Migalhas de Peso

Instituto de Capacitação e de Desenvolvimento Profissional e de Assistência Social Mercina Miranda

Segundo o portal estadual da Transparência, os repasses financeiros do Governo do Estado para o Mercina Miranda atingiram quase R$ 1,5 milhão atualizados, entre 2004 e 2010.

20/8/2018

Há algo de muito estranho nas atividades do Instituto de Capacitação e de Desenvolvimento Profissional e de Assistência Social Mercina Miranda, sediado em Castanhal. Ele foi criado pelo presidente da Assembleia Legislativa do Pará (Alepa), deputado estadual Márcio Miranda, em homenagem à mãe dele. Mesmo assim, recebeu uma montanha de dinheiro do Governo do Estado e da própria Alepa. O que mais chama a atenção, porém, nem é isso, mas sim a impressionante quantidade de materiais de uso médico que foram comprados com esses recursos. Só kits para exames de Papanicolau (o preventivo de câncer uterino) foram mais de 34 mil, em apenas três anos. E os números do próprio instituto apontam a possibilidade de que não tenham sido realizados nem mil desses exames. Os outros 33 mil kits, ninguém sabe aonde foram parar. Por coincidência, a família de Márcio Miranda possui, em Castanhal, duas empresas de saúde: a Medical Diagnósticos e Assistência Médica Ltda e o Hospital Francisco Magalhães, ambas registradas em nome de Daniela Chaves de Magalhães Miranda, esposa do deputado, e de dois filhos do casal.

Um dos exemplos mais impressionantes é o convênio 068/10, pelo qual o instituto recebeu R$ 225 mil (R$ 358.386,73 atualizados pelo IPCA-E de março) da antiga Ação Social Integrada ao Palácio do Governo (Asipag), em meados do ano eleitoral de 2010, para atendimentos médicos e odontológicos, através da sua unidade móvel de Saúde. Segundo dados do próprio instituto, os atendimentos ginecológicos se limitaram a apenas 346 exames de PCCU (o preventivo do câncer uterino). No entanto, as notas fiscais demonstram que o Mercina comprou, com o dinheiro desse convênio, 13.500 kits de exames de Papanicolau, além de 10.500 espéculos descartáveis e 280 pacotes de espátulas de Ayres, também usadas em exames ginecológicos. As notas fiscais mostram, ainda, a aquisição de 300 frascos de gel para ultrassom; 240 pacotes de máscaras descartáveis, 700 caixas de luvas descartáveis, 900 frascos de álcool 70 graus, 750 pacotes de compressas de gaze e 150 compressas de gaze campo operatório, entre outros materiais. No entanto, além de 346 exames de PCCU, foram realizadas apenas 5.859 consultas médicas, 2.318 verificações de pressão arterial, 2.093 exames de glicemia capilar e 3.369 de tipagem sanguínea, fora os atendimentos odontológicos (1564 extrações, 1875 limpezas e 1268 aplicações de flúor).

Mas o convênio 068/10 não foi uma exceção: o mesmo ocorreu com o convênio 04-GP/08, firmado pela Alepa, em 26 de fevereiro de 2008. Ele teve o valor de R$ 168.642,00 (ou R$ 290.091,39 atualizados), para o atendimento móvel de Saúde do instituto, naquele ano. Segundo as notas fiscais, só kits para exames de Papanicolau foram 10.956, além de 500 espéculos vaginais e 143 pacotes (cada um com 100 unidades) de espátulas de Ayres. Também foram comprados 275 pacotes de ataduras crepe (sabe-se lá para que), 35.020 seringas descartáveis, mais de 100 caixas de máscaras descartáveis (cada uma com 50 unidades), 4 mil equipamentos de macrogotas (para administração de soro), 186 termômetros clínicos e por aí vai. Em outro convênio, o 018-GP/2009, também com a Alepa, firmado em abril de 2009, no valor de R$ 141.375,50 (R$ 239.743,57 atualizados), o quadro se repete: foram comprados, entre outros materiais, 9.949 kits para exames de PCCU, além de 180 pacotes de espátulas de Ayres, cada um com 100 unidades.

E o interessante é o seguinte: tivemos acesso às fichas de 46 ações realizadas pelo Mercina Miranda em 2011, através da sua unidade móvel de Saúde, que resultaram em 21.146 atendimentos. Nessa amostra (que abrange, possivelmente, mais de 70% das ações daquele ano), os registros apontam apenas 259 exames de PCCU. Ou seja: nos 27.065 atendimentos do convênio 068/2010 da Asipag, os 346 exames de PCCU representaram apenas 1,27% do total. Na amostragem das fichas de 2011, esses exames representaram 1,22% do universo. Há, portanto, compatibilidade nesses resultados, que indicam uma baixíssima efetivação desses exames. Então, o que justifica a compra, só em três anos (2008, 2009 e 2010) de mais de 34 mil kits para PCCU? E quanto à enorme quantidade de espéculos, gel para ultrassom, seringas descartáveis e até ataduras? Afinal, que fim levou todo esse material?

Há mais, porém. Nas fichas de atendimento de 2011, a quantidade de exames de PCCU realizados pelo Mercina Miranda bate com o número de pessoas cujas fichas de atendimento foram encaminhadas para a "Clínica Medical". E a Medical Diagnósticos e Assistência Médica Ltda (CNPJ: 34.823.419/0001-65), assim como o Hospital Francisco Magalhães (CNPJ: 05.389.093/0001-01) pertencem à mulher e a dois filhos do deputado Márcio Miranda (Ygor e Ytalo), diz o site da Receita Federal. Ambas as empresas, aliás, são citadas como "colaboradoras" do Mercina Miranda, no "PCCU 2011".

Dinheiro público paga propaganda do deputado e até o papel higiênico da entidade

O Mercina Miranda (CNPJ: 05.797.800/0001-07) foi registrado em cartório em 24 de julho de 2003 e, já naquele mesmo ano, começou a receber dinheiro do Governo do Estado e da Assembleia Legislativa: foram, pelo menos, R$ 2,6 milhões, entre 2003 e 2011. Ao que parece, quase tudo o que esse instituto possui foi comprado com recursos públicos, que deveriam ser usados no atendimento da população. A lista inclui desde móveis e garrafas térmicas para o cafezinho, até o ônibus em que realiza atendimentos médicos e faz propaganda política de Márcio Miranda. Tais recursos também já serviram para que o Mercina pagasse contas de luz, telefone e de manutenção de computadores, comprasse materiais de limpeza e até papel higiênico. Algumas vezes, o dinheiro para essas compras saiu de emendas que o próprio deputado encafuou no orçamento do Estado.

O convênio 039/03 é um exemplo de como o dinheiro do contribuinte foi usado para turbinar essa entidade. Ele foi firmado com a Asipag em 17 de novembro de 2003 – ou seja, apenas 4 meses depois que o instituto foi registrado e, portanto, passou a existir legalmente. Na época, os recursos totalizaram R$ 20 mil (ou R$ 44.808,51, em valores atualizados pelo IPCA-E de março). O objetivo era a execução do projeto "Alternativa de Trabalho e Criação", com a compra de equipamentos para cursos de capacitação profissional. Mas, segundo as notas fiscais que estão na prestação de contas desse convênio, o Mercina Miranda comprou, com esse dinheiro, aparelhos de ar condicionado, mesas, cadeiras, jogos de sofás, bebedouro, armários, louças e utensílios de cozinha; fogão, geladeira, computador, impressora e até xícaras e garrafas térmicas, para o café. Por incrível que pareça, pagou até material de limpeza: água sanitária, sacos de lixo, vassouras, detergente, sabão em barra, pano de chão, além de um fardo de papel higiênico. Na compra de materiais para os cursos (pintura em tecido, técnicas de EVA, bordado em vagonite e qualidade no atendimento) e no pagamento dos instrutores os gastos ficaram em apenas R$ 4.309,50. Ou seja, quase 80% desses R$ 20 mil serviram apenas para equipar o Mercina Miranda.

Porém, a lambança foi ainda mais escancarada com o convênio 49/03, firmado também em 17 de novembro de 2003 pela mesmíssima Asipag, no valor de R$ 150 mil (R$ 336.063,82 atualizados). Segundo ofícios da própria entidade, endereçados à Asipag e ao governador Simão Jatene, o dinheiro para o convênio veio de uma emenda ao orçamento do Estado, apresentada pelo deputado Márcio Miranda. O objetivo era a compra de um ônibus, equipado com gabinetes médicos e odontológico, que permitiria a realização de 12 mil exames por ano, para a prevenção de câncer, através do projeto "Vida Longa Mulher". Mas se o objetivo parecia nobre, a prática se revelou um caso de improbidade administrativa: fotografias, em documentos do próprio instituto, mostram que o ônibus trazia (ou ainda traz), na lateral, a seguinte frase: "Dep. Márcio Miranda. Arrojado e competente". Além disso, nos locais de atendimento à população, o veículo ganha até mesmo um cartaz com a fotografia do deputado.

Facilidades que a maioria das entidades não têm

O convênio 068/10, pelo qual o Mercina Miranda recebeu mais de R$ 358 mil atualizados da antiga Asipag, no ano eleitoral de 2010, é também um exemplo da facilidade com que o instituto obteve esses rios de dinheiro público, contra as dificuldades enfrentadas por muitas entidades que existem há anos e realizam trabalhos de grande impacto social.

O objetivo do convênio era a execução do projeto "Prevenção e Saúde para Todos", que prometia realizar 30 mil atendimentos, entre junho de 2010 e junho de 2011, em vários municípios da Região de Castanhal. Seriam, principalmente, exames para detecção de câncer do colo do útero, devido aos "índices alarmantes" da doença no Pará, diz a justificativa do projeto. Mas estavam previstos, também, atendimentos odontológicos (aplicação de flúor, limpeza de tártaro, extrações dentárias), consultas médicas, exames de glicemia (para detecção de diabetes) e tipagem sanguínea.

O problema é que um simples cálculo mostraria o quanto essa meta de 30 mil atendimentos estava hiperdimensionada. A unidade móvel do Mercina Miranda (um ônibus) possui 2 gabinetes para atendimento médico-ginecológico e 1 para atendimento odontológico. Isso significa que, para alcançar essa meta, esses três consultórios teriam de realizar 83 atendimentos por dia, trabalhando o mês inteirinho, inclusive aos finais de semana. E aí viriam duas perguntas inescapáveis: quantos profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, dentistas e auxiliares) seriam necessários para isso? E como um simples ônibus seria capaz de atender tanta gente?

No entanto, na sua prestação de contas, o Mercina Miranda jura que realizou exatos 27.065 "atendimentos/procedimentos". Um número só alcançado porque, como mostram os documentos, a conta incluiu até 2.098 cortes de cabelo e 6.275 receitas, que foram contabilizadas à parte das consultas médicas e procedimentos odontológicos, como se elas não fossem simples decorrência deles. A matemática enviesada ajuda a esconder a anemia numérica: é que a mesmíssima pessoa pode ser contabilizada várias vezes nas estatísticas. Se ela, por exemplo, fizer uma limpeza dentária, receber flúor, uma consulta, uma receita médica, fizer exames de tipagem sanguínea e de glicemia e ainda cortar o cabelo, só aí serão contados 7 atendimentos. A baixa quantidade de exames de PCCU (apenas 346) que eram o carro-chefe e principal justificativa do projeto, já demonstra, aliás, o reduzido alcance que teve. Mesmo assim, os mais de R$ 358 mil para que fosse realizado foram liberados de uma só tacada em 2 de julho de 2010, ou apenas 7 dias depois da assinatura do convênio. E as prestações de contas foram aprovadas, tanto pelo Governo, quanto pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE), que, pelo visto, não possuem nem mesmo uma simples calculadora.

Mais de R$ 2,6 milhões dos cofres públicos

Segundo o portal estadual da Transparência, os repasses financeiros do Governo do Estado para o Mercina Miranda atingiram quase R$ 1,5 milhão atualizados, entre 2004 e 2010. Em diários oficiais do Estado, a reportagem também localizou um convênio de 2003, em valor superior a R$ 335 mil. Ele, porém, não consta no portal da Transparência, cujos dados estão disponíveis apenas a partir de 2004.

Já da Assembleia Legislativa o instituto recebeu pelo menos R$ 1,1 milhão. Os repasses ocorreram entre 2004 e 2011, quando Márcio Miranda já era deputado estadual e até presidia comissões da Alepa. No entanto, os números estão incompletos: entre 2009 e 2011, os dados são do SIAFEM, o sistema de administração financeira de estados e municípios e têm alto grau de confiabilidade.

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*Giussepp Mendes é advogado da banca Mendes e Mendes Advocacia & Consultoria.

*Ana Célia Pinheiro é jornalista.

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