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As empresas de auditoria, o Código Civil de 2002 e a Instrução CVM 308

O mercado de valores mobiliários deve ser fomentado; deve, também, ser regulado e fiscalizado, de modo a evitar as catastróficas experiências vividas recentemente por alguns dos mais desenvolvidos países do planeta, mas, sobretudo, que isso seja feito na forma da lei.

6/10/2003

As empresas de auditoria, o CC de 2002 e a Instrução CVM 308

 

Rodrigo R. Monteiro de Castro*

 

1. A Lei n. 6.385, de 7 de dezembro de 1976 (“Lei 6.385”), além de dispor sobre o mercado de valores mobiliários, criou a Comissão de Valores Mobiliários – CVM. As atividades sujeitas à disciplina e à fiscalização da autarquia, dentre elas a auditoria das companhias abertas (inc. VII), estão previstas no art. 1º. O Capítulo VII, denominado Dos Auditores Independentes, Consultores e Analistas de Valores Mobiliários, trata especificamente dessa atividade.

 

2. Com efeito, o art. 26 deste capítulo determina que “Somente as empresas de auditoria contábil ou auditores contábeis independentes, registrados na Comissão de Valores Mobiliários, poderão auditar, para efeitos desta lei, as demonstrações financeiras de companhias abertas e das instituições, sociedades ou empresas que integram o sistema de distribuição e intermediação de valores mobiliários”. O parágrafo 1º atribui à CVM a tarefa de estabelecer as condições para o registro e o seu procedimento.

 

3. E ela o fez, inicialmente pela Instrução CVM nº 04, de 24 de outubro de 1978, posteriormente revogada pela Instrução CVM nº 204, de 10 de maio de 1991, que, de seu turno, foi revogada pela Instrução 216, de 29 de junho de 1994. Finalmente, revogou esta última a Instrução CVM nº 308, de 14 de maio de 1999 (“Instrução 308”).

 

4. A Instrução 308, logo em seu primeiro artigo, reforça o quanto já determinara a Lei 6.385, da seguinte maneira: “o auditor independente, para exercer a atividade no âmbito do mercado de valores mobiliários, está sujeito ao registro na Comissão de Valores Imobiliários. No art. 2º prevê duas categorias de registro, uma à pessoa física (AIPF) e outra à pessoa jurídica (AIPJ), neste caso a ser conferido à sociedade profissional, constituída sob a forma de sociedade civil, que satisfaça os arts. 4º e 6º”.

 

5. O art. 4º enumera as condições sem as quais o registro não será concedido. A primeira delas é a inscrição no Registro Civil das Pessoas Jurídicas, sob a forma de sociedade civil. A terceira, que se revela a mais importante às empresas de auditoria e aos seus sócios, exige que “conste do contrato social, ou ato constitutivo equivalente, cláusula dispondo que a sociedade responsabilize-se pela reparação de dano que causar a terceiros, por culpa ou dolo, no exercício da atividade profissional e que os sócios respondam solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais, depois de esgotados os bens da sociedade.”

 

6. O art. 6º relaciona os documentos que deverão instruir o pedido.

 

7. A confrontação do art. 4º da Instrução 308 com os parágrafos 2º e 3º do art. 26 da Lei 6.385 revela que o colegiado, ao baixar a instrução, não se restringiu a estabelecer as condições para o registro e o seu procedimento, como manda o citado parágrafo 2º, mas foi além, e muito, contrariando, inclusive, o art. 896 do então vigente Código Civil, que determinava que a solidariedade não se presumia; resultava de lei ou da vontade das partes. Frise-se, a propósito, que a Instrução CVM 04, de 1978, já praticara o mesmo excesso.

 

8. Mas o fato de o parágrafo 2º da Lei 6.385 prescrever que “As empresas de auditoria contábil ou auditores contábeis independentes responderão, civilmente, pelos prejuízos que causarem a terceiros em virtude de culpa ou dolo no exercício nas funções previstas neste artigo”, não autoriza a autarquia a, em primeiro lugar, estender o comando à pessoa do sócio e, em segundo lugar, a determinar a solidariedade. Nelson Eizirik, em trabalho publicado na Revista de Direito Mercantil nº 47, afirmou que “A regulação do mercado de capitais, como de qualquer mercado, consiste na atividade do Estado no sentido de editar normas de conduta para os participantes, bem como no sentido de fiscalizar seu cumprimento”. E essa regulação, como ato inferior à lei, não poderá, em hipótese alguma, contrariá-la.

 

9. Curiosas e contraditórias são as explicações oferecidas pela CVM, em decorrência da prática de tal ato. Curiosa porque não explica nada; contraditória porque, se no parágrafo 7º da Nota Explicativa da Instrução CVM nº 308 está dito que “A Instrução estabelece que a empresa de auditoria deve ter a forma de sociedade civil, com contrato social ou ato constitutivo equivalente, devidamente registrado no Registro Civil das Pessoas Jurídicas. Portanto, a sociedade, além do que estabelecer no contrato social deve se subordinar às disposições do Código Civil, que lhes sejam aplicáveis, em especial o capítulo XI do referido código”, no parágrafo seguinte nega – indevidamente – a aplicação de um dos artigos do próprio capítulo XI, o de nº 1.364, que facultava às sociedades civis, quando revestissem as formas estabelecidas nas leis comerciais, obedecerem aos respectivos preceitos, apesar de se inscreverem no registro civil.

 

10. Aliás, toda e qualquer sociedade, independentemente do tipo societário, responde pelos prejuízos que causar a terceiros. A responsabilidade, em qualquer caso, será sempre ilimitada, não se tratando, portanto, de privilégio de empresa de auditoria.

 

11. O que diferencia umas das outras é a extensão da responsabilidade do sócio. Na sociedade por quotas de responsabilidade limitada, por exemplo, era limitada à importância total do capital social, consoante o art. 2º do revogado Decreto n. 3.708, de 10 de janeiro de 1919; já o Código de 2002, que passou a identificar este tipo como sociedade limitada, restringe a responsabilidade de cada sócio ao valor de suas quotas, mas prevê a solidariedade pela integralização do capital social.

 

12. Na antiga sociedade civil, respondiam os associados na proporção em que participavam nas perdas sociais, se o cabedal social não cobrisse as dívidas da sociedade. Mas, nos termos do art. 1.398 do Código Civil de 1916, não eram solidariamente obrigados pelas dívidas da sociedade. Ademais, por força do supracitado art. 1.364, poderiam ainda os sócios contratar a limitação da responsabilidade, adotando, por exemplo, a forma da sociedade limitada.

 

13. Diante disso, fosse a intenção do legislador de 1976 atribuir aos sócios de empresa de auditoria responsabilidade solidária pelas obrigações da sociedade, poderia tê-lo feito, mas não o fez; e, em que pese a importância e a necessidade de se disciplinar e fiscalizar o mercado de capitais, não poderia a Comissão de Valore Mobiliários exceder os limites legais.

 

14. Não bastasse o que acima se apresentou, o Código Civil de 2002 derrogou a Instrução 308, conforme se mostrará adiante.

 

15. Seguindo a sistemática do Código de Obrigações suíço, do final do século XIX, e também inspirado no Código Civil italiano, de 1942, que promoveu a unificação do direito privado, a disciplina da empresa foi inserida no Código Civil, mais exatamente no Livro II, denominado Direito de Empresa. Revogou-se, assim, a primeira parte do Código Comercial, bem como o Decreto 3.708/19.

 

16. O art. 966 do Código Civil de 2002 revela ter o legislador adotado a teoria da empresa, em detrimento da teoria dos atos de comércio. Essa mudança obrigará a muitas das antigas sociedades civis a transferirem seus registros dos Registros Civis das Pessoas Jurídicas às Juntas Comerciais, inclusive as empresas de auditoria, pois passa a ser empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro. E para evitar que a definição de empresário fosse objeto de longas discussões doutrinárias, cuidou o legislador de defini-lo, da seguinte maneira: “Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.”

 

17. Não há dúvida que as empresas de auditoria enquadram-se perfeitamente no dispositivo, afinal exercem profissionalmente atividade (1) econômica, (2) organizada e (3) para a circulação de serviços; e, ainda, não se lhes aplica o parágrafo único deste artigo, o qual descaracteriza, como empresário, aquele que exerce profissão intelectual, de natureza cientifica, literária ou artística.

 

18. Assim, apresenta-se impossível às empresas de auditoria cumprirem as condições previstas no art. 4º da Instrução 308. Nem poderia o Registro Civil das Pessoas Jurídicas, aliás, deferir registro de sociedade nitidamente empresária, como se simples fosse, pena de prática de ilegalidade.

 

19. Qual seria, então, o tipo societário que melhor se enquadraria à Instrução 308?

 

20. Além das sociedades não personificadas - em comum e em conta de participação -, o Código Civil regula as sociedades personificadas, a saber, simples, em nome coletivo, em comandita simples, limitada, anônima, em comandita por ações e cooperativas.

 

21. As sociedades não personificadas, por motivos óbvios, as simples, pelo que já ficou demonstrado acima, a anônima, pois independentemente de seu objeto será sempre empresária (art. 982, parágrafo único do Código Civil de 2002 e art. 2º, parágrafo 1º da Lei 6.404/76), e a cooperativa, porque será sempre simples, não se coadunam com o inciso III do art. 4º da Instrução 308 Restam, pois, 4 alternativas, as quais passamos a analisar.

 

22. A principal característica da sociedade limitada é a limitação da responsabilidade dos sócios ao valor de suas quotas. Apenas na falta de integralização do capital social haveria uma ampliação da responsabilidade. Mas, mesmo nesse caso, não se revelaria ilimitada, pois o que persegue a lei é tão somente a complementação do capital social. Assim, com a integralização, exaure-se, em princípio, a responsabilidade dos sócios, restando àquele que houver efetuado a integralização ação regressiva contra os demais sócios, ou contra o sócio remisso, se for caso. Dessa forma pensava Egberto Lacerda Teixeira, autor da célebre obra “Das Sociedades por Quotas no Direito Brasileiro”, que assim se posicionou a respeito do tema: “(...) todos os sócios têm a sua responsabilidade limitada a uma certa cifra, que na sociedade por quotas é, em caso de falência, o montante do capital social não realizado (...)”.

 

23. Ou seja, a prevalecer a condição imposta pela CVM, de não aceitar o registro de empresas de auditoria constituídas por tipos societários que se caracterizam pela limitação da responsabilidade dos sócios, a limitada estaria – como já estava – excluída do rol de opções.

 

24. A sociedade em comandita simples não encontra melhor sorte. O art. 1.045 do Código Civil de 2002 prevê duas categorias de sócios: os comanditados, responsáveis solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais; e os comanditários, obrigados somente pelo valor de sua quota.

 

25. O mesmo ocorre com a sociedade em comandita por ações. Com efeito, determina o art. 281 da Lei 6.404/76 que “Ficam ilimitada e solidariamente responsáveis, nos termos desta lei, pelas obrigações sociais, os que, por seus nomes, figurarem na firma ou razão social.” Como, a contrario sensu, os sócios que não configurarem na firma ou razão social não respondem da forma pretendia pela autarquia, esse tipo fica afastado pela Instrução 308.

 

26. Um outro tipo societário, que vinha caindo em desuso justamente porque não permitia aos sócios conhecer a extensão da responsabilidade, revela-se, diante do Código Civil vigente, o mais adequado às pretensões da CVM: a sociedade em nome coletivo.

 

27. Ao determinar que a empresa de auditoria se constituísse sob a forma de sociedade civil, e ainda exigir que os sócios respondessem solidária e ilimitadamente, a autarquia pretendeu dar maior segurança ao mercado, na medida em que atos abusivos praticados pelos sócios, mas de difícil comprovação, não ficavam protegidos pelo escudo da pessoa jurídica.

 

28. Nesse sentido dizia o art. 316 do revogado Código Comercial que “Nas sociedades em nome coletivo, a firma social assinada por qualquer dos sócios-gerentes, que no instrumento do contrato for autorizado para usar dela, obriga todos os sócios solidariamente para com terceiros e a estes para com a sociedade, ainda mesmo que seja em negócio particular seu ou de terceiro...”. Já o art. 1.039 do Código Civil de 2002 tratou do tema de forma mais sintética: “Somente pessoas físicas podem tomar parte na sociedade em nome coletivo, respondendo todos os sócios, solidária e ilimitadamente, pelas obrigações sociais.” Esse é, enfim, o tipo que se harmonizaria com a Instrução 308, inclusive no tocante ao inciso II do art. 4º desta Instrução, que exige sejam todos os sócios contadores, portanto, pessoas morais.

 

29. Em suma, a primeira conclusão a que se chega, após tudo o que foi exposto, é que, em seu nascedouro, a Instrução 308 já estava maculada pelo vício da ilegalidade, pois não cabia à autarquia exigir que respondessem os sócios solidariamente com a sociedade.

 

30. A segunda é que a Instrução 308 foi derrogada, não mais encontrando suporte legal a exigência de se constituírem as empresas de auditoria sob a forma de sociedade civil. Aliás, não se lhes aplica tampouco a estrutura da sociedade simples, porque essa se caracteriza por não exercer profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou serviços.

 

31. A terceira é que, apenas por força do art. 2.031 do Código Civil, que estabelece prazo de 12 meses para que as sociedades se adaptem às disposições da lei, o qual, aliás, está perto de seu fim, tentou-se aqui encontrar uma solução para que as empresas de auditoria não deixem de cumpri-lo. Todavia, revelou-se cristalina como água a necessidade de se proceder a uma revisão na própria Instrução. Ou seja, esta deveria se adaptar à lei básica do direito privado, e não a lei a um ato administrativo.

 

32. A quarta é que, diante do leque de opções oferecido pela legislação, e ainda em decorrência das exigências contidas na Instrução 308, a alternativa para as empresas de auditoria é a sociedade em nome coletivo, que representa, no entanto, um grande inconveniente, qual seja, o de se constituir por firma. Isso não exigiria o abandono, pelas empresas de auditoria, da marca pela qual são conhecidas, e que se apresentam, as vezes, mundialmente, mas obrigaria à adoção de firma, em detrimento da denominação.

 

33. A quinta e última, e a mais importante, é que o mercado de valores mobiliários deve ser fomentado; deve, também, ser regulado e fiscalizado, de modo a evitar as catastróficas experiências vividas recentemente por alguns dos mais desenvolvidos países do planeta, mas, sobretudo, que isso seja feito na forma da lei.

 

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* Advogado em São Paulo, com MBA Executivo em Administração de Empresas pelo IBMEC Business School; Pós-graduando em Direito Empresarial pela PUC/SP; Membro do IBDS e diretor jurídico corporativo do Grupo ACCOR BRASIL

 

"Todas as opiniões expressas no texto são pessoais do autor e não refletem o pensamento de nenhuma instituição a que pertença."

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