Migalhas de Peso

A MP 808 caducou e levou com ela o seu assunto (a lei 13.467/17)

O que se sabe, resgatando os dados históricos, é que a "reforma" foi entregue à sociedade de forma atabalhoada e açodada, mirando apenas os interesses do grande capital, para minimizar problemas de ordem política enfrentados pelo governo.

4/5/2018

Um amigo outro dia me indagou sobre qual teria sido a estratégia ao deixarem a MP 808 caducar.

Estava já pensando em escrever sobre o fim da MP 808 e confesso que essa pergunta me causou perplexidade, pois não estava pensando a questão por esse prisma.

Teriam traçado alguma estratégia? E se o fizeram, quem, concretamente, seriam os autores? Afinal, quem seriam essas pessoas que estariam no comando dessa história?

Refletindo sobre essa questão, a única resposta que me pareceu viável, coerente com o histórico da "reforma", é a de que não há estratégia nenhuma em nada do que está acontecendo, o que nos conduz a uma constatação ainda pior, que é a de que o barco, efetivamente, está à deriva.

Em concreto, a redação da lei 13.467/17 não tem autoria. Não houve a formação de uma comissão, formada por juristas ou outros profissionais ligados às questões sociais, econômicas e jurídicas pertinentes às relações de trabalho, responsável pela redação da lei. Não existindo essa comissão, não há, inclusive, interlocutores com quem se possa dialogar para compreender melhor os meandros, os objetivos e a literalidade da lei, ou de quem se possa cobrar responsabilidades pelas inseguranças jurídicas a que se submeteram milhões de trabalhadores e milhares de empregadores.

O que se sabe, resgatando os dados históricos, é que a "reforma" foi entregue à sociedade de forma atabalhoada e açodada, mirando apenas os interesses do grande capital, para minimizar problemas de ordem política enfrentados pelo governo.

Nunca houve uma estratégia de natureza jurídica para o real enfrentamento dos problemas sociais, humanos e econômicos ligados à estruturação do modo de produção e da circulação de capital, que se perfaz por meio do consumo de mercadorias e da padronização de condutas sociais, notadamente a da obrigatoriedade da venda de força de trabalho como meio de sobrevivência. O que se viu foi, meramente, o lançamento ao ar de argumentos vazios, retirados da cartola, no sentido de que a suposta lei retrógrada trabalhista brasileira atravanca a oferta de empregos e que a modernização das relações de trabalho exigia uma lei moderna, sendo que, com isso, ou seja, com a criação de uma nova lei forjada em gabinete (sem que saiba até hoje em qual local e por quem foi feita) todos os problemas estariam resolvidos e o desemprego e a crise econômica seriam eliminados.

Mas, o que já é possível ver é que bem ao contrário do que previam os "iluminados" defensores da "reforma", o desemprego só aumentou desde a edição da lei e a oferta de trabalho vai na direção da precarização, aprofundando, de forma crescente, os problemas sociais, humanos e econômicos1.

O que se viu, também, foi muita gente defendendo a lei da "reforma", mas que jamais se deu ao trabalho de ler a lei e os poucos que a leram e ainda a defendem certamente o fazem sem o mínimo de acuidade jurídica.

Dentro desse contexto, são raros os que hoje, sem comprometimento pessoal de qualquer ordem, consideram que a lei 13.467/17 não representou um autêntico desastre para as relações de trabalho no Brasil e para a economia nacional.

Então, quem se der ao desafio de formular uma resposta à indagação feita pelo meu amigo chegará à conclusão desesperadora de que não há ninguém no comando dessa nau. Não há estratégia de coisa alguma. O que se tem é só uma tentativa torpe e medíocre de tirar vantagem particular e imediata de uma situação artificialmente criada, sem qualquer preocupação estrutural ou estruturante.

Para alguns, só impulsiona a glória de ter contribuído para que alguns interesses do grande capital se tornassem normas do Direito do Trabalho, com a contradição insuperável de que o Direito do Trabalho existe, precisamente, para limitar os interesses do capital para que valores humanos mínimos seja preservados nas relações de trabalho.

Para outros, o impulso é o aumento de lucros imediatos facilitado pela maior possibilidade de exploração do trabalho que é dada pelos contratos precários, sem limitação da jornada e sem interlocução sindical, não se fazendo a mínima consideração do quanto são perniciosas para os interesses econômicos mais duradouros a redução de direitos trabalhistas e sociais, que permitem maior distribuição da riqueza produzida e, com isso, o favorecimento ao consumo que retroalimenta a produção e permite, de fato, a realização do lucro, e que também preservam a classe operária produtiva diante das contingências sociais, evitando, inclusive, o aumento do preço da força de trabalho.

A única lógica que se extrai dessa visão imediatista é a de tirar o máximo proveito possível enquanto a barbárie não vem.

Tivessem um mínimo de planejamento não deixariam que a situação atingisse ao presente estágio, que é o da balbúrdia jurídica total, com a ressalva de que talvez fosse mesmo inevitável chegar aonde se chegou, já que, como diz o ditado popular, pau que nasce torto, morre torto.

Lembre-se que o advento de uma Medida Provisória foi o argumento utilizado por muitos senadores para que uma lei com vários dispositivos assumidamente inconstitucionais ou de má técnica fosse aprovada.

Desde então a situação se tornou incorrigível.

Quando os senadores agiram desse modo, a legitimidade da lei estava dada.

Ora, no Estado Democrático de Direito só tem autoridade de lei a regulamentação que emerge da vontade popular, que, nas democracias representativas, se substitui pelas instituições que, pelo voto, atuam no processo legislativo, regulado constitucionalmente.

Assim, o vício formal na elaboração de uma lei gera o efeito inevitável da perda de sua legitimidade, que sequer precisa ser declarada judicialmente tal é a gravidade da irregularidade.

Não se pode deixar de reconhecer que os senadores não votaram o texto que lhes foi submetido. De fato, aprovaram um texto ainda inexistente, mesmo que o teor desse texto desconhecido tivesse sido enunciado pelo senador Romero Jucá, brandindo, de forma até caricata, uma folha de papel, que estaria assinada pelo Presidente da República.

Esse fato, de conhecimento público, é mais que suficiente para negar legitimidade à lei 13.467/17.

Mas há mais. A lei 13.467/17 foi publicada no Diário Oficial da União em 14 de julho de 2017, com vigência prevista para o dia 11 de novembro do mesmo ano.

Passaram-se quase quatro meses e a medida provisória não veio e a lei entrou em vigor sem que a tal "correção" tivesse vindo, em clara demonstração de que não era de "pequenos defeitos" que se cuidava.

A medida provisória, número 808, só veio ao mundo jurídico em 14 de novembro de 2017, trazendo nada mais, nada menos, do que 84 alterações na lei 13.467/17.

Depois disso, o Congresso Nacional teve quatro meses para aprovar a MP 808, mas não o fez, e em 23 de abril de 2017, como se sabe, a MP 808 caducou.

É bastante revelador o fato de que 08 meses não foram suficientes para que o governo e o Congresso formulassem e aprovassem os acertos em uma lei cujo teor foi elaborado e aprovado em 2 meses.

O efeito insofismável de tudo isso é o de que a MP caducou e levou consigo qualquer possibilidade de se reconhecer alguma legitimidade à lei 13.467/17.

O raciocínio para se chegar a essa conclusão é bastante fácil de ser formulado: os senadores não podiam ter abdicado do seu dever de legislar, mas mesmo admitindo, com muito esforço de tolerância democrática, a validade do procedimento adotado, sem a existência concreta da medida provisória não se tem mais nenhum argumento para atribuir legitimidade ao processo legislativo de aprovação da lei 13.467/17, ainda mais depois que a MP 808 explicitou alguns dos diversos problemas da lei.

E é bom que se diga, não há qualquer mecanismo jurídico que possa superar esse vício formal de ilegalidade e de ilegitimidade.

Não o poderá fazer, por exemplo, a Comissão criada no TST, para apresentar uma "regulamentação" da lei, vez que não é da competência de um órgão jurisdicional "regulamentar" lei.

Também isso não poderá ser feito, como chegou a sugerir um congressista, por meio de decreto legislativo, vez que o decreto legislativo, que não é lei, é destinado, nos termos do § 3º do art. 62 da Constituição Federal, a disciplinar as relações jurídicas que tenham sido constituídas como decorrência da medida provisória que caducou, conforme se extrai, também, no teor do § 11 do mesmo artigo.

A MP 808 não criou nenhum tipo de relação jurídica. Apenas trouxe novas formas de regulação para questões específicas em relações jurídicas já existentes. Então, não há o que se possa fazer, em termos regulatórios, pela via do decreto legislativo.

Cumpre deixar claro que não se pode cogitar de rigor excessivo nessa visualização limitada das possibilidades conferidas ao decreto Legislativo para "regular" a lei 13.467/17, já que se está diante de uma situação no mínimo inusitada, não prevista constitucionalmente, da edição de uma medida provisória para suprir omissão do Senado e corrigir um texto de lei.

É evidente que o constituinte não regulou essa hipótese e não poderia, portanto, ter conferido ao decreto legislativo, cabível apenas quando uma medida provisória não se converta em lei, o alcance de regular uma lei mal elaborada.

Assim, qualquer tentativa do Congresso de criar direitos ou obrigações por meio de decreto Legislativo representará mais uma afronta direta à Constituição Federal, trazendo nova fonte de insegurança jurídica.

Na situação presente já se vislumbram discussões quase infindáveis acerca de quais seriam, efetivamente, os contratos atingidos pela nova lei; do alcance da figura do trabalho intermitente; da configuração jurídica da suposta terceirização da atividade-fim; da validação das cláusulas de negociação coletiva na sua relação com o legislado; da aplicação das regras processuais etc.

Para o futuro não muito distante, o que se pode prever é um ataque ainda maior à Justiça do Trabalho, que pode até chegar à inconsequente proposta de sua extinção, apenas para que essa instituição, cumprindo o seu dever funcional, constitucionalmente assegurado, não revele todas as impropriedades técnicas da lei 13.467/17 e até consiga rechaçar parte delas.

Até o momento o que se tem como certo é o advento de uma lei flagrante e irremediavelmente ilegítima, sendo que para o bem da segurança jurídica de todos, o caminho menos traumático é o da sua imediata revogação, pois, do contrário, pode se acabar atribuindo validade jurídica a uma lei cujo processo legislativo afrontou a Constituição, abrindo-se ainda mais a porta para que a Constituição deixe de ser parâmetro de garantia aos cidadãos, pelo que, também, se alimentarão e se prorrogarão indefinidamente as inúmeras inseguranças jurídicas que decorrem da lei 13.467/17, cujos complicadores, inclusive, se multiplicarão a cada tentativa de correção pontual, gerando, ao mesmo tempo, enorme sofrimento nas relações de trabalho, agravamento da crise econômica e aprofundamento do drama social, com o consequente aumento da criminalidade.

Portanto, só mesmo a total abstenção do senso de responsabilidade explica que se leve em frente toda essa balbúrdia jurídica trazida pelo advento da lei 13.467/17, que a muitos, tragicamente, se apresenta como uma espécie de questão de honra.

Diante dos dados que já se apresentam como efeitos da "reforma", é urgente fazer com que o interesse e o compromisso sociais prevaleçam sobre a vaidade, o individualismo, o imediatismo e o desconhecimento.

O tempo de brincar de iluminado inconsequente acabou!

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1 Desemprego a 13,1% se soma à incerteza política e reforça freio à retomada econômica.

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*Jorge Luiz Souto Maior é professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP.

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