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O Direito do Futuro: Convergências entre Análise Econômica do Direito, Jurimetria e Ciência de Dados

O relevante papel a ser desempenhado por tais 3 áreas do conhecimento (Análise Econômica do Direito, Jurimetria e Ciência de Dados) no futuro, penso eu, se dará na redução de assimetrias informacionais e dos custos de transação.

2/4/2018

Não é de hoje que o direito sofre uma crise de seus paradigmas. Em 1955, San Tiago Dantas1, na aula inaugural da Faculdade Nacional de direito, já apontava que "o direito, como técnica de controle da sociedade, vem perdendo terreno e prestígio para outras técnicas [...]. A ciência da administração, a ciência econômica, as ciências que procuram sistematizar as diferentes formas de controle social, fazem progressos que algumas vezes colocam os seus métodos e normas em conflito com as normas jurídicas". O jurista considerava ser necessário "levar o direito ao tecido das relações sociais, reimpregnar dele os problemas que a sociedade submete ao controle de outras técnicas, como as que lhe são fornecidas pela Ciência Econômica e pela novel Ciência da Administração, de modo que o direito não se alheie a qualquer problema social, e tenha sob sua orientação última todos os critérios engendrados para resolvê-los." Se não tivesse falecido precocemente em 1964, acredito que o jurista teria se interessado pelo incipiente movimento da análise econômica do direito (ou Direito & Economia), que estava se iniciando na década de 1960, nos Estados Unidos da América2.

Já tive a oportunidade de chamar a atenção para a importância da economia, ao lado do direito, em outros artigos neste prestigioso portal, de modo que este não constituirá o cerne de nossa presente discussão3. Para os fins desta reflexão, gostaria de voltar nossas lentes para o futuro, com a plena ciência das diversas limitações ao fazê-lo4, e do perigo de adentrarmos no campo da "futurologia". Feitas tais ressalvas, o ponto que gostaria de frisar e refletir neste artigo é que vivemos em uma sociedade orientada por dados (data-driven society), e esta parece ser a tendência para o futuro5, de modo que o direito deverá se adaptar a este novo fenômeno.

Em uma sociedade na qual as ações de indivíduos, famílias e organizações são cada vez mais baseadas em big data, redes sociais, inteligência artificial, algoritmos e novas tecnologias, não é trivial o fato de que temos assistido a calorosos debates em relação à proteção de dados pessoais6 e aos limites da nossa vida privada. De um lado, não desejamos que toda a nossa vida seja monitorada – tal qual o Big Brother do clássico orwelliano7 –, pois isso feriria a intimidade, vida privada, honra e imagem de muitos (direitos fundamentais garantidos pela Magna Carta8). De outro lado, são inegáveis os benefícios que temos – resguardados certos limites – quando concordamos em compartilhar certos dados e informações, para usos e finalidades que venham a nos ser úteis: exemplo bastante óbvio é o do aplicativo Waze. Em meio a este mundo de volatilidade, incerteza, complexidade e ambiguidade (VUCA) em que vivemos, acredito que a visão tradicional e dogmática do direito não é suficiente para, sozinha, dar conta de todos os desafios existentes9. A provocação que arrisco fazer é que há 3 correntes de pensamento conexas ao direito que têm muito a contribuir para a compreensão desta nova realidade (data-driven society): (i) Análise Econômica do direito (AED), (ii) Jurimetria (que é sua prima mais nova) e (iii) Ciência de Dados (data science), aplicada ao direito.

Em primeiro lugar, destaco a Análise Econômica do direito (AED)10, que é o campo do conhecimento humano o qual tem por objetivo empregar variados ferramentais teóricos e empíricos econômicos e das ciências afins para expandir a compreensão e o alcance do direito, a fim de aperfeiçoar o desenvolvimento, a aplicação e a avaliação de normas jurídicas, principalmente com relação às suas consequências11,12.Nesse sentido, conforme ensina Luciana Yeung em recentíssimo artigo, "a análise econômica constitui-se em um instrumental de observação da realidade social" e, "[a]o contrário do que o senso comum adota, o objeto de estudo da ciência econômica não é o dinheiro ou a economia (no sentido de mercados de compra e venda), mas as consequências das decisões ou escolha dos indivíduos, sob quaisquer aspectos: escolhas sobre aquisições materiais sim, mas também escolhas de alocação de tempo, de planejamento de carreira, de investimento em escolaridade, de carreira, de constituição de família, e, por que não, de cometer ou não atos ilícitos"13. Na mesma linha, Thomas S. Ulen (Professor Emérito de Direito da Universidade de Illinois, EUA)14 entende que o direito e economia é "a mais importante inovação acadêmica do direito. Por quê? Porque, em suma, o uso da economia (ela própria uma disciplina científica) trouxe o método científico para o estudo do direito. A economia oferece uma teoria sobre como as pessoas respondem a incentivos e fornece uma série de técnicas empíricas para avaliar o quanto essa teoria suficientemente esclarece se e até que ponto as pessoas reagem a esses incentivos"15,16.Ora, como que o direito poderá lidar com um mundo VUCA senão mediante um estudo científico e empírico da realidade social (orientada por dados) e de como as pessoas respondem a incentivos?

Em segundo lugar, é importante frisar o papel da crescente Jurimetria17, que pode ser definida como "a disciplina do conhecimento que utiliza a metodologia estatística para investigar o funcionamento de uma ordem jurídica"18. Nesse sentido, Marcelo Guedes Nunes salienta que o "jurimetrista ideal seria, portanto, um bacharel em direito capaz de especular sobre o funcionamento da ordem jurídica e familiarizado com conceitos de direito processual e material; um estatístico capaz de discutir o planejamento de uma pesquisa e conceber testes para suas hipóteses de trabalho; e um cientista da computação capaz de operar programas para minerar e coletar dados"19.O leitor deverá ter percebido que há uma similitude e uma linha tênue entre o método da Jurimetria e o da AED20 , e não é à toa: tanto a AED21 quanto a Jurimetria22 têm um ancestral comum, o realismo jurídico, cujo maior expoente é Oliver Wendell Holmes, Jr. Juiz da Suprema Corte norte-americana, ele publicou em 1897 o célebre The Path of the Law, que já previa que o homem do futuro é o homem da estatística e o mestre de economia23 , além de defender que todo advogado deveria procurar entender economia, e atentar para o fato de que para obter algo é necessário abrir mão de outra coisa (já antecipando a noção econômica de custo de oportunidade)24.

Em terceiro lugar, fazendo uso, em certa medida, dos conhecimentos de AED e Jurimetria, temos a pioneira Ciência de Dados Aplicada ao direito, a qual, conforme recentíssimo estudo de Alexandre Zavaglia Coelho25, é a grande tendência para os próximos anos. De acordo com referido estudo26, poderíamos destacar os seguintes tópicos e tendências para o futuro: (i) direito data-driven, (ii) dados abertos e as leis de proteção de dados, (iii) small data x big data e a integração de diversas fontes, (iv) análise volumétrica, jurimetria e gestão de risco, (v) legal design, (vi) o uso das novas tecnologias e a mudança de cultura da gestão jurídica e (vii) educação corporativa, capacitação para o uso das ferramentas tecnológicas e o uso da computação cognitiva (inteligência artificial) no universo jurídico. Trata-se realmente de um "caldeirão" de novos e intrigantes conhecimentos, estudos empíricos e habilidades que serão necessários, para os quais a análise econômica e a análise jurimétrica terão – e muito – a contribuir, por muitos anos a fio. (Ouso afirmar que A Teoria Pura do direito de Hans Kelsen não será suficiente para compreender tantas novidades...)

O relevante papel a ser desempenhado por tais 3 áreas do conhecimento (Análise Econômica do Direito, Jurimetria e Ciência de Dados) no futuro, penso eu, se dará na redução de assimetrias informacionais e dos custos de transação, ou, dito de outra forma, propondo-se a resolver o grave problema de incerteza e insegurança jurídica, que assola nosso país27. A partir do momento em que teremos ferramentas econômicas, estatísticas e tecnológicas distribuídas em larga escala a um custo acessível no mercado, aptas a — fazendo uso de big data, inteligência artificial e softwares sofisticadíssimos — medir leis, carteiras de processos e decisões judiciais (com capacidade preditiva, inclusive), estarão solapadas as bases dogmáticas do direito, com consequências graves a todos os profissionais do direito, na área pública ou privada. Aqueles que acompanharem este movimento exponencial estarão em franca vantagem perante os seus concorrentes, uma vez que os seres humanos continuarão sendo imprescindíveis para a tomada de decisão e a escolha de forma inteligente28, à luz de tantos dados e informações capturados por diferentes ferramentas.

E, quem sabe, como San Tiago Dantas já dizia em 195529 , possamos "abandonar a didática tradicional, baseada na meditação em voz alta e na eloquência, para abrir espaço a outro método de ensino, mais apto a cingir o verdadeiro objetivo do ensino que ministramos." Afinal, como dizia o jurista, "[a] verdadeira educação jurídica, aquela que formará juristas para as tarefas da vida social, deve repetir esse esquema fundamental, colocando o estudante não em face de um corpo de normas, de que se levanta uma classificação sistemática, como outra história natural, mas em face de controvérsias, de conflitos de interesses em busca de solução. Só desse modo a educação jurídica poderá conceituar com clareza o seu fim, que é formar o raciocínio jurídico e guiar o seu emprego na solução de controvérsias. O estudo das normas e instituições constitui um segundo objetivo, absorvido no primeiro, e revelado ao longo do exame e discussão dos problemas". O diagnóstico está dado há mais de 60 anos: parafraseando Renato Russo, se nos derem espelhos, veremos um mundo (jurídico) doente. O remédio poderá ser uma pílula amarga: desaprender os velhos paradigmas ensinados na graduação. Mas, conforme a famosa frase do futurista Alvin Toffler, "o analfabeto do século XXI não será aquele que não consegue ler e escrever, mas aquele que não consegue aprender, desaprender e reaprender". Que todos possamos aprender, desaprender e reaprender o direito!

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1. A educação jurídica e a crise brasileira – aula inaugural dos cursos da Faculdade Nacional de Direito, em 1955. Disponível em: clique aqui

2. Para breve histórico das fases do movimento, MACKAAY, Ejan; ROUSSEAU, Stéphane. Análise Econômica do Direito. Tradução de Rachel Sztajn. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2015.

3. Vide: clique aqui; clique aqui

4. Afinal, como diria Samuel Taylor Coleridge: “A paixão cega nossos olhos, e a luz que a experiência nos dá é a de uma lanterna na popa, que ilumina apenas as ondas que deixamos para trás”.

5. A esse respeito, vide: clique aqui

6. Lembramos que não há hoje, no Brasil, lei específica a respeito da proteção de dados pessoais. Tanto é assim que a (relativamente) recente Lei nº 12.965/2014 (“Marco Civil da Internet”) prevê, em seu artigo 3º, III, que a disciplina do uso da internet no Brasil tem o princípio da “proteção dos dados pessoais, na forma da lei” (grifamos). Embora haja referência a lei específica, tal lei não foi editada até o momento. Há, contudo, projetos de leis (“PL”) que se propõem a regular o tema, quais sejam: (i) PL nº 4.060/2012, (ii) PL nº 5.276/2016 e (iii) PL nº 330/2013. Diante deste panorama legal, devem ser observadas leis gerais existentes que tratam, direta ou indiretamente, da questão da proteção de dados pessoais, com destaque para os seguintes diplomas e dispositivos legais: (a) Constituição Federal (art. 5º, X e XII), (b) Código Civil (art. 21), (c) Código de Defesa do Consumidor (art. 43), (d) Marco Civil da Internet (arts. 3º, II e III; 7º, I, II, III, VII, VIII, IX e X), (e) Lei nº 12.414/2011 (Lei do Cadastro Positivo) (arts. 4º, 5º e 9º), (f) Lei nº 9.472/1997 (Lei Geral de Telecomunicações) (art. 3º, IX) e (g) Lei nº 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação) (art. 31), dentre outras.

7. ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

8. “Art. 5º [...] X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;”

9. Nesse sentido, vide: clique aqui

10. Outrora um “patinho feio”, a Análise Econômica do Direito tem, felizmente, desabrochado no Brasil, com o Congresso Anual da Associação Brasileira de Direito e Economia (ABDE) já rumando para a sua 11ª edição: clique aqui

11. Cf. GICO JUNIOR, Ivo. Introdução ao Direito e Economia. In: TIMM, Luciano Benetti (org.). Direito e Economia no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 1.

12. Vale lembrar que a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/1942) prevê, em seu artigo 5º, que: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.” Ademais, o Projeto de Lei do Senado nº 349, de 2015 (Rel. Sen. Antonio Anastasia) visa a inserir, dentre outros, o seguinte dispositivo à referida lei: “Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem medir as consequências práticas da decisão. Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e adequação da medida, inclusive em face das possíveis alternativas”. Ou seja, pura Economia...

13. YEUNG, Luciana Luk-Tai. Análise econômica do direito do trabalho e da reforma trabalhista (Lei nº 13.467/2017). Revista Estudos Institucionais, Vol. 3, 2, 2017, p. 894.

14. E coautor da célebre obra: COOTER, Robert; ULLEN, Thomas. Direito & economia. Porto Alegre: Bookman, 2010.

15. ULEN, Thomas S. Direito e Economia para Todos. In: POMPEU, Ivan Guimarães; BENTO, Lucas Fulanete Gonçalves; POMPEU, Renata Guimarães (coord.). Estudos sobre negócios e contratos: uma perspectiva internacional a partir da análise econômica do direito. São Paulo: Almedina, 2017, p. 17.

16. O Professor chega até a defender que Direito e Economia deveria se tornar “componente padrão das ferramentas de análise de todo jurista, juiz e praticante da Lei, em todos os países” (ob. cit., p. 15). E o mesmo autor complementa: “Acredito que há razões suficientes para afirmar que a abordagem Direito e Economia já caminha em direção a esse objetivo. Por exemplo, é possível que esse objetivo já tenha sido alcançado nos Estados Unidos e em Israel. Em outros países e regiões, a difusão através da academia e da prática legal acabou de começar (como na Índia), chegou a uma fase intermédia confortável (como no Brasil, Argentina, Chile e Peru, na América do Sul, e em vários países da Europa Ocidental), ou ainda mal começou (como em grande parte do Orienta Médio e da África)” (ob. cit., p. 15).

17. Destaco o louvável papel da Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ) na divulgação de ideias e estudos empíricos.

18. NUNES, Marcelo Guedes. Jurimetria: como a estatística pode reinventar o Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 115.

19. Ob. cit., p. 112.

20. E, aqui, ouso discordar do Prof. Marcelo Guedes Nunes, quando afirma ser possível “discutir as consequências do Direito sem utilizar a economia”.

21. Cf. MACKAAY, Ejan; ROUSSEAU, Stéphane. Ob. cit., p. 8

22. Cf. NUNES, Marcelo Guedes. Ob. cit., p. 90

23. For the rational study of the law the blackletter man may be the man of the present, but the man of the future is the man of statistics and the master of economics.” (HOLMES, JR., OLIVER WENDELL. The Path of the Law. 10 Harvard Law Review 457 (1897).)

24. As a step toward that ideal it seems to me that every lawyer ought to seek an understanding of economics. The present divorce between the schools of political economy and law seems to me an evidence of how much progress in philosophical study still remains to be made. In the present state of political economy, indeed, we come again upon history on a larger scale, but there we are called on to consider and weigh the ends of legislation, the means of attaining them, and the cost. We learn that for everything we have we give up something else, and we are taught to set the advantage we gain against the other advantage we lose, and to know what we are doing when we elect.(HOLMES, JR., OLIVER WENDELL. Ob. cit.)

25. As 7 tendências para o uso de inteligência artificial no Direito em 2018. São Paulo: Thomson Reuters, 2018, p. 8.

26. COELHO, Alexandre Zavaglia. As 7 tendências para o uso de inteligência artificial no Direito em 2018. São Paulo: Thomson Reuters, 2018.

27. Por todos, destaco o recente artigo de Celso Lafer, publicado em 18 de março de 2018: clique aqui

28. Inteligência nada mais é do que intelligere, isto é, a capacidade de saber escolher.

29. A educação jurídica e a crise brasileira – aula inaugural dos cursos da Faculdade Nacional de Direito, em 1955. Disponível em: clique aqui

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*Rodrigo Dufloth é sócio da área empresarial do escritório Carvalho, Machado e Timm Advogados. Mestre em Direito Comercial na USP (Largo São Francisco). Pós-Graduando em Direito & Economia na UNICAMP. Membro da Associação Brasileira de Direito e Economia (ABDE).

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