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Destrinchando os arranjos de pagamento – I - Admirável mundo financeiro novo

O advento da internet o acesso progressivo a esse serviço, que hoje já se encontra no domínio quase pleno das empresas e das famílias, proporcionou a sua utilização pelas instituições financeiras em favor dos seus clientes para todo o tipo de operações, inclusive as de pagamentos.

31/8/2018

Em primeiro lugar devo me penitenciar pelo título deste artigo que se apresenta mais pretencioso do que o orgulho da galinha que acabou de botar um ovo. Estou muito longe de achar que já atingi aquele resultado ou que poderei atingi-lo em um breve espaço de tempo. E desafio outros operadores do Direito comercial em geral e do Direito bancário em especial a afirmarem que já chegaram lá ou que estão perto de romper a fita no final da reta com o seu peito cheio do ar da vitória. Faço aqui um repto. E dobro a aposta.

Para quem pensa que se está inventando a roda, afirmo que arranjos de pagamento são coisa muito antiga no Direito comercial. Um caso memorável para esse ramo do direito aconteceu quando, imaginemos, foi sacada a primeira letra de câmbio em alguma república italiana do Mediterrâneo, lá pela Idade Média, contra um banqueiro em Alexandria no Egito. De lá para cá o que tem mudado tem sido, no mais das vezes, meramente a técnica, na medida em que, dando-se um grande pulo no tempo, do papel passamos para os bits, que deram origem aos títulos eletrônicos, ainda hoje objeto de um pouco de mistério.

E um arranjo de pagamento mais moderno que recorreu ao uso de um plástico, talvez o primeiro deles ou o que primeiro deu certo, foi o cartão do diners, que servia inicialmente para pagar a conta de restaurantes. Desde esse tempo para os dias de hoje temos os cartões de crédito e de débito que se proliferaram de forma desmedida.

O advento da internet o acesso progressivo a esse serviço, que hoje já se encontra no domínio quase pleno das empresas e das famílias, proporcionou a sua utilização pelas instituições financeiras em favor dos seus clientes para todo o tipo de operações, inclusive as de pagamentos. Antes restritas aos desktops e laptops, hoje está no domínio pleno dos celulares, que passam a cada dia a se tornar um dispositivo fundamental nas transferências financeiras e nas operações de crédito, utilizando-se de aplicativos cada vez mais sofisticados, aos quais o usuário quase não tem tempo de se acostumar, pois as novidades estouram a cada momento.

Essa revolução, presente em todo o mundo, foi internalizada no Brasil a partir da lei 12.865, de 9/10/13, seguida por normas emanadas do Conselho Monetário Nacional (CMN) e do Banco Central do Brasil (BCB), que formalizaram os arranjos e instituições de pagamento, cuidando dos institutos correspondentes.

Quem já examinou esses normativos, e conhece um pouco a forma como o modelo de arranjos de pagamentos opera fica, com uma pergunta (ou com muitas, mesmo), no sentido de saber se continuamos dentro de um processo de evolução linear de negócios (o que se colocaria no campo do contrato sinalagmático) ou se, a partir dessa conhecida modalidade contratual, que regeria as relações entre as diversas partes, não estaríamos diante de uma construção jurídica nova a ser identificada e digerida para os fins do direito (identificação, reconhecimento da natureza jurídica, interpretação e aplicação).

Poderíamos pensar, ainda, no contrato associativo (inerente a algum modelo societário inominado, que explicaria parte das relações jurídicas em causa). Um óbice para uma explicação dessa ordem esbarraria no fato de que, no direito brasileiro, as sociedades são contadas em número fechado havendo quem enxergue, como a professora Rachel Sztajn, a possibilidade de alguma variação tipológica fundada no reconhecimento de que existiria certa liberdade negocial dentro dos tipos societários existentes, capaz de dar margem a alguma variante societária em parte atípica.

De outro lado, os arranjos de pagamento, a par de relações lineares e/ou associativas, apresentariam outras relações em forma de rede, com ou sem um centro único, este último correspondente ao arranjo em si mesmo e sua interação eventual com outros, de natureza aberta ou fechada. Isto porque, ao lado dos arranjos abertos, as normas se referem expressamente aos de natureza fechada. Complicou, caro leitor? Não fique triste, eu também fiquei bastante complicado.

Vamos dar uma paradinha no nosso raciocínio para fazermos um balanço parcial.

Até agora cogitamos em primeiro lugar da existência de relações jurídicas contratuais lineares. Por exemplo, aquela existente entre o titular de um cartão de débito/crédito e o lojista. Essa relação no mais das vezes seria caracterizada como de consumo, relativa à compra de bens ou de serviços. Mas também surge uma relação que parece linear, a princípio, entre o lojista e os fornecedores das maquinhas (escolhidos pelo primeiro entre diversos concorrentes) pela qual ele penetra no mercado de cartões de débito e de crédito. Essa diversidade de maquininhas se justifica na medida em o lojista busca disponibilizar todas as possibilidades de acesso aos seus clientes, considerando-se que muitas vezes um desses aparelhos não serve determinada bandeira de cartões. Mas, ao mesmo tempo, assim fazendo, o comerciante passa a integrar redes de arranjos de pagamentos e essas relações não são lineares, como vimos acima.

Uma das possibilidades estaria em considerar a presença de um contrato associativo que congregaria todos os participantes de uma rede, da mesma forma como acontece com o contrato de sociedade. Neste todos os sócios apresentam um interesse comum voltado para o sucesso do empreendimento, segundo uma relação obrigacional fundamental deles para com a sociedade em relação ao pagamento de sua cota de capital, e desta para com eles mesmos, respeitante à distribuição dos lucros. Entre os sócios não se apresenta qualquer tipo de relação jurídica, inexistindo direitos e obrigações uns para com os outros, exceto quando se fala no controlador, existindo preceitos legais expressos quanto a deveres e de responsabilidades diante do acionista e de terceiros.

Dependendo de melhor dissecar as relações jurídicas reativas a todos os participantes dos arranjos de pagamento, em uma primeira análise, não parece configurado um contrato associativo geral, que englobe todos os participantes.

Isso significaria reconhecer provisoriamente que não se prestam a explicar os arranjos de pagamento (pelo menos em seus aspectos fundamentais) os modelos clássicos de relações sinalagmáticas (lineares) e os associativos (em forma de prestações convergentes dos participantes do arranjo para um núcleo jurídico/econômico central e deste para com os primeiros).

Um ponto importante ainda deve ser destacado. Dada a relativa liberdade de construção dos modelos de arranjos de pagamento, a identificação da natureza jurídica das relações que os constituem dependerá da análise de cada um em concreto. Haverá um núcleo básico nesse sentido, mas certamente será formado por outras relações jurídicas eventualmente diferenciadas, cuja identificação deverá ser feita.

Essas complexas questões merecem um estudo aprofundado, cujos contornos serão objeto de próximos artigos sobre esse tema. Paremos por aqui. Meu disco rígido está dando tilt.
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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio de Duclerc Verçosa Advogados Associados e professor Sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.

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