Migalhas de Peso

Atos personalíssimos na definição da sanção ambiental

Sujeitar o autor, sem que tenha em tempo algum manifestado vontade personalíssima, à prestação de serviços é atribuir uma penalidade semelhante à pena de trabalho forçado, contrariando o artigo 5º, inciso XLVII, da Constituição.

20/3/2018

A atuação jurisdicional que possua como objeto o questionamento de sanções ambientais possui limites. Isto implica também que o órgão jurisdicional está atrelado aos limites de legitimidade do representante judicial da parte autora. Não pode a pretensão processual afastar-se do pressuposto básico de qualquer ordenamento jurídico democrático, que é o respeito aos limites constitucionais de intrusão na liberdade.

É comum na Justiça Federal, seja por meio de Advogados particulares, seja por meio da Defensoria Pública da União, o ajuizamento de ações em que um dos pedidos é a substituição da penalidade ambiental de multa pela prestação de serviços de preservação, melhoria e recuperação da qualidade do meio ambiente.

Há diversas sentenças, assim como Acórdãos dos Tribunais Regionais Federais, acolhendo o pleito de substituição, determinando o afastamento da multa para que o autor se submeta à prestação de serviços de preservação, melhoria e recuperação da qualidade do meio ambiente. O próprio Superior Tribunal de Justiça, conforme Agravo Interno no Recurso Especial 201402730384, já reconheceu essa possibilidade excepcional.

O problema é que em momento algum o próprio infrator manifestou a vontade de que a penalidade de multa fosse convertida em prestação de serviços.

O afastamento dos limites de legitimidade pode acarretar atuação do defensor prejudicial à própria autonomia da vontade do representado, assim como risco de que o Poder Judiciário imponha ao autor da ação penalidade mais gravosa do que a imposta pelo órgão ambiental. A situação determina o reconhecimento de atos de caráter personalíssimo na definição de pedidos de substituição ou conversão de sanção ambiental de multa.

São recorrentes os casos na Justiça Federal em que o autor, tido como vencedor da ação judicial, sequer foi consultado quanto à sua vontade efetiva de conversão, quanto à sua vontade de sujeitar-se à penalidade de prestação de serviços ao invés da pena patrimonial. Há casos em que o então autor, quando intimado da decisão judicial de conversão, opta por comparecer ao órgão ambiental e parcelar ou pagar a multa ao invés de prestar os serviços, isto após anos e anos de processo.

A causa primeira é uma ausência de compreensão no Judiciário, e inclusive na relação entre autor e seu representante processual, de que a substituição de uma penalidade ambiental patrimonial, a multa, pela prestação de serviços ambientais é um ato personalíssimo.

Sujeitar o autor, sem que tenha em tempo algum manifestado vontade personalíssima, à prestação de serviços é atribuir uma penalidade semelhante à pena de trabalho forçado, contrariando o artigo 5º, inciso XLVII, da Constituição. Por esta razão, tanto a lei 9.605/98, artigo 9º, quanto o decreto 6.514/08, artigo 142-A, determinam que a substituição da pena de multa por prestação de serviços ambientais deve ser a partir de requerimento do autuado. Esse pressuposto também deve ser respeitado pelo Poder Judiciário, para tanto não bastando procuração geral para o foro.

A conjuntura do caso concreto pode revelar um agravamento para o próprio autuado, ocasionado pelo pedido de substituição que lhe passa em desconhecimento e é acolhido pelo Judiciário. A conversão da multa em serviços de preservação, melhoria e recuperação da qualidade do meio ambiente poderá significar, por exemplo, a necessidade de que o autor abstenha-se de ir trabalhar em determinados dias a fim de cumprir a penalidade. Complicações de vida pessoal para ele podem surgir.

Pleitear a conversão de penalidade de multa em serviços de preservação, melhoria e recuperação da qualidade do meio ambiente, em um paradigma jurídico comprometido com a liberdade, e coerente, não pode se dar sem a manifestação de vontade do próprio autuado. Trata-se de ato personalíssimo. Ao afirmar a substituição sem o ato personalíssimo, o Judiciário estará renegando a própria autonomia da vontade do infrator e silenciando quanto à aplicação oblíqua de trabalho forçado.

O Supremo Tribunal Federal já firmou em diversos precedentes, como o HC 83411/PR, que a escolha do réu quanto ao advogado que irá fazer sua defesa é ato personalíssimo. Já o Superior Tribunal de Justiça já firmou que se um ato processual deve ser praticado pela própria parte, há necessidade de que seja ela a intimada, já que se trata de ato personalíssimo, REsp 1309276/SP. Em muito maior razão, a admissão de uma conversão de penalidade patrimonial para penalidade de obrigação de fazer há de contar com a manifestação expressa do próprio agente.

Seja a Defensoria Pública, seja o Advogado particular. Não possuem eles legitimidade para, no lugar do próprio autuado, argumentarem por outra penalidade que julgam ser melhor para seu representado. A conversão de multa simples em prestação de serviços é ato personalíssimo, depende de expressa manifestação de vontade do autuado.

_______________

Marcelo Kokke é pós-doutorando em Direito Público, mestre e doutor em Direito.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

ITBI na integralização de bens imóveis e sua importância para o planejamento patrimonial

19/11/2024

Cláusulas restritivas nas doações de imóveis

19/11/2024

Estabilidade dos servidores públicos: O que é e vai ou não acabar?

19/11/2024

Quais cuidados devo observar ao comprar um negócio?

19/11/2024

A relativização do princípio da legalidade tributária na temática da sub-rogação no Funrural – ADIn 4395

19/11/2024