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Redirecionamento da execução fiscal: do atropelo processual à inconstitucionalidade.

Constata-se a existência de julgados disseminados por todo o país que optam pelo incidente de desconsideração da personalidade jurídica e outros que optam pelo redirecionamento da execução fiscal, a instabilidade fere, sobretudo, o princípio da segurança jurídica.

3/9/2018

Ajuizada a execução fiscal, a contenda entre as partes será formada da seguinte maneira: no polo ativo estão os entes públicos tributantes propriamente ditos, que, segundo a Constituição Federal, são a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. No polo passivo está o contribuinte ou responsável pelo pagamento do tributo ou da penalidade pecuniária em questão, em conformidade com o artigo 121, incisos I e II do Código Tributário Nacional. Vejamos:

Art. 121. Sujeito passivo da obrigação principal é a pessoa obrigada ao pagamento de tributo ou penalidade pecuniária.

Parágrafo único. O sujeito passivo da obrigação principal diz-se:

I - contribuinte, quando tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador;

II - responsável, quando, sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei.

O contribuinte é a pessoa, seja ela física ou jurídica, que tem relação direta com o fato gerador, ou seja, o pratica. O responsável tributário, por sua vez, se define como sujeito passivo indireto da obrigação tributária, isto é, não incorre diretamente na conduta do fato gerador, mas, como visto no artigo supracitado, é, de igual maneira, obrigado a responder pelo tributo. Surge então a responsabilidade dos gerentes, administradores e dos representantes das pessoas jurídicas de direito privado. Como se observa na redação do artigo 135, inciso III, do Código Tributário Nacional:

Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:

(...)

III - os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.

O instituto da responsabilização neste caso tem por objetivo garantir o adimplemento das obrigações tributárias, indicando que em atos praticados com excesso de poderes ou infração à lei, contrato social ou estatuto, o sujeito não venha se eximir da obrigação tributária, na qualidade de devedor indireto, tendo em vista que há, sem dúvidas, influência direta do Administrador na má administração da empresa e, especialmente, na administração de má fé. O legislador preocupou-se com que o responsável não se evada de realizar o pagamento do tributo devido, se valendo da empresa para tanto. Com isso, vislumbra-se a proteção aos interesses da pessoa jurídica, responsabilizando-se a pessoa física imputada no rol do art. 135, III do CTN.

Ressalta-se que a hipótese de responsabilidade pessoal do agente demanda a existência de dolo específico para ser identificada, conforme predileção acentuada no artigo 137, inciso III, alínea C do CTN, sendo assim, a conduta constante no tipo deve ser praticada conscientemente. Neste sentido, somente quando verificada a presença inequívoca das condutas do tipo, deverá a autoridade judicante imputar ao agente o ônus tributário, haja vista a gravidade de tal ato.

O que se discute, na realidade, é tão somente a forma com a qual essa responsabilidade é imputada. Urge a necessidade de cautela, pois o instituto da responsabilização tributária, se mal utilizado, pode ser instrumento de disseminação de injustos através de indevidas imputações que objetivam, apenas, atribuir a terceiro a conta de insolvência de determinada empresa. É o que observamos no seguinte julgado:

"PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. RESPONSABILIDADE DO SÓCIO. REDIRECIONAMENTO INDEVIDO DA EXECUÇÃO FISCAL. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. REEXAME NECESSÁRIO E RECURSO DE APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDOS.1. Houve arbitrariedade na inclusão do embargante no pólo passivo da execução, bem como na constrição de seus bens pessoais. Embora seja pacífico em nossas Cortes que a execução fiscal inicialmente ajuizada contra a pessoa jurídica pode ser redirecionada à pessoa dos sócios, há limites a serem observados, que a sociedade tenha sido dissolvida irregularmente e que os sócios-diretores, com poderes de gerência ou representação, tenham agido com excesso de poderes, infração de lei ou contrato social(...)." TRF-3 - APELAÇÃO CIVEL AC 83559 SP 92.03.083559-8 (TRF-3)1

Sendo a responsabilidade do sócio gestor, gerente ou administrador, percebe-se que o uso de uma cognição sumária precipitada ensejou a inclusão do terceiro no polo passivo da execução que, em seguida, veio a ser desconstituída em instância superior. Julgados como este se proliferam em todo judiciário nacional. Em função disso, devemos iniciar a discussão acerca do denominado redirecionamento da execução fiscal, instrumento largamente utilizado pelo Fisco.

O redirecionamento da execução fiscal se dá na seguinte forma: no decorrer da execução fiscal o Fisco apresenta um requerimento apontando a existência de indícios de atos praticados com excesso de poder, eivados por infrações legais ou societárias. Em seguida, o julgador irá deferir ou não o requerimento. Em sendo favorável ao pleito do Fisco, a decisão diligentemente determinará a inclusão do terceiro no polo passivo da lide em andamento. É justamente a partir desse ponto que começam as irregularidades, tendo em vista que o terceiro, incluído na execução fiscal, poderá vir a sofrer eventuais constrições patrimoniais sem ao menos ter oferecido defesa prévia.

É nítida a existência de uma decisão acobertada por uma cognição não exauriente, portanto sumária, que traz efeitos concretos na esfera pessoal do indivíduo incluído no polo passivo da ação em andamento. A nosso ver, subsiste, portanto, uma tutela provisória velada, inobservante ao regramento processual atual e que sequer atende à legalidade, porquanto não preenche seus requisitos mínimos. Faz-se mister relatar que esta invasão viola o caput do art. 5º da Constituição Federal e fere o direito protecionista à propriedade privada, ignorando requisitos legais fundamentais. Fato é que não há direito de resposta prévia por parte do terceiro à sua inclusão no polo passivo, restando suprimida a dialética processual e, de igual maneira, são rechaçados os princípios do contraditório e da ampla defesa, amparados no art. 5º inciso LV de nossa Carta Magna.

Habitualmente utilizado pelo Fisco em sede de execuções fiscais, o redirecionamento passou a ser largamente contestado com o advento do Código de Processo Civil de 2015, que regulamentou o Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica, adequando-o a toda uma instrumentalização normativa constitucional e processual garantista. Trazendo assim uma alternativa ao procedimento anterior de redirecionamento, de modo a viabilizar e atender o melhor interesse do ordenamento jurídico atual. Assim dispôs nosso diploma processual civil:

Art. 134. O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial.

Deve a Lei de Execuções Fiscais (lei 6.830, de 22 de setembro de 1980), bem como todo seu procedimento, ser reestruturado em favor da norma processual civil aplicando-se o incidente a todas as hipóteses de responsabilização. Buscando-se assim garantir maior vigor à temporalidade e ao poder constitucional atribuído a nossa Carta Magna, que se sobrepuja acima do sistema jurídico como norma originária, esta consideramos plenamente garantida pelo colendo Código de Processo Civil.

Na lógica processualista moderna, com o advento do Código de Processo Civil, não se pode mais admitir que simplesmente se “redirecione” uma execução, sem que sejam apurados os elementos subjetivos da responsabilidade, e mesmo sendo estes apurados deve-se abrir prazo ao terceiro para que este tenha o direito de se defender, através da abertura de incidente para apurar sua inclusão na lide, de maneira a assegurar os direitos e garantias previstas na Constituição, sem que haja o atropelo processual que representa o atual redirecionamento.

Portanto, fica claro que o redirecionamento da execução fiscal não deve ser aplicado, em virtude da concepção de lei que melhor atende aos interesses de toda uma coletividade, como se subtende, a norma processual civil, que dá regramento ao procedimento do incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Na doutrina, sobreleva a lição de Leonardo Carneiro da Cunha, que escreve:

"Por aí já se percebe que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica deve ser instaurado não apenas nos casos de desconsideração propriamente dita, mas também nas hipóteses em que haja possibilidade de o sócio responder pelas dívidas da sociedade, seja em razão do regime jurídico a que ela se sujeita, seja por causa do exercício da administração feita em desacordo com normas legais, estatutárias ou contratuais." 2

Constata-se a existência de julgados disseminados por todo o país que optam pelo incidente de desconsideração da personalidade jurídica3 e outros que optam pelo redirecionamento da execução fiscal4, a instabilidade fere, sobretudo, o princípio da segurança jurídica. Resta ainda a incerteza no que diz respeito aos órgãos julgadores de instância superior, não se sabe que posicionamento adotarão para assentar a discussão.

Apresentada a dicotomia existente compreendemos que sim, o redirecionamento, conforme explicitado, não observa às garantias constitucionais e afronta normas e princípios já consolidados por todo um sistema jurídico processual convalidado pelo Novo Código de Processo Civil. Posto isto, conclui-se que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica deve ser aplicado irrestritamente a todas as execuções fiscais em todo território nacional, haja vista que a sua não aplicação apenas leva em consideração a presteza com a qual o Fisco busca arrecadar. À luz do ordenamento jurídico hodierno deve se levar em conta não somente os interesses estatais, que, diga-se de passagem, devem ser sempre alinhados com os de seus cidadãos, de maneira a buscar a paridade de armas e de meios para que a segurança jurídica seja respeitada no processo executório como um todo.

___________

1 Tribunal Regional Federal da 3ª Região TRF-3 - APELAÇÃO/REMESSA NECESSÁRIA : ApReeNec 00008393720134036115 SP

2 CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. Pag.423

3 TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO - AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 0022670-51.2016.4.03.0000/SP

4 Tribunal Superior do Trabalho TST - AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA : AIRR 2014003120055120002 201400-31.2005.5.12.0002 - Inteiro Teor

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*Rubens Augusto Lobo de Almeida pós graduando em direito tributário e advogado.

*Miguel Ribeiro é acadêmico de Direito pela Universidade Católica de Pernambuco.

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