro: questões controvertidas em face dos princípios constitucionais e a proposta desse delito no Novo Código Penal. Revista eletrônica da faculdade de direito de franca, v. 10, n. 1, 2015, pp. 124.

__________

*José Renato Martins é advogado e sócio do escritório Sucasas Tozadori Alves Advogados.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

ITBI na integralização de bens imóveis e sua importância para o planejamento patrimonial

19/11/2024

Cláusulas restritivas nas doações de imóveis

19/11/2024

A relativização do princípio da legalidade tributária na temática da sub-rogação no Funrural – ADIn 4395

19/11/2024

Transtornos de comportamento e déficit de atenção em crianças

17/11/2024

Prisão preventiva, duração razoável do processo e alguns cenários

18/11/2024