Tem causado polêmica o Projeto de Lei 7448/17, atualmente aguardando a sanção ou veto presidencial. De autoria do Senador Antônio Anastasia do PSDB/MG, o projeto visa acrescer à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB (Decreto-Lei 4.657/42) dispositivos que impactam diretamente nas atividades de controle externo, administrativa e judicial.
O projeto pretende trazer a visão de um Direito Administrativo atualizado, deslocando o centro do sistema jurídico do ato administrativo para o processo administrativo, uma vez que estimula a participação efetiva do cidadão na tomada de decisão governamental e a adoção de soluções consensuais, dialógicas, visando reduzir a imperatividade estatal. Desse modo é forçoso reconhecer, de antemão, alguns pontos meritórios capazes de tornar o processo de decisão administrativa mais democrático e permeável à participação direta da população. Todavia, apesar de estimular a participação popular na tomada de decisão governamental, o projeto, desde o seu início, pecou justamente pela ausência de debates, de audiências públicas entre os diversos atores envolvidos com o tema. Sua tramitação em regime de prioridade, não permitiu a discussão e a votação em plenário, comprometendo ainda mais sua transparência.
A própria via eleita para tal inovação legislativa foi inadequada. Ora, a LINDB se
destina a servir como "Lei das leis", ou seja, para versar essencialmente sobre interpretação, integração, aplicação, vigência e eficácia das demais normas. O referido projeto, em certa medida, desfigura a essência da LINDB, quando, por exemplo, cria direitos subjetivos como a possibilidade de defesa de gestores pela advocacia pública ou inova ao instituir uma ação específica de controle de atos administrativos.
É oportuno lembrar que o fim do absolutismo estatal e o surgimento da sociedade contemporânea ocidental foram resultado do movimento iluminista que preconizava justamente a redução do poder do Estado em face do cidadão, cujo marco histórico foi a Revolução Francesa de 1789. Esse movimento lançou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, cujo art. 15 continha a base do controle, ao estabelecer que "A sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público pela sua administração". Portanto, o ordenamento jurídico deve ter em conta que os órgãos de controle representam "os olhos e ouvidos do cidadão", vale dizer, o fortalecimento do cidadão. Desse modo, o esvaziamento do princípio da prestação de contas reduz significativamente o dever constitucional do gestor de comprovar a boa e regular aplicação dos recursos públicos a ele confiados.
Feitas essas considerações iniciais, o primeiro ponto a merecer ressalvas no PL 7448/17, dado os seus impactos na atuação dos órgãos de controle, é o acréscimo do art. 28 à LINDB, o qual limita a responsabilização do agente público somente às hipóteses de dolo ou erro grosseiro. Veja, a comprovação pelos órgãos de controle do dolo, ou seja, da vontade do agente em produzir determinado resultado ou aceitá-lo, exigiria, por vezes, instrumentos investigativos que não estão ao alcance dessas instituições, tais como a quebra de sigilo bancário, fiscal e telefônico, típicos dos órgãos de polícia judiciária.
Em relação ao erro grosseiro, por se tratar de conceito jurídico indeterminado, poderá acarretar imprecisão no seu alcance. Pergunta-se: em que medida uma pesquisa de mercado mal conduzida que cause um superfaturamento pode caracterizar um erro grosseiro? Nessa conjectura, afastadas as circunstâncias de negligência, imperícia e imprudência causadoras de erro grosseiro, ou não comprovado o dolo, ainda que o agente público tenha causado danos relevantes ao erário, conseguirá eximir-se de sua responsabilidade.
Ressalte-se que parte considerável dos comportamentos causadores de dano ao erário encontra-se neste espectro, por não se configurar como erro grosseiro, a exemplo da utilização do "jogo de planilha", que consiste na manipulação sofisticada da planilha orçamentária com intuito de superfaturar uma obra pública, bem como devido às já mencionadas dificuldades de comprovação do dolo.
O PL possibilita também a exclusão de responsabilidade do agente, mesmo que sua conduta irregular possa ser considerada a princípio como erro grosseiro, bastando para isso estar baseada "em jurisprudência ou doutrina, ainda que não pacificadas, em orientação geral ou, ainda, em interpretação razoável, mesmo que não venha a ser posteriormente aceita por órgãos de controle ou judiciais", abrindo perigoso espaço para a impunidade. Tal ponto de vista presente no PL é incompatível com a ideia de segurança jurídica, a qual repele teses extravagantes como fundamento de decisões, prestigiando a jurisprudência consolidada e as soluções administrativas estáveis, tratando-se de verdadeiro estímulo às decisões administrativas contra legem, em desprestígio ao Poder Legislativo.
Outro ponto preocupante diz respeito à flagrante inconstitucionalidade do art. 25, o qual possibilita ao ente estatal (União, Estado ou Município) propor ação no Poder Judiciário visando à declaração da validade do ato, contrato, processo ou norma, cuja sentença terá eficácia erga omnes, ou seja, para toda a Administração, esvaziando completamente a competência constitucional do Tribunal de Contas da União de fiscalizar os atos e contratos da administração pública, prevista no art. 71 da Constituição Federal, em flagrante violação à independência dos Poderes.
Por fim, cabe uma crítica à redação do art. 21, que parte do preconceito de que as decisões ordinárias dos órgãos de controle não apresentam uma fundamentação satisfatória. O texto impõe ao controlador a indicação expressa das consequências jurídicas e administrativas de sua decisão. Andaria melhor o projeto de lei se exigisse a prévia oitiva do gestor quanto às consequências jurídicas e administrativas da invalidação do ato ou contrato, a fim de que possa ser considerado o custo benefício da decisão a ser proferida, medida que inclusive já é naturalmente adotada pelos órgãos de controle.
Em conclusão, a mudança legislativa, a pretexto de produzir uma "Virada de Copérnico" na relação entre os órgãos de controle e a administração pública em prol dos administrados, acaba por enfraquecer os instrumentos de controle a serviço do cidadão, último destinatário do serviço público.
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*Alcir Moreno da Cruz e Mauro Borges são auditores do TCU.