Embora o país caminhe a passos lentos quando o tema é inovação tecnológica, especialmente quanto a investimentos do Poder Público nessa área, desde a edição da EC 85, que adiciona dispositivos à Constituição Federal para atualizar o tratamento das atividades de ciência, tecnologia e inovação, notam-se algumas tentativas de alterar este cenário.
Nessa onda de mudanças, em 11/1/16, foi promulgada a lei 13.243, que versa sobre estímulos ao desenvolvimento, à pesquisa, à capacitação científica e tecnológica e à inovação, alterando algumas normas já existentes e, em certa medida, trazendo novidades quanto ao tipo de atuação que o Poder Público pode ter nessa seara.
Seguindo essa marcha e visando regulamentar legislação atinente ao tema, incluindo a lei acima mencionada, fora editado o decreto 9.283/18, o qual, em termos de construção de ambientes especializados e cooperativos de inovação, permite que a Administração Pública tenha participação minoritária no capital de startups.
Nesse contexto, Instituições Científicas, Tecnológica e de Inovação Públicas, Agências de Fomento, Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista foram autorizadas a investir em startups. Porém, ao fazê-lo não podem perder de vista o ordenamento correlato, em especial o comando da lei 13.303/16, conhecida como Regime Jurídico das Estatais.
No tangente à participação das Estatais em startups, o primeiro ponto que chama atenção é a possibilidade de contratação com ou sem licitação, já que o decreto 9.283/18 apenas dispõe sobre a obrigatoriedade de observância à lei 13.303/16.
Nessa linha, como regra geral, as Estatais necessitam realizar processo licitatório para contratação com terceiros, conforme disciplina o art. 28 da lei 13.303/16. Todavia, existem duas possibilidades para dispensa de licitação em tal norma: (i) contratações que envolvem a atividade fim da empresa pública, nos termos do que o Tribunal de Contas da União já autoriza para as empresas que exploram atividade econômica, já que considera a licitação incompatível com contratações afetas à finalidade da sociedade; e (ii) contratos de cunho personalíssimo, em vista do caráter particular de uma parceria ou outra forma associativa, bem como a estrutura diferenciada do negócio formatado, desde que tal seja justificado.
Percebe-se que a segunda hipótese é que se adequa ao caso em referência, devendo a participação e investimento em startup sem prévio procedimento competitivo contar com justificativas nos processos administrativos de contratação para formalização de parcerias ou negócios.
Inclusive, esse tipo de participação no capital social é o que se denomina de empresa público-privada, terminologia adotada na tese de doutorado de Rafael Wallbach Schwind (e cunhada no âmbito da jurisprudência do TCU, notadamente por meio do Acórdão 1.220/2016), sendo que tal autor esclarece o seguinte:
Trata-se do emprego de uma técnica de atuação do Estado o domínio econômico, segundo uma lógica empresarial, para a consecução de certas finalidades que o Estado considera relevantes. Identificou-se que a atuação empresarial com engajamento do Estado pode servir não apenas à prestação de serviços ou à exploração de atividades econômicas, mas também para uma série de outras finalidades associadas a essas atividades – como, por exemplo, de fomento a uma determinada atividade reputada como sendo de interesse público. Nesse contexto, entretanto, a participação do Estado desloca-se para o exterior do aparato estatal. Surge a proposta de o Estado integrar empresas privadas na qualidade de sócio, mas sem que elas se insiram na Administração Pública. Com isso, busca-se maior eficiência da atuação empresarial – enfim, utiliza-se o figurino da empresa – mas a organização libera-se em definitivo de certas amarras típicas da Administração Pública (até mesmo daquelas que se aplicam de forma adaptada às empresas estatais).
Portanto, para que assim se proceda é necessário que o Poder Público detenha participação minoritária em tais sociedades, razão pela qual não deve exercer poder de controle na acepção do art. 116 da lei 6.404/76, isto é, não pode preponderar nas assembleias gerais, tampouco eleger a maioria dos administradores ou influir nos rumos da atividade social, sob pena de se entender que a operação se trata de uma sociedade de economia mista travestida em uma suposta parceria privada.
Acerca dos limites e formas de atuação do Poder Público em sociedades eminentemente privadas, caso das startups que recebem investimento de Estatais, o TCU já teve oportunidade de se manifestar no âmbito do Acórdão 1.220/2016, sendo que definiu o seguinte:
Ou seja, o exercício pelo Estado da preponderância do poder de controle numa empresa público-privada importa na sua caracterização como uma sociedade de economia mista de fato. O Estado não pode adotar técnicas societárias com a finalidade de burlar o regime constitucional aplicável às empresas estatais. Não quer me parecer legítimo que o Estado controle uma companhia privada senão através da constituição de uma sociedade de economia mista e da aplicação do regime previsto nos arts. 37 e 173 da CF/1988.
(...)
Se o Estado vier a ser caracterizado como o controlador de uma empresa público-privada, haverá duas possibilidades: 1) ou se transforma a empresa público-privada em sociedade de economia mista, mediante autorização legal específica para tanto e aquisição da maioria das ações com direito a voto, nos termos do art. 5º, inciso III, do decreto-lei 200/1967; ou 2) o Estado deverá se desfazer das ações e/ou direitos que lhe garantem a preponderância do poder de controle na empresa. Parece-me plausível que o prazo para cumprimento da segunda condição, na ausência de implemento da primeira, seja o mesmo que o anteprojeto da Nova Lei Orgânica da Administração propõe para situações similares: ao fim do exercício subsequente ao da assunção do controle (arts. 15, § 2º, e 18, § 3º).
Em contrapartida, conforme dispõe a lei 13.303/16: "Na participação em sociedade empresarial em que a empresa pública, a sociedade de economia mista e suas subsidiárias não detenham o controle acionário, essas deverão adotar, no dever de fiscalizar, práticas de governança e controle proporcionais à relevância, à materialidade e aos riscos do negócio do qual são partícipes".
Logo, a participação minoritária de Estatais em startups deve considerar a posição do TCU e demais Corte de Contas a fim de que as partes contratantes não enfrentem problemas futuros, inclusive de fiscalização, haja vista o caráter público do recurso que ingressa na sociedade, bem como devem observar medidas de governança e controle.
Por outro lado, o investimento realizado deve considerar alguns pontos essenciais, tais como:
a) Se dar sob a forma direta, isto é, via participação no equity (desde que em caráter minoritário) ou indireta (por meio de fundos de investimentos);
b) O objetivo do investimento necessariamente deve ser desenvolver produtos ou processos inovadores que estejam de acordo com as diretrizes e prioridades definidas nas políticas de ciência, tecnologia, inovação e desenvolvimento industrial;
c) O investimento deve obedecer a uma política previamente definida pelo agente investidor, contando com regras de compliance e governança corporativa; e
d) Antecipadamente definir-se os prazos e critérios de desinvestimento.
Por sua vez, os investimentos diretos podem ocorrer por meio de: (i) compra direta de quotas ou ações; (ii) mútuos conversíveis em quotas ou ações, segundo critérios previamente definidos pelas Partes; (iii) opções de compra futura de ações ou quotas; e (iv) outros títulos conversíveis em ações ou quotas. Já os indiretos se dão através de fundos, que podem ser constituídos com recursos próprios da pessoa jurídica investidora ou de terceiros.
Dessa forma, a recepção de investimento público por sociedades privadas demanda das partes contratantes atenção redobrada, primordialmente, quanto a requisitos legais e atividade fiscalizatória dos Tribunais de Contas. De outro lado, o fundador da startup deve tomar alguns cuidados importantes, como: (i) ter uma estrutura de governança e controle, aí incluída elaboração de acordo de quotistas ou acionistas; (ii) ter uma política de proteção à propriedade intelectual, mesmo porque o Poder Público deve prever, em instrumento jurídico específico, a titularidade da propriedade intelectual e a participação nos resultados da exploração desta última enquanto investidor; e (iii) principalmente, conhecer as particularidades de contratar com o Poder Público, ainda que um ambiente permeado pela inovação, pois a lógica difere do mercado privado.
Assim, a Administração Pública, notadamente Estatais, pode e deve realizar investimento em startups com vistas a estimular e apoiar um ecossistema de inovação no país, mas é importante conhecer os limites dessa forma de contratação, assim como o fundador deve estar preparado para receber esse tipo de investimento.