Desde então, muitas dúvidas e discussões doutrinárias persistem e as discussões judiciais vem se avolumando. Dentre outras, aquela mais polêmica é a que trata a "teoria das incapacidades". Com efeito, com o advento do estatuto, a regra é que a deficiência mental não afeta a capacidade civil da pessoa e, sendo assim, o deficiente é considerado capaz para celebrar contratos, casar, propor ação nos juizados especiais, etc.
Consequentemente, ao excluir os deficientes do rol de pessoas absolutamente incapazes (art. 3° do CC, com redação alterada pela LBI), a aplicação dos institutos assistenciais e protetivos, como o da curatela e o da tomada de decisão apoiada, passam a ser aplicados apenas em casos excepcionais, sendo restritos apenas aos atos negociais e patrimoniais, resguardando os demais direitos das pessoas com deficiência, como votar, trabalhar e casar (arts. 6°, 84 e 85 da LBI)
De fato, com as alterações realizadas pela lei de inclusão, as pessoas referidas no art. 1.767 do Código Civil (sujeitas à curatela) não são mais declaradas ineptas a todos os atos da vida civil, e, portanto, não mais poderão ser nomeados curadores para geri-las por inteiro. Assim, sem respaldo na lei material, fica sem sentido e cai por terra as disposições dos artigos 747 e seguintes do CPC, que dispõe sobre a ação de interdição.
Com efeito, o estatuto traz como institutos assistenciais e protetivos apenas a tomada de decisão apoiada e a curatela, determinando como requisito para a instituição desta última a comprovação2 de deficiência ou doença mental grave que coloque o deficiente em estado de vulnerabilidade perante terceiros.
A tomada de decisão apoiada, que inexistia no ordenamento jurídico brasileiro, foi criada pelo art. 116 da lei de inclusão e deve ser observada quando a pessoa é portadora de transtornos mentais brandos, ou seja, quando a deficiência ou doença não afeta completamente o seu discernimento. Diferente das intervenções conhecidas até então, a tomada de decisão apoiada não restringe o exercício de direito do deficiente, tratando-se apenas de uma salvaguarda para situações pontuais, principalmente em casos que necessite contratar, negociar ou acordar com terceiros3.
Em outras palavras, sem abrir mão de seus poderes e capacidades, a pessoa com deficiência mental, conhecendo e tendo clareza da sua doença, poderá indicar duas pessoas de sua confiança para orientá-la e acompanhá-la na realização de atos da vida civil, de modo que auxiliem na tomada de decisões em que a sua situação de hipossuficiência pudesse prejudicá-la, possibilitando, assim, que exerça plenamente a sua capacidade.
A prerrogativa do pedido para instituição da tomada de decisão apoiada é personalíssima da pessoa com deficiência, ou seja, apenas ela pode solicitar esse apoio ao judiciário. Postulado o pedido, o juiz, com o auxílio da equipe multidisciplinar, irá avaliar não apenas a pertinência do pedido como a qualidade dos indicados a assumirem a responsabilidade4.
Já a curatela, imposta em situações extraordinárias, é restrita apenas àquelas pessoas com deficiência ou doença mental grave, e, assim, por incapacidade permanente ou transitória que afete a sua manifestação da vontade, necessita que um terceiro administre seu patrimônio e seus negócios, perdendo relativamente a sua capacidade para tanto.
Neste quesito, importante ressaltar que, além de a curatela afetar tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial (art. 85 LBI), é necessário um laudo elaborado por equipe multiprofissional e interdisciplinar demonstrando a ausência de discernimento. Além disso, ressalta-se que a lei de inclusão proíbe que a curatela alcance os direitos civis relativos ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto (art. 6º e art. 85, §1º da LBI).
Por ser medida extraordinária, deverá constar na sentença que determinar a instituição da curatela as razões e motivações de sua definição, preservando os interesses do curatelado. Ainda, ao nomear curador, o juiz deverá dar preferência a pessoa que tenha vinculo de natureza familiar, afetiva ou comunitária com o curatelado.
Outra importante inovação realizada pela lei de inclusão é a implementação da possibilidade de o juiz nomear mais de uma pessoa como curador, possibilitando, assim, a curadoria compartilhada. (art. 1.775-A do Código Civil)
Como exposto, embora a LBI tenha acabado com a interdição "total" das pessoas com transtorno mental, ainda existem procedimentos necessários para apoiar as pessoas que possam ser vulneráveis, hipossuficientes em questões patrimoniais. E, uma vez que o CPC/15 entrou em vigor após a lei de inclusão (apesar de ter sido aprovado antes), não há procedimento para a nomeação de curador ou de apoiador aos deficientes.
Dessa forma, não há como negar que a "interdição completa", bem como o curador com poderes indefinidos, gerais e ilimitados, não mais existem em nosso ordenamento jurídico. Por óbvio que o procedimento de interdição permanece, contudo sob outra e nova perspectiva, desta feita limitada aos atos de conteúdo econômico ou patrimonial.
A lei como está, necessita ser alterada e há projeto de lei em tramite (757/15), cujo objetivo é ajustar os pontos controversos que ficaram na legislação brasileira após o "atropelamento legislativo" que ela causou. Porém, até que o projeto vingue, as questões relativas a capacidade civil das pessoas devem ser regidas pelo citado estatuto, com a concorrência do bom senso a ser empreendido pelos advogados e julgadores caso a caso, a fim de a lei não se voltar contra àqueles que deveriam proteger, ou seja, os deficientes mentais em graus de discernimento diversos.
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2 De acordo com o art. 2°, §1° da LBI, a avaliação da deficiência será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional
3 FILHO, Waldir Macieira da Costa. Do Reconhecimento Igual perante a Lei in LEITE, Flávia Piva Almeida; RIBEIRO, Lauro Luiz Gomes Ribeiro; FILHO, Waldir Macieira da Costa (Coord.). Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 371
4 Ibidem. p. 372
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