Contudo, após uma denúncia anônima recebida pelo Canal de Comunicação da multinacional e após a decorrente investigação interna realizada por seu departamento de compliance, o alto executivo teve sua demissão oficialmente anunciada.
Em comunicado publicado pela própria empresa (disponível aqui!), a multinacional informa a demissão do alto executivo, mas, em relação à motivação para tanto, limitou-se a dizer que as investigações de seu departamento de compliance atestaram que ele teve ''um certo comportamento inadequado e desconforme com o Código de Conduta da Ford''.
Todavia, mesmo não esclarecendo muito o que efetivamente aconteceu (e, assim, não podendo ser considerada uma confissão propriamente dita), a elaboração – e ampla divulgação – dessa carta aberta da empresa é fato importante para os estudantes e profissionais de compliance. Em linhas gerais, essa espécie de confissão/mea culpa pública deliberada (ou seja, não decorrente de imposição ou de negociação com autoridades públicas), além de normalmente poder ser considerada pelas Cortes norte-americanas e pelo DOJ1 uma atenuante de responsabilidade das empresas2, a meu ver também possui uma importante função de diminuição do dano à imagem (ainda que talvez não tanto a curto prazo).
Outrossim, esse mesmo documento aberto trouxe algo relativamente incomum: a confissão também do próprio executivo envolvido. Mesmo que também extremamente vaga, o executivo afirmou se arrepender por, em certos casos, não ter agido em conformidade com as normas éticas da empresa.
Não há, assim, conhecimento do tipo de conduta antiética realizada pelo executivo e que motivou sua demissão. Porém, é informação pública e notória que a mesma empresa, em outros contextos, celebrou dois acordos milionários com a EEOC3 (espécie de Ministério do Trabalho estadunidense) em meio a processos administrativos de responsabilização por condutas antiéticas (nesses casos, de assédio sexual e racial), o primeiro de U$ 22 milhões (nos anos 1990), e o segundo de U$ 10,125 milhões (no final do ano passado). No contexto deste último acordo, aliás, a empresa também publicou carta aberta assinada por seu presidente e CEO (Tim Hackett), na qual não houve expressa confissão/admissão da ocorrência dos casos investigados, mas se garantiu que todos os esforços e medidas necessárias seriam tomadas para prevenir qualquer tipo de conduta abusiva na empresa.
Bom, de todo o (breve e resumidamente) exposto acima, além de tantas outras importantíssimas conclusões relacionadas ao estudo de compliance, entendo conveniente destacar ao menos duas.
A primeira diretamente extraída do caso da demissão noticiada: esse é apenas mais um dos inúmeros exemplos que demonstram que nenhum funcionário deve pensar estar acima das normas internas de compliance. Não importa o grau hierárquico do cargo que desempenha no organograma da empresa: todos devem respeitar sempre as normas de integridade estabelecidas, bem como participar de todos os treinamentos desenvolvidos (já que tampouco a ignorância normativa deve a ele servir como argumento de defesa).
E, por fim, uma conclusão retirada dos demais casos de desvios éticos supostamente ocorridos na mesma empresa, relacionados a condutas de assédio sexual e preconceito racial: as empresas não devem restringir suas normas de compliance ''apenas'' ao âmbito anticorrupção (compliance anticorrupção). Devem também, imprescindivelmente, cuidar muito bem do que costumo chamar de compliance social, ou seja, regramentos, atuações e treinamentos destinados especificamente a mitigar, fiscalizar e punir todo e qualquer tipo de assédio ou preconceito, seja ele moral, sexual, de gênero, racial, por abuso de poder ou qualquer outro4.
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1- Nos Estados Unidos é muito comum que casos de ''ilegalidades éticas'' (como, por exemplo, casos de assédios ou de subornos) terminem em acordos com as autoridades públicas controladoras. E é muito comum que, em tais acordos, a autoridade pública exija que as empresas publiquem cartas abertas similares à citada (mas com confissões/mea culpa corporativas detalhando um pouco mais as condutas antiéticas realizadas). Logo, para alguns, esse fato também pode ter sido levado em conta pela empresa.
2- Aqui no Brasil, para casos de condutas descritas no art. 5º da lei 12.846/13 (Lei Anticorrupção Empresarial - LACE), não é especificamente uma confissão/mea culpa corporativa a essa similar que poderá ser considerada como atenuante de responsabilidade da empresa, mas sim, o fato de a conduta ter sido devidamente investigada internamente (interpretação que retiro do art. 7º da LACE). Ademais, é sabido que, para estes casos do art. 5º, uma das sanções administrativas a serem impostas à empresa é justamente a ''publicação extraordinária da decisão condenatória'' (art. 6º, II da LACE e, no caso de atos contra o Poder Executivo Federal ou contra administração pública estrangeira, também preconizado no art. 24 do decreto 8.420/15).
3- U.S. Equal Employment Opportunity Comission.
4- Conceito, assim, um pouco diferente daquele utilizado por Denise Fabretti, que o emprega para designar a atenção que as agências de publicidade (e demais responsáveis pela criação de anúncios publicitários) devem ter com os valores da sociedade, de modo a não desrespeitá-los (FABRETTI, Denise. Compliance social, disponível em Compliance Social, publicado em 22/09/16 e acessado em 22/02/18).
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