É de fácil constatação que a prática de sonegação fiscal no Brasil é detentora de baixa reprovabilidade social. Ora, imagine-se em uma mesa de bar, conversando com alguns amigos. Na ocasião, você comenta que furtou o celular de um transeunte em uma rua qualquer da cidade em que mora. Certamente seus amigos mostrar-se-iam surpresos e reagiriam negativamente (é o que se espera, ao menos, não é?). Agora, sob o mesmo contexto, ponha-se narrando a prática de sonegação fiscal. Decerto, a reação do grupo de amigos seria diferente. Para o grupo, ou ao menos para a sua maioria, não haveria um indicativo de completa rejeição à prática; quiçá nem se mostraria surpreso com o relato.
Avançando com o caso hipotético, adicionemos a informação de que o valor do tributo sonegado é o mesmo que o do telefone celular no mercado. Neste cenário, haveria alguma diferença na reação do grupo de amigos? E se maior fosse o valor do tributo em relação ao valor do aparelho telefônico? Para ambas as situações, penso que a reação do grupo, senão a mesma, seria bastante parecida com a apresentada na narrativa hipotética inicialmente.
Realmente, no âmbito da criminalidade fiscal, não se vê (tanto) repúdio à figura dos infratores, que sequer provoca na sociedade uma sensação de perigo real. O sonegador, na verdade, não é visto pela sociedade como um sujeito de alta periculosidade e a prática de sonegação fiscal é cada vez mais normal e generalizada no país. Muitos que de pronto rejeitariam uma proposta de cometimento de um delito comum, mostrar-se-iam interessados em conhecer as artimanhas de ludibriar o Fisco.1
São inúmeros os fatores que influenciam diretamente o aumento da prática de sonegação fiscal no Brasil. Não se pretende enumerá-los taxativamente neste momento, mesmo porque acredito que seria uma tarefa de extrema dificuldade. De todo modo, penso que há um consenso no que diz respeito à má aplicação dos recursos públicos e à alta carga tributária como sendo típicos fatores que contribuem para o aumento da criminalidade fiscal no país.2
Ainda que não se associe a uma corrente político-ideológica mais extremada, considerável parcela da população apresenta uma espécie de rejeição ao pagamento dos impostos tal e qual lhe são cobrados (a expressão mais acertada seria "tal e qual são impostos"), em virtude dos reflexos de uma péssima gerência estatal e da alta carga tributária, o que evidenciaria uma discrepância entre o que efetivamente se paga e o que se recebe em retorno do Estado. É quando surgiria um direito de resistência diante de um Estado fiscalmente despótico, pois.3
A baixa reprovabilidade da conduta tem reflexo na própria legislação pátria, bem como na postura do Judiciário, este que, no mais das vezes, também não vê aquela figura delituosa como merecedora de uma sanção mais gravosa. A crescente aprovação moral da prática de sonegação por parte da sociedade brasileira como um todo, pode-se dizer, não embasaria um tratamento mais rígido aos crimes fiscais de um modo geral.
No Brasil, o tratamento legal conferido ao sonegador sustenta-se basicamente em duas pilastras: a baixa reprovabilidade social da conduta delituosa e a finalidade arrecadatória do Estado. Justifica-se, pois, seja pela maior aceitação social do ilícito, por não transcender os padrões éticos de um mesmo contexto histórico-social, seja pelo (real) intento do Estado de arrecadar recursos sob todo custo.
A previsão da causa especial de extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo sonegado, em particular, apesar de justificável sob um ponto de vista de política criminal, desvela, na prática, a verdadeira pretensão do Estado de instrumentalizar a norma penal como medida verdadeiramente política, fazendo do Direito Penal uma eficaz arma de cobrança de tributos, sem qualquer preocupação com a estruturação de um sistema legal apto a coibir a prática do crime fiscal sem desrespeitar o caráter subsidiário da lei penal.
Tal instrumentalização do Direito Penal, à mercê do Poder Executivo, com vistas essencialmente à cobrança de tributos, não só desvirtua a finalidade da norma penal, como ignora o seu caráter subsidiário, algo totalmente incompatível dentro de um sistema jurídico – minimamente coerente – de um Estado que se diz ser democrático e de Direito.
O tratamento legislativo no âmbito da criminalidade fiscal, vale dizer, não pode ser visto estrita e indiscriminadamente como um benefício ao contribuinte que não paga impostos4. Com efeito, não é difícil perceber que, na realidade, o Estado se vale da norma penal para compelir o contribuinte brasileiro a adimplir eventuais débitos fiscais, mediante a ameaça do caráter estigmatizante e das penas peculiares do processo penal, suscitando um ambiente de arrecadação desmedida, que olvida a conduta delitiva em si, a (real) função do Direito Penal e o Princípio da Intervenção Mínima.
Quer dizer, o Direito Penal, que deveria ser considerado a ultima ratio na proteção dos interesses coletivos, uma vez a serviço da política, é realocado a uma nova função, qual seja a de mero mecanismo de cobrança de tributos, transformando-se verdadeiramente em uma arma de coação que a qualquer momento poderá ser utilizada em face daquele contribuinte inadimplente. Seria a consolidação de um cenário de completo terror fiscal, onde o ordenamento jurídico penal passaria a se estabelecer como sola ratio quando do exercício das atribuições do Estado, numa colossal missão de arrecadação tributária?
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1 VILLEGAS, Hector. Direito Penal Tributário. Tradutores: Elisabeth Nazar e outros. São Paulo: Resenha Tributária, EDUC, 1974, p. 20
2 Em acréscimo, pode-se dizer que a deficiência fiscalizatória, a complexidade da legislação tributária brasileira e o próprio fato de o agente infrator não antever prejuízo (ao menos imediato) com a prática do delito são fatores que – dentre outros tantos – também convergem para o aumento da prática delitiva no país.
3 MONTE, Mário Ferreira. Da legitimação do direito penal tributário: em particular, os paradigmáticos casos de facturas falsas. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 396.
4 Considerar categoricamente que a legislação penal-tributária brasileira beneficia o agente delituoso seria ignorar que o crime de sonegação fiscal não mais pode ser enquadrado na categoria de "crime de colarinho branco", porquanto a prática do crime mostra-se disseminada por todos os estratos sociais, a incluir aqui, aqueles pequenos empresários e/ou trabalhadores liberais, que muitas vezes optam por sonegar pela sobrevivência de seus negócios, diferentemente daqueles que detém de grande poder econômico e que fazem do crime fiscal um meio de vida, sustentando seus negócios escorados a um sofisticado esquema para enriquecer com o não pagamento de tributos (os chamados "Grandes Sonegadores").
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*Matheus Andrade Braga é advogado responsável pela área criminal do escritório Carvalho, Chaves & Alcoforado Advogados e Associados e pós-graduando em Direito Penal Econômico.