Migalhas de Peso

Zé Ningúem e Zé Alguém e o Direito Criminal

Zé Ninguém e Zé Alguém foram condenados por unanimidade no mesmo dia e pelo mesmo Tribunal pela prática de crimes em relação aos quais foram acusados, tendo sido confirmadas as penas que lhes haviam sido impostas em primeira instância.

26/2/2018

A Justiça é igual para todos, mas há alguns mais iguais do que os outros.

A justiça é cega somente de um olho.

(Ouvido por aí).

Zé Ninguém e Zé Alguém foram condenados por unanimidade no mesmo dia e pelo mesmo Tribunal pela prática de crimes em relação aos quais foram acusados, tendo sido confirmadas as penas que lhes haviam sido impostas em primeira instância.

Zé Ninguém recebeu a notícia com tristeza, pois sabia que o seu destino era certo: ir para atrás das grades. Claro, ele tentaria algum recurso por meio do seu advogado. Contudo, quase sem mais dinheiro para gastar, teria de se virar com os parcos caraminguás com que podia contar. A família se cotizou mais uma vez, cortando na carne, para arrumar alguma grana, de modo a cuidar do futuro do seu processo.

Zé Alguém esperneou, falou mundos e fundos, deslustrou todos os seus julgadores, além da vetusta senhora justiça e disse que não respeitaria a sentença que sofrera, pois ela era o fruto de uma ingente e interminável perseguição política de que era vítima, dado que havia granjeado invejosos gratuitos ao longo de sua longa carreira de sucesso, iniciada há mais de cinquenta anos. Além disto, Zé Alguém reforçou o seu time de grandes advogados, que imediatamente começaram a trabalhar, ajuizando um recurso atrás do outro, antes mesmo de que a decisão judicial tivesse sido publicada.

- Embargos de declaração para quê?, disse o advogado de Zé Ninguém. A sentença é clara e completa, não dá para pescar naquele rio, porque as águas não são turvas.

Do seu lado, os advogados de Zé Alguém ''acharam'' muitos defeitos na sentença e seus embargos de declaração, se tomados a sério segundo eles, deveriam levar seus julgadores a terem de refazer a faculdade de direito e até mesmo boa parte de sua formação anterior. Afinal de contas, que votos mais mal feitos, incompletos, obtusos e parciais como jamais se viu!

Mas, não atropelemos os fatos. Antes mesmo de vencido o prazo dos tais embargos Zé Alguém havia interposto um recurso de habeas corpus (um tipo de mandinga jurídica que livra o corpo do favorecido de ir para a cadeia). De cara o recurso não foi aceito, mas a discussão irá para o plenário daquele Tribunal, onde Zé Alguém espera ser favorecido com a proibição de sua prisão porque, dada a sua subida importância, terá de ser reconhecido que o lugar dele não é o de ver o sol nascer quadrado. Pelo contrário, merece ele esperá-lo surgir mansamente no horizonte, em meio às árvores de sua propriedade rural e ao som do mavioso cântico dos passarinhos e, se estes faltarem, poderão ser tocadas baixinho as ''Quatro Estações'' de Vivaldi, que não é um jogador do Palmeiras, como poderiam pensar alguns desavisados. Acompanhado de um Romané Conti, evidentemente. E Tokay para a sobremesa. Afinal de contas, ele merece!

Enquanto isso acontece, o advogado de Zé Ninguém disse para que ele fique quieto em casa. Sem dar mais o que falar. Ele foi condenado porque andou em más companhias (em muito menor quantidade do que as más companhias de Zé Alguém). Ele tentará com o recurso ao STJ uma pena mais branda, que até permita a seu cliente trabalhar de dia e dormir na cadeia de noite. Zé Ninguém poderá voltar ao seu mistger de pintor de paredes e ele era mesmo bom nisso.

Zé Alguém não está nada quieto. Apregoa sua inocência mais do que o Diário Oficial dá os seus recados, inclusive a injusta demissão de uma ex-ministra que reclamou com toda a razão de estar fazendo trabalho escravo, o que não é nada lindo.

Zé Ninguém está contando com o dinheirinho da Zefa, sua esposa, que trabalha de diarista e a patroa, claro, não sabe disso, porque, mesmo depois de mais de dez anos de serviço, a zefa acha que seria demitida imediatamente por ter um marido bandido. Ele tem também a pensão da sua mãe, ainda viva, que, ainda mais, borda panos de prato para que seu neto os venda nos faróis pelas ruas da cidade. Assim a família pode continuar morando e comendo sofrivelmente e pagar o advogado, que cobrou um preço bem camarada, dividido em suaves prestações. Esse advogado é de ouro!

Zé Alguém tem um batalhão de causídicos e não se sabe como eles são pagos, porque ele teve zilhões de reais bloqueados por aquele juiz insensível, além dos seus bens. Claro, esse dinheiro está em nome dele e no meio de tudo, existe uma módica importância que é a sua aposentadoria, maior do que a de dez mil aposentados pelo salário mínimo. O resto todo mundo sabe que não é dele, dinheiro e bens. É dos amigos. Ele somente emprestou a conta corrente para uns laranjas e tomou emprestadas as propriedades. Tem gente que está até trabalhando de graça para Zé Alguém. Nada demais, vivemos em uma democracia, ''mazzomenno''.

Zé Ninguém viu falar no jornal da TV do tal habeas corpus no Supremo e perguntou para o seu advogado se não poderia tentar um para ele. Tentar até posso, disse seu causídico, mas terei de pagar as custas e despachar pessoalmente lá em Brasília um pedido de liminar e depois defender o mérito do pedido. Mas e o dinheiro, cadê? Além do mais, Zé Ninguém, como o seu existirão milhões de pedidos da espécie, perdidos no meio de todos os outros. Como fazer com que seu caso seja apreciado antes de sua prisão? Talvez daqui a uns dez anos. Mas deve ser preconceito meu, talvez um pouco influenciado porque um dia desses a coisa demorou tanto que um processo foi julgado prescrito por um Tribunal, porque fazia muitos anos que estava esquecido em uma prateleira.

Do lado de Zé Alguém seu recurso está na fila, para julgamento em plenário. Não, não está na pauta, disse o ministro responsável. Não há qualquer previsão a respeito. Seu cliente terá de esperar o transcurso normal do Tribunal. Podemos até acreditar, como acreditamos em bruxas e duendes. Mas e a pressão popular? Está mais forte do que a dos pneus de caminhões. Não dá para esperar e temos que responder ao clamor das multidões, disse um ministro.

Bem, ultimamente em matéria de clamor das multidões eu somente ouvi o barulho do carnaval e dos milhares de blocos de São Paulo que, como se sabe, é o túmulo do samba. Do meu lado, eu não dou um real em garantia em uma aposta no sentido de que o recurso de Zé Alguém ficará esperando na fila o seu momento longínquo de ser atendido. Para que perder dinheiro de graça? Mas os dois Zés têm outras chances. Uma no STJ, depois de dos embargos de declaração e outro no STF, os chamados recursos especial e extraordinário. O primeiro é feito para reformar as sentenças que tenham ofendido uma lei federal. No caso, quaisquer leis que os julgadores tenham usado como base de sua pena e a tenham descumprido. Quanto a Zé Ninguém, evidentemente nada aconteceu a esse respeito. Do lado de Zé Alguém, certamente nunca se viu dantes neste país tamanho desplante e desrespeito para com as leis pátrias. Há no processo desse inocente um rol imenso de desatendimento a múltiplas leis federais.

Já quanto ao recurso extraordinário, que Zé Ninguém não espere qualquer sucesso. Ele não tem, por exemplo, a liberdade constitucional de desapropriar bens alheios, tal como fez com o dinheiro do patrão. Já olhando para Zé Alguém, os princípios constitucionais de isonomia e de liberdade foram amplamente derrogados em relação à sua augusta pessoa. Se, disse ele, o homem do pelo social lá do Maranhão, merecia um tratamento diferenciado quando esteve enrolado com a justiça, quanto mais ele, Zé Alguém, tendo em vista a história de sua superação social e todos os seus feitos à frente dos seus dois governos. Neste sentido, por exemplo, é só olhar em volta e constatar que, por obra dele, não existe mais miséria no Brasil. Isso merece uma deferência, ou não?

''Saponhamos'', como diria o grande filósofo Adoniran Barbosa, que qualquer dos recursos de Zé Alguém seja provido e ele não vá para a cadeia. Paciência, não haverá prejuízo para ninguém, pois uma andorinha sozinha não faz verão. Além de poder se candidatar outra vez à presidência, nada de ruim poderá acontecer ao Brasil, dirão seus comparsas.

Mas dizem os economistas malditos, de uma sentença como esta surgirão resultados indesejáveis em cascata: externalidades negativas e/ou efeitos de segunda ordem. Junto com Zé Alguém, como medida de respeito à isonomia, também não irão para a cadeia todos os condenados do país que ainda tiverem direito a algum recurso depois de sua condenação em segunda instância. E terão de ser soltos todos os outros presos na mesma situação. Aqui é que está a maior catástrofe!

Que maravilha, não? Traficantes, ladrões de banco, assassinos, estupradores profissionais, políticos e empresários condenados pela Lava a Jato e mesmo pela Lava Lento (Alô, STF!), todos eles terão o direito de buscar ares mais frescos do que os das prisões onde se encontram. E, quem sabe o merecido acesso a vultosas indenizações por danos morais, tendo em vista as suas prisões injustas?

Dá o que pensar, não? Até mesmo para quem fala antes de fazê-lo ou fala sempre porque nunca pensa. Não é mesmo, caros inefáveis ministros? A propósito, aviso que foi revogado em algum dia, em algum lugar, o princípio que aprendi nos tenros anos do meu curso de graduação no sentido de que o juiz somente fala nos autos. Hoje ele fala no rádio, na televisão, nos jornais, nas redes sociais e insociais, para a torcida do timão e para a molecadinha da escola. Deve ser um progresso democrático, como se vê: transparência, informação e responsabilidade, dever hodierno do homem público.

Mas esse preço é o que se paga em uma democracia. O que importa é que não se pode deixar que uma injustiça (aquela a ser imposta eventualmente a Zé Alguém), deixe de ser corrigida somente porque estaríamos pensando nessas pequenas consequências.

Mas, por via das dúvidas, vá lá que prevaleça ainda algum injusto bom senso, e Zé Alguém venha a ser colega de Zé Ninguém na mesma cela, eu vou dar a ele um conselho de graça. Mas antes disso, lembre-se o leitor que Zé Alguém não cursou qualquer faculdade, não tem portanto, curso superior. Ele até chegou a dizer que ler dava azia. Daí que ele ficará no regime dos presos comuns, está mais uma desfaçatez para tão grande figura.

Zé Alguém, como cautela e canja de franguinho de leite, eu (tal como fez aquele Assange) o aconselharia a arrumar as malas com os seus bens mais preciosos e buscaria asilo político em uma embaixada em Brasília. Pessoa tão importante e tão injustamente condenada seria prontamente acolhida em sua pretensão, especialmente se o seu destino for o da embaixada daquele país onde existe excesso de democracia. Uma vez ali instalado, Vossa Excelência teria todas as condições para continuar levando ao mundo a sua mensagem de que o despejo de sua antecessora dos palácios de Brasília e a perseguição que sofre representam um atentado à democracia, pedindo a condenação do Brasil pela ONU e o envio dos Boinas Azuis para soltá-lo.

Abraços, bem de longe, claro.

P.S. E quanto a Zé Ninguém? Ora, esqueçamos dele, como todo mudo faz.

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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados e professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.

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