O cenário do judiciário brasileiro, quando examinado de perto, não revela uma boa imagem. Não há dúvidas que a morosidade, a pouca efetividade e a insegurança jurídica permeiam esse universo que se expande a cada novo litígio ajuizado e a cada novo membro que se aloca – seja ele advogado, magistrado, ou uma das várias outras engrenagens que contribuem para a movimentação desta gigantesca máquina.
Os dados não mentem. Segundo o CNJ, através do relatório anual Justiça em Números1, 19.787.004 processos foram distribuídos no ano de 2016 e, mesmo com impressionantes 22.153.891 julgados – o que é um dado histórico, diga-se de passagem -, existem aproximados 63.093.494 casos pendentes.
Na justiça comum, um processo leva em média quatro anos até o início da fase de cumprimento de sentença, na qual se arrasta por mais aproximados três anos e quatro meses. Mesmo na Justiça do Trabalho, programada para conferir celeridade à resolução do litígio, este passa aproximadamente um ano e meio até a execução de sentença, fase na qual perdurará por mais de três anos.
Esse imenso volume de demandas gera uma tarefa descomunal aos magistrados, que possuem uma carga de trabalho de estimados 6.700 processos num ano, enquanto o índice de produtividade beira à faixa de 1.750 processos. Onde isso leva não é nenhum mistério: o acúmulo de demandas e o aumento na morosidade na sua conclusão.
Diante deste panorama caótico, tem-se pensado cada vez mais nas formas alternativas de resolução de conflitos como meio de desafogar esse sistema e garantir ao cidadão brasileiro ferramentas verdadeiramente capazes de resolver seus problemas. Nas palavras do ilustre magistrado e professor Fábio Rodrigues Gomes, "a premência pela descoberta de mecanismos mais eficazes na solução dos litígios ocorre porque o meio de que dispomos não está funcionando bem."2
Além da conciliação e da mediação, a arbitragem merece especial enfoque. Grandemente difundida nas relações empresariais de médio e grande porte e ainda tímida no âmbito trabalhista, a questão é justamente saber se está apta a tornar-se respeitável ao ponto de conseguir disseminar-se por esta esfera, pois, atualmente, permanece com uma imagem elitizada e pouco afeita aos conflitos mais comezinhos3.
Para isso, alguns desafios precisam ser dirimidos, dignando-se este trabalho, então, a esmiuçar as principais problemáticas que giram ao redor do tema, traçando contrapontos no intuito de demonstrar que a arbitragem é um procedimento eficaz e possui uma interessante aplicabilidade nas relações trabalhistas.
II – A Controvérsia
A CLT dispõe, no art. 507-A, que poderá ser pactuada cláusula compromissória de arbitragem nos contratos cuja remuneração seja superior a duas vezes o máximo estabelecido para os benefícios do Regime Geral de Previdência Social, desde que a pactuação seja dada por iniciativa do empregado ou mediante sua concordância expressa, nos limites da lei 9.307/96.
Além disso, há que se mencionar o artigo 114, §1º, da CF, que prevê a possibilidade de eleição de árbitro quando a matéria versar sobre direitos trabalhistas coletivos, como greves ou participação nos lucros da empresa.
A problematização começa quando se discute a aplicação da arbitragem para a resolução de quaisquer conflitos trabalhistas, inclusive os que versem sobre direitos individuais e nos contratos cuja remuneração é inferior ao estabelecido no art. 507-A da CLT.
Uma vez pontuadas essas questões, delas se originam outras que se mostram o cerne da discussão da aplicabilidade desta alternativa de resolução de conflitos no direito do trabalho, quais sejam, a indisponibilidade dos direitos trabalhistas e a hipossuficiência do empregado, esmiuçadas na sequência.
a) Indisponibilidade dos Direitos Trabalhistas
A discussão cinge-se principalmente ao fato de que as demandas envolvendo os direitos individuais trabalhistas tratam de direitos indisponíveis e, portanto, não se inserem no objeto da lei de arbitragem, o qual está delimitado no art. 1º e diz respeito aos direitos patrimoniais disponíveis.
O posicionamento do TST tem sido contrário à aplicação do instituto nas lides trabalhistas. Dentre várias decisões4, cita-se o dito pelo min. relator Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira, que consignou que "a essência do instituto está adstrita à composição que envolva direitos patrimoniais disponíveis, já aí se inserindo óbice ao seu manejo no Direito Individual do Trabalho (cabendo rememorar-se que a Constituição Federal a ele reservou apenas o espaço do Direito Coletivo do Trabalho)"5.
Outrossim, tal entendimento pode ser objeto de uma interpretação divergente ao se considerar que os direitos dos trabalhadores possuem uma indisponibilidade relativa, o que torna possível, inclusive, sua negociação e flexibilização mediante acordos e convenções coletivas6.
Neste sentido, o entendimento do ministro Ives Gandra da Silva Martins Filho é no sentido de que afastar, de plano, a arbitragem em dissídios laborais individuais seria afirmar que todo o universo de direitos laborais tenha natureza indisponível, o que, em nossa opinião, não condiz com a realidade7.
Complementa-se: a difamação, a agressão física, o assédio moral gerador de síndrome de burnout, o acidente que acarreta grave e definitiva deficiência física ou um grotesco dano estético, a discriminação racial, todas são questões aptas a serem discutidas, sopesadas e, se tudo correr bem, encerradas através da conciliação8.
Vale dizer, portanto, que a preocupação central muda de foco, passando a ser não mais a indisponibilidade ou não dos direitos, mas sim a certeza de que o indivíduo deles negocia exercendo plena liberdade de escolha. O consentimento, então, não pode ser eivado de vícios, o que será tratado mais especificamente no tema seguinte.
b) Hipossuficiência do Empregado
Quando se fala em arbitragem em direito do trabalho, rapidamente se remonta a um quadro de desigualdade, composto de fragilidade do empregado frente ao poderio econômico e técnico das empresas, bem como aos eventuais custos emergentes da utilização do referido instituto, o que impede o desenvolvimento da discussão para além dessas pretensas conclusões e, consequentemente, obsta a sua própria aplicação nos litígios.
Esse raciocínio veio impresso em decisões do TST, como o exemplo proferido pelo rel. min. Horácio Raymundo de Senna Pires, ao estabelecer que "a posição de desigualdade (jurídica e econômica) existente entre empregado e empregador no contrato de trabalho dificulta sobremaneira que o princípio da livre manifestação da vontade das partes se faça observado"9.
É razoável aceitar, com base no panorama até então apresentado, que durante a relação contratual, há fortes indícios de uma "coação" pairando no ar, intoxicando, ainda que inconscientemente, a liberdade individual do trabalhador em toda a sua extensão10. Todavia, seria igualmente razoável valer-se desta razão quando finda a relação laboral?
O prisma se torna outro. Após o rompimento dos laços contratuais, cabe ao empregado valer-se de sua liberdade de escolha ao decidir o método de resolução das questões remanescentes. Deste que não haja vício de consentimento, o ex-empregado está plenamente apto a conversar e combinar, de comum acordo com o empresário, qual o melhor mecanismo institucional – Arbitragem ou Justiça do Trabalho - para aparar suas arestas11.
Conclui-se que existe um grande misticismo em volta da capacidade de escolha do empregado diante da do empregador, sendo aquela rotulada como hipossuficiência e a relação de ambos, como desigual. Porém, embora de fato possa existir desigualdade, não compete ao Estado restringir de plano as opções dos sujeitos, mas sim conferir-lhes subsídio quando se identificar mácula na vontade ou patente desequilíbrio entre as partes.
III - "Preservar este status quo monopolista é uma estratégia equivocada e pode nos levar a um beco sem saída." (Fábio Rodrigues Gomes)
Como bem aduz o título deste tópico, a confiança exclusiva no Estado como forma de resolução dos conflitos tem evidenciado cada vez mais (vide as sucessivas publicações do Relatório Justiça em Números, pelo CNJ) sua falibilidade e sua ineficácia na tarefa de conter todo o volume de demandas que se origina diuturnamente.
Diante disso, o apelo às formas alternativas de tutela (fortemente incentivadas pelo Estado nos três primeiros parágrafos do art. 3º do novo CPC) aproxima cada vez ao alcance dos cidadãos a célere resposta aos seus entraves, ao passo que desafoga a cansada máquina do judiciário.
Especificamente no direito do trabalho, âmbito com tão pouca abertura à arbitragem, verifica-se longo caminho a ser aberto pelos doutrinadores e julgadores com o fim de possibilitar sua passagem. O fim é otimista: a arbitragem pode vir a ser uma boa opção institucional na resolução de problemas entre empregado e empregador, sendo um verdadeiro preconceito ideológico deixa-la de lado.12
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1 Justiça em Números. Acesso em 21/06/2018.
2 GOMES, Fábio Rodrigues. Arbitragem e o Processo do trabalho: dois lados de uma mesma moeda. P. 4.
3 TUPINAMBÁ, Carolina. As garantias do processo do trabalho. São Paulo: LTr, 2014, p. 154-155.
4 TST/AIRR 415/2005-039-02-40.9, DEJT 26/06/2009; RR -8952000-45.2003.5.02.0900, julg. 10/02/2010, DEJT 19/02/2010; TST-RR-614-45.2012.5.09.0022. 29/06/2015
5 RR-1020031-15.2010.5.05.0000, 3ª Turma, Rel. Min. Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira, j. 23.03.2011
6 Por exemplo, a redução de salários por negociação coletiva (art. 7º, VI, da CF/88), o aviso prévio renunciável desde que o empregado tenha obtido novo emprego (Enunciado n.º 276 do TST) e a supressão unilateral de horas extras e adicional noturno pelo empregador, mesmo que integrados no patrimônio do empregado por longo tempo (Enunciados n.º 265 e 291 do TST).
7 MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. Métodos alternativos de solução de conflitos laborais: viabilizar a jurisdição pelo prestígio à negociação coletiva. São Paulo: Revista LTr, ano 79, julho, 2015, p. 792-793.
8 GOMES, Fábio Rodrigues. Op. Cit. P. 19.
9 Processo TST/AIRR 415/2005-039-02-40.9,, 6ª Turma, DEJT 26/06/2009
10 GOMES, Fábio Rodrigues. Op. Cit. P. 17.
11 GOMES, Fábio Rodrigues. Op. Cit. P. 18.
12 GOMES, Fábio Rodrigues. Op. Cit. P. 22
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*Natália Brotto é advogada atuante na área de Direito Empresarial.
*Tiago Jeiss Krasovski é advogado atuante na área de Direito do Trabalho.
*Aleff Ribeiro é acadêmico de Direito pela Pontifícia Universidade Católica do PR.