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A inconstitucional restrição administrativa de bens

Cremos não haver dúvidas acerca das flagrantes inconstitucionalidades e ilegalidades de mencionada previsão, cuja invalidade deverá – esperamos – ser reconhecida o quanto antes por nossas cortes superiores, sob pena de o sistema tributário tornar-se ainda mais caótico do que já é.

9/2/2018

O artigo 20-B, § 3º, II introduzido na lei federal 10.522/02 pela recente lei 13.606, de 9 de janeiro de 2018, é mais uma dessas previsões que já nascem nitidamente inválidas, porque inconstitucionais.

Referido dispositivo dispõe o seguinte:

''Art. 20-B. Inscrito o crédito em dívida ativa da União, o devedor será notificado para, em até cinco dias, efetuar o pagamento do valor atualizado monetariamente, acrescido de juros, multa e demais encargos nela indicados.

(...)

§ 3º Não pago o débito no prazo fixado no caput deste artigo, a Fazenda Pública poderá:

(...)

II - averbar, inclusive por meio eletrônico, a certidão de dívida ativa nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto ou penhora, tornando-os indisponíveis.''

Dito de outra forma, uma vez inscrito o débito em dívida ativa da União e não pago em cinco dias, a Fazenda Pública poderá averbar, inclusive por meio eletrônico, a dívida nos órgãos de registro de bens, leia-se registro de imóveis, sistemas de mercados de capitais, sistemas de registro de veículos etc.

Há ao menos quatro nulidades gritantes em referida previsão legal.

A primeira decorre de sua manifesta inconstitucionalidade. Não há dúvidas de que o bloqueio administrativo de bens representa violação à propriedade, direito fundamental dos mais tutelados em nosso sistema (art. 5º, XII da Constituição da República de 1988) e considerado um dos princípios de nossa ordem econômica (art. 170, II).

Dada a sua extrema importância, qualquer restrição à propriedade só pode, necessariamente, ser determinada por meio do Poder Judiciário, a quem nosso ordenamento jurídico reserva – com exclusividade – o poder de coerção. Assim, como não são determinadas prisões sem um mandado judicial e tampouco se cumprem penhoras e leilões de bens que não estejam fundados em uma ordem emanada pelo Poder Judiciário, não se pode restringir a propriedade, de nenhum modo, sem uma ordem judicial prévia que assim determine. Pensar de outra forma é validar a usurpação de prerrogativas de um poder pelo outro. É desprestigiar de maneira insolúvel a tripartição dos poderes.

A segunda nulidade de mencionada previsão legal está relacionada à violação direta ao Código Tributário Nacional, diploma constitucionalmente previsto como sendo o responsável pela edição de normas gerais em matéria tributária, especificamente seu artigo 185-A, segundo o qual ''na hipótese de o devedor tributário, devidamente citado, não pagar nem apresentar bens à penhora no prazo legal e não forem encontrados bens penhoráveis, o juiz determinará a indisponibilidade de seus bens e direitos, comunicando a decisão, preferencialmente por meio eletrônico, aos órgãos e entidades que promovem registros de transferência de bens, especialmente ao registro público de imóveis e às autoridades supervisoras do mercado bancário e do mercado de capitais, a fim de que, no âmbito de suas atribuições, façam cumprir a ordem judicial.''

Como se vê, de acordo com o CTN, a indisponibilidade de bens é prerrogativa exclusiva do Poder Judiciário e só pode se dar (i) após a propositura da execução fiscal e regular citação do devedor; e (ii) caso o débito não seja pago no prazo legal e nem sejam encontrados bens penhoráveis. A autorização legal para que a Fazenda Pública possa simplesmente tomar todas essas medidas de ofício antes mesmo do ajuizamento da execução torna completamente inútil a letra da norma geral prevista no mencionado diploma.

A terceira nulidade, embora formal, não é menos importante. Como visto, a previsão da nova lei, formalmente uma lei ordinária, viola de forma inquestionável o dispositivo do Código Tributário Nacional, uma norma formal e materialmente própria de lei complementar. E como se sabe, há quóruns distintos exigidos para a edição de ambas as normas e, ainda que não se admita uma hierarquia entre elas (e nós particularmente acreditamos que não haja), jamais poderia se admitir uma norma geral materialmente própria de lei complementar sendo contrariada por uma norma específica introduzida por lei ordinária.

Por último, há muito tempo o Supremo Tribunal Federal já sacramentou seu entendimento no sentido de ser vedado às autoridades administrativas se valer de meios coercitivos para exigir o pagamento de tributos. Nesse sentido, vige ainda a súmula 323 da Corte Suprema, segundo a qual é ''inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos''. Referida súmula encontra-se em total consonância com jurisprudência antiga do órgão que se coaduna com nosso entendimento de que práticas coercitivas desse tipo representam manifesta violação ao direito de propriedade e à própria harmonia entre os poderes.

Por essa rápida análise, cremos não haver dúvidas acerca das flagrantes inconstitucionalidades e ilegalidades de mencionada previsão, cuja invalidade deverá – esperamos – ser reconhecida o quanto antes por nossas cortes superiores, sob pena de o sistema tributário tornar-se ainda mais caótico do que já é.

______________

*Fernando Augusto Martins Canhadas é doutor em Direito do Estado pela PUC/SP e sócio de Lima Gonçalves, Jambor, Rotenberg & Silveira Bueno – Advogados.

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