Migalhas de Peso

Quanto custa a criatividade judicial

Não sei quanto aos meus pares, mas quando tomei conhecimento da decisão da Seção Especializada em Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho (proc. TST-E-RR-435.2000-003-15-00.0), no sentido de que o limite semanal de 36 horas (inc. XIV do art. 7o. da Constituição) não é passível de negociação coletiva, fiquei surpreso.

7/10/2003

Quanto custa a criatividade judicial

Mário Gonçalves Júnior*

"Em terra de cegos quem tem um olho é rei".

Não sei quanto aos meus pares, mas quando tomei conhecimento da decisão da Seção Especializada em Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho (proc. TST-E-RR-435.2000-003-15-00.0), no sentido de que o limite semanal de 36 horas (inc. XIV do art. 7o. da Constituição) não é passível de negociação coletiva, fiquei surpreso.

A jurisprudência do próprio TST, sedimentada na OJ 169, parece claramente admitir negociação coletiva em matéria de jornada de turnos de revezamento.

O Ministro Relator Carlos Alberto Reis de Paula justificou que a OJ 169 só se refere à jornada diária de 6 horas, que até pode ser alargada para 8, mas, numa semana inteira, o trabalho não pode ultrapassar 36 horas, porque este último limite garantiria a saúde do trabalhador submetido a rodízio de horários.

A se seguir nessa trilha, não demora revogarem, também, a possibilidade de redução de salários proporcional à redução de jornada, historicamente admitida por força dos incisos VI e XIII do mesmo dispositivo constitucional. Logo haverá quem sustente que o salário, por sua natureza alimentar, também estaria tutelado por preceitos rígidos de proteção à saúde do trabalhador e, sendo assim, não pode ser reduzido nem por negociação sindical.

A norma constitucional sobre negociação dos turnos de revezamento não faz distinção alguma. Aliás, o inciso XIV nem dispõe sobre a quantidade de horas de trabalho por semana, mas apenas por dia: "jornada de seis horas para o trabalho em turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação coletiva". Chegou-se às "36 horas" em razão do descanso semanal (inc. XV): sobram seis dias úteis na semana, com no máximo seis horas trabalhadas em cada um deles (6 X 6 = 36).

Nada disso, entretanto, é o que mais me deixa perplexo. Nem a interpretação do TST sobre a norma constitucional (que possivelmente será revista em tempo pelo STF); nem mesmo o fato de uma posição jurisprudencial firme e relativamente antiga desmoronar como um castelo de cartas.

Essa não é primeira vez que a jurisprudência trabalhista dá uma guinada. Para ficar em apenas três outros exemplos de "virada de mesa": a adesão a programas de demissão voluntária não mais tem efeitos extintivos amplos (OJ 270); a base de cálculo do adicional de periculosidade dos eletricitários, que sempre foi o salário-base, agora é a remuneração (não porque tenha mudado a Lei 7369/85, mas porque mudou a sua "interpretação"); ainda recentemente foi cancelado o Enunciado 310 (agora ampliada a substituição processual pelos sindicatos)... Ah, sem esquecer do Enunciado 339 (estabilidade do suplente de CIPA) que, comparado à jurisprudência que lhe antecedeu, foi também, metaforicamente falando, uma "bofetada" e tanto.

Tal como se vivêssemos todos em "terra de cegos" (num bem conhecido ditado popular), quando repentinamente aportasse um caolho com sua natural vocação à coroa. Guindado a rei, com um olho apenas vê o que todos os súditos nem desconfiam mesmo a "um palmo do nariz"!

Ficou em mim uma sensação estranha e incômoda. Li novamente a OJ 169 (depois de conhecer os fundamentos da decisão da SBDI-1, é claro) e me perguntei mentalmente: como não "percebi" isso, ou seja, que a OJ (169), tal como o inciso XIV do art. 7o. da CF, não trata do limite semanal de 36 horas?!? Estava lá, parecia-me, mas não estava, ao menos não expressamente, e eu simplesmente não vi?!

É nisso que dá essa cultura epistolar. O que não está expresso, literalmente escrito, com todas as letras, sílabas e palavras, não se pode deduzir, nem que seja por demais óbvio. Não há nada em entrelinhas, como se costuma dizer, quase nunca. Sem redundâncias e pleonasmos jurídicos, ninguém está seguro em "terra de cegos"!

O melhor sistema judiciário que se pudesse imaginar não seria infalível, é verdade. O princípio da segurança jurídica, embora um ideal desejável, sob um certo aspecto não é mais do que um dos muitos mitos que não conseguimos abandonar completamente.

Jerome Frank (Law and the modern mind, New York, nchor Books/Doubleday & Company, Inc., 1948), como lembra Lídia Reis de Almeida Prado (O Juiz e a Emoção – Aspectos da Lógica da Decisão Judicial, Millenium, 2a. ed., Campinas, 2003, págs. 17/18), "dedicou-se a uma análise de conjunto sobre a ordem jurídico-positiva, bem como ao estudo do papel do juiz na produção do Direito.

"Nos parâmetros da corrente jusfilosófica de que é adepto, Frank elucida que não existe certeza, segurança ou uniformidade do Direito, no momento de sua aplicação. Segundo ele, nas sociedades complexas, as decisões jurídicas teriam um caráter plástico e mutável, com o objetivo de adaptarem-se às sempre novas situações da vida social. Assim, entende ser essa dimensão de incerteza a responsável pelo progresso do Direito. Cita muitos exemplos em que a variação da composição pessoal de uma Corte, em razão de falecimento ou de nomeação de algum de seus membros, provoca uma mudança de decisão.

"De acordo com o autor, o desejo de uma excessiva estabilidade jurídica não surge de necessidades práticas, mas de um anseio de algo mítico. É interessante – prossegue – que as pessoas não se espantem com as mudanças jurídicas por via legislativa, mas se assustem com a falta de previsibilidade dos juízes. Afinal, busca-se a segurança no substituto do pai, no Juiz Infalível, o qual vai determinar, de modo seguro, o que é justo e o que é injusto.

"Para essa falácia da plena segurança e certeza jurídicas colaboraria também a tendência do homem a fugir das realidades inquietantes ou desagradáveis e refugiar-se na ilusão de um mundo perfeito".

Tudo bem que a segurança absoluta não exista, nem no Direito. Mas o fato de espantar mais uma decisão judicial inovadora do que uma lei nova se explica, talvez, pelo ditado por mim há pouco lembrado da "terra de cegos" (onde "quem tem um olho é rei"): a lei nova regerá os fatos futuros; a decisão judicial até pode gerar efeitos para o futuro (relações jurídicas continuativas, por exemplo), mas parte de uma lei que já existe. Portanto, quando a sua "interpretação" (a da lei pretérita) é bruscamente alterada, aqueles que não tiverem agido de acordo com a nova interpretação saberá, pela primeira vez, que agiu "ilegalmente". É de enregelar a espinha!

Ainda que segurança inabalável seja um utopia, a instabilidade causada por tantos terremotos jurisprudenciais também não deveria encher os olhos. Não dos que têm consciência de quanto pode custar a inversão da corrente. O que antes era "legal", da noite para o dia passa a ser considerado "ilegal". Entra para o chamado passivo oculto das empresas (afinal, o que já está feito não tem remédio "ad nutum"). Influencia decisivamente nos seus balanços. É uma espécie de bomba-relógio que estourará, na melhor das hipóteses, quando essas empresas forem vendidas. Isto, se não detonada uma enxurrada de ações judiciais inspiradas na nova vertente jurisprudencial.

O abuso da extravagância em decisões judiciais pode ter um efeito catastrófico. Já é tempo de admitir a insegurança jurídica e buscar algum princípio que valorize uma certa estabilidade jurisprudencial, sem prejuízo do método histórico de interpretação.

Visto por este ângulo, dá para ter uma idéia do que quis dizer Félicité Lamennais: "Quando imagino que um homem julga um outro homem, sou tomado por um grande calafrio" (apud Almeida Prado, ob. cit., XVII).

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*Advogado do escritório Demarest e Almeida Advogados


 

 

 

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