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Apreensão de veículos e IPVA

O Superior Tribunal de Justiça, através de despacho de seu presidente, proferiu decisão que possibilita a apreensão, em fiscalizações de trânsito (“blitz”), de veículo cujo IPVA respectivo esteja em atraso.Esse entendimento, apesar do reconhecido saber do magistrado que a proferiu, é, sobre todos os aspectos, lamentável. Viola direitos fundamentais do cidadão, é desproporcional, e ainda abre grave precedente para que o Estado aja com arbitrariedade na cobrança de tributos.

30/9/2003

Apreensão de veículos e IPVA

 

Raquel Cavalcanti Ramos Machado*

 

O Superior Tribunal de Justiça, através de despacho de seu presidente, proferiu decisão que possibilita a apreensão, em fiscalizações de trânsito (“blitz”), de veículo cujo IPVA respectivo esteja em atraso. O fundamento da decisão, como noticia o próprio endereço eletrônico do STJ, é o de que "o Estado encontra-se em dificuldade para exercer suas funções administrativas do poder geral de polícia e de fiscalização, seja pela interferência em suas funções, previstas em legislação federal e constitucional, seja pela dificuldade de interpretação da decisão atacada". Esse entendimento, apesar do reconhecido saber do magistrado que a proferiu, é, sobre todos os aspectos, lamentável. Viola direitos fundamentais do cidadão, é desproporcional, e ainda abre grave precedente para que o Estado aja com arbitrariedade na cobrança de tributos.

 

Não se nega que o Estado possa fiscalizar seus contribuintes, e os veículos que por suas vias transitam. O que não se admite é que a posse e o uso do veículo seja condicionado ao pagamento de tributos sobre ele incidentes. Seria como desalojar, de modo unilateral e sem amparo judicial, os proprietários de uma residência inadimplentes em relação ao IPTU. Aliás, a apreensão de bens como forma coercitiva para o pagamento de tributos sempre foi repelida pela jurisprudência do STF, como se depreende de sua Súmula n.º 343.

 

É evidente que o Estado pode apreender um veículo, mas apenas caso este esteja oferecendo riscos à coletividade, por estar trafegando sem faróis, ou sem freios, por exemplo. Quanto ao IPVA em atraso, deve ser lançado, oferecendo-se direito de defesa ao contribuinte, aparelhando futura ação de execução fiscal, contra a qual poderão ser opostos embargos. Assim, obviamente, a impossibilidade de apreensão para coagir ao pagamento do IPVA não prejudica o poder de fiscalização do trânsito, nem o exercício do poder de polícia, nem muito menos a fiscalização e a cobrança de tributos. A única “segurança” (inválida) que a possibilidade de apreensão oferece ao Estado é a de que o contribuinte não questionará o valor exigido. O truculento meio de cobrança ensejará um pagamento imediato e indiscutido. E é exatamente por conta disso que a apreensão é inconstitucional, pois despreza o direito do cidadão de somente ter um bem retirado de seu patrimônio depois de observado o devido processo legal, seja administrativo, seja judicial.

 

Ora, nos termos da decisão, o simples fato de o Estado exigir o IPVA, por mais descabido que seja, dá-lhe o direito de apreender o veículo respectivo, caso o contribuinte não pague o tributo nos exatos termos em que exigido. Tem o contribuinte, para trafegar com seu veículo, de pagar o tributo de imediato, ainda que cobrado em valor exorbitante, para somente, então, pedir de volta o valor pago a maior, recebendo-o sabe-se lá quando. Em verdade, além de violar o direito dos contribuintes ao devido processo legal, essa decisão torna sem utilidade as diversas normas processuais sobre a cobrança do crédito tributário. De fato, se o Estado pode apreender o veículo com o fim de cobrar tributo, é evidente que não se utilizará da execução fiscal, pois dificilmente o cidadão deixará de pagar o tributo nessas condições, por mais indevido que seja, e, mesmo no caso de insistir em não pagar, o valor do veículo supera em muito o valor do tributo, não tendo o Estado qualquer interesse em executá-lo.

 

De todo modo, ainda que se admita que o valor exigido a título de IPVA seja sempre devido, a decisão que aceita a medida do Estado viola Constituição em outro ponto, pois aceita medida desproporcional. Realmente, é evidente que não existe proporção entre a pena aplicada (apreensão do veículo) e a alegada infração cometida (não recolhimento do IPVA). Além de, como dito, o carro ser de valor bastante superior ao do tributo (que é calculado em percentual sobre o valor do carro), é inegável que o Estado dispõe de outros meios menos gravosos para exigir tributo que entende devido.

 

Em verdade, essa decisão é fruto de uma lamentável época em que o exercício do direito de defesa do contribuinte é visto como meio de protelar a inadimplência, e em que o Fisco é tido como cobrador dos valores – sempre devidos – necessários à realização do interesse público. Esse entendimento, com todo o respeito, ignora, por completo, a realidade brasileira, pois tanto se sabe das inúmeras cobranças indevidas de tributos, seja em face de leis inconstitucionais, seja em face do simples autoritarismo de alguns agentes fiscais; como se sabe que os valores arrecadados a título de tributo não se prestam para a realização do interesse público. Além disso, em matéria de obrigações pecuniárias, o Estado possui o melhor aparelho coator: de modo válido, pode utilizar-se da execução fiscal para cravar o patrimônio e exigir o pagamento ou a penhora do valor respectivo de um título constituído unilateralmente. O cidadão, ao contrário, caso queira exigir um valor do Estado tem de ir a juízo, passar longos anos para constituir um título executivo contra o Fisco, para, somente então, poder receber através do moroso pagamento de precatórios, o valor respectivo. Se mesmo assim, ainda se afirma que o Estado está impossibilitado de exercer o poder de polícia e de fiscalizar, então é melhor desprezar de vez e por completo a Constituição e deixar que o Fisco aja da maneira que entender, sem qualquer possibilidade de o contribuinte se defender de modo útil.

 

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* Advogada e membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários.

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